REFLEXÃO
DOMINICAL III
A exaltação e o senhorio de Cristo e a evangelização
Por Pe. Johan Konings, sj (*)
I. Introdução geral
Quarenta dias depois da
Páscoa, a Igreja celebra a Ascensão do Senhor. Na realidade, o que se celebra
hoje é bem mais do que uma aparição na qual Jesus é elevado ao céu. É toda a
realidade de sua glorificação que celebramos, aquilo que os primeiros cristãos
chamaram de “estar sentado à direita do Pai”. Assim, a última aparição de Jesus
aos apóstolos aponta para uma realidade que ultrapassa o quadro da narração.
Por isso, não precisamos preocupar-nos em “harmonizar” a ascensão segundo At
1,1-11, em Jerusalém (I leitura), com a de Mt 28,16-20, na Galileia
(evangelho). Pode tratar-se de duas aparições, dois acontecimentos diferentes,
que têm o mesmo sentido: Jesus, depois de sua ressurreição, não veio retomar
sua atividade de antes na terra (cf. sua advertência a Maria Madalena em Jo
20,17) nem implantar um reino político de Deus no mundo, como muitos achavam
que ele deveria ter feito (cf. At 1,6). Não. Jesus realiza-se agora em outra
dimensão, a dimensão de sua glória, de seu senhorio transcendente. A atividade
aqui na terra, ele a deixa a nós (“Sede as minhas testemunhas… até os confins
da terra” [At 1,8]), e nós é que devemos reinventá-la a cada momento. Na
ressurreição, Jesus volta a nós, não mais “carnal”, mas em condição gloriosa,
para nos animar com seu Espírito (At 1,8; Mt 16,20; cf. Jo 14,15-20, evangelho
do domingo passado).
II. Comentário dos textos bíblicos
- I leitura: At 1,1-11
A primeira leitura narra
a ascensão de Jesus e a missão dos apóstolos segundo o livro dos Atos dos
Apóstolos. Os dias entre a Páscoa e a ascensão formam “o retiro de preparação
para o desabrochar da Igreja”: 40 dias, como os 40 dias de Moisés e de Elias no
Horeb, como os 40 anos de Israel no deserto. Nesses dias, Jesus deu as últimas
instruções aos seus: a promessa do Espírito e a missão de evangelizar. Os
discípulos não devem ficar olhando o céu, mas deverão levar a mensagem de Jesus
ao mundo inteiro, “até os confins da terra” (At 1,8), e para isso receberão a
força do Espírito. Até o Senhor voltar, sua Igreja será missionária.
- II leitura: Ef 1,17-23
Na exaltação do Cristo,
revela-se a força de Deus. A carta aos Efésios se inicia com um hino de louvor
(vv. 2-10), seguido por um enunciado sobre o plano da salvação (vv. 11-14) e
uma súplica pelos fiéis (vv. 15-19), que se expande numa proclamação dos
grandes feitos de Deus em Cristo (vv. 20-23). Essa súplica e contemplação
constituem a leitura de hoje. Deus ressuscitou Jesus e o fez cabeça da Igreja e
do universo. A Igreja é seu “corpo”, ela o torna presente no mundo, ela é a
presença atuante de Cristo no mundo. Celebrando a glorificação do Cristo,
tomamos consciência de nossa própria vocação à glória. Também a oração do dia e
os prefácios próprios falam nesse sentido.
Nestes tempos de
“diminuição” da Igreja, podemos encontrar nessa leitura uma perspectiva maior e
um ânimo mais firme. Cristo se completa em sua Igreja, e esta encontra no
Senhor ressuscitado e glorioso a sua firmeza. Não há por que ficarmos medrosos
e desanimados.
- Evangelho: Mt 28,16-20
O evangelho é o final do
Evangelho de Mateus. Traz as últimas palavras do Senhor ressuscitado: a
despedida de Jesus e a missão dos apóstolos. Tudo isso à luz da compreensão que
Mateus tem do evangelho. No início do evangelho, Jesus é entendido como aquele que
realiza o sentido pleno da profecia do “Emanuel”, Deus-conosco (Mt 1,23).
Depois, Mt 4,15-16 ressaltou que a atuação desse “Emanuel” se iniciou na
“Galileia dos gentios”, primeira destinatária da mensagem da salvação,
realizando assim o sentido pleno de Is 8,23-9,1. Mas, durante sua missão
terrestre, Jesus se restringiu a ovelhas perdidas de Israel (Mt 10,5-6). Agora,
na cena final (28,16-20), o Senhor glorioso transcende os limites de Israel.
Suas palavras finais significam o universalismo da missão dos apóstolos e da
expansão da Igreja. Todos os povos serão discípulos de Cristo (assinalados pelo
batismo). O fim do Evangelho de Mateus revela o sentido universal de todo o
ensinamento nele consignado (cf. sobretudo o Sermão da Montanha, Mt 5-7).
Assim, ao celebrarmos a entrada de Jesus na glória, não celebramos uma despedida,
mas um novo modo de presença; celebramos que ele é, realmente, o
Emanuel, o Deus-conosco, para sempre e para todos (Mt 28,20). Esse novo modo de
presença é um aperitivo da realidade final: assim como ele entra na sua glória,
isto é, como Senhor glorioso, assim ele voltará, para concluir o curso da
história (cf. At 1,11). Pouco importa como a gente imagina isso, o sentido é
que, desde já, Jesus é o Senhor do universo e da história (cf. o salmo
responsorial, Sl 47[46]) e nós, obedientes a sua palavra, colaboramos com o
sentido definitivo que ele estabelece e há de julgar.
III. Dicas para reflexão: O senhorio de Jesus e a evangelização
Temos o costume de
considerar a ascensão de Jesus (como também a ressurreição) principalmente como
um milagre. Mas o sentido principal desse fato é o que exprimem os termos
“exaltação” ou “enaltecimento”, a entronização de Jesus na glória de Deus.
Esses termos, evidentemente figurativos, significam o seguinte. Os donos deste
mundo haviam jogado Jesus lá embaixo (se não fosse José de Arimateia a
sepultá-lo, seu corpo teria terminado na vala comum…). Mas Deus o colocou lá em
cima, “à sua direita”. Deu-lhe o “poder” sobre o universo não só como “Filho do
homem”, no fim dos tempos (cf. Mc 14,62), mas, desde já, por meio da missão
universal daqueles que na fé aderem a ele. E nós participamos desse poder, pois
Cristo não é completo sem o seu “corpo”, que é a Igreja, como nos ensina a II
leitura.
Com a ascensão de Jesus, começa o tempo para
anunciá-lo como Senhor de todos os povos. Mas não um senhor
ditador! Seu “poder” não é o dos que se apresentam como donos do mundo. Jesus é
o Senhor que se tornou servo e deseja que todos, como discípulos, o imitem
nisso. Mandou que os apóstolos fizessem de todos os povos discípulos seus
(evangelho). Nessa missão, ele está sempre conosco, até o fim dos tempos.
O testemunho cristão, que Jesus nos encomenda, não é
triunfalista. É fruto da serena convicção de que, apesar de sua rejeição e
morte infame, “Jesus estava certo”. Essa convicção se reflete em nossas
atitudes e ações, especialmente na caridade. Assim, na serenidade de nossa fé e
na vivência radical da caridade, damos um testemunho implícito. Mas é
indispensável o testemunho explícito,
para orientar o mundo àquele que é a fonte de nossa prática, o “Senhor” Jesus.
A ideia do testemunho levou a Igreja a fazer da festa da
Ascensão o dia dos meios de comunicação
social – a “mídia”: imprensa, rádio, televisão, internet. Para uma
espiritualidade “ativa”, a comunidade eclesial deve se tornar presente na
mídia. Como é possível que, num país tão “católico” como o nosso, haja tão
pouco espírito cristão na mídia e tanto sensacionalismo, consumismo e até
militância maliciosa em favor da opressão e da injustiça?
Ao mesmo tempo, para a espiritualidade mais “contemplativa”, o
dia de hoje enseja um aprofundamento da consciência do “senhorio” de Cristo.
Deus elevou Jesus acima de todas as criaturas, mostrando que ele venceu o mal
mediante sua morte por amor e dando-lhe o poder universal sobre a humanidade e
a história. Por isso, a Igreja recebe a missão de fazer de todas as pessoas
discípulos de Jesus.
Uma ideia que permeia a
liturgia deste dia (como de todo o tempo pascal) e se exprime na oração sobre
as oferendas e na oração depois da comunhão é que o cristão deve viver com a
mente no céu, comungando na realidade da glorificação do Cristo. Essa
participação é novo modo de presença junto ao mundo; não uma alienação, mas,
antes, o exercício do senhorio escatológico sobre este mundo. Viver com a mente
junto ao Senhor glorioso não nos dispensa de estar com os dois pés no chão;
significa encarnar, neste chão, aquele sentido da história e da existência que
em Cristo foi coroado de glória.
(*) Pe. Johan Konings, sj
Nascido na Bélgica,
reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É autor em teologia e
mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de
Lovaina. Atualmente é professor de Exegese Bíblica na FAJE, em Belo Horizonte.
Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo
Testamento (tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica
bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia;
A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos
fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A
Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e
Lucas e da “Fonte Q”. E-mail: konings@faculdadejesuita.edu.br
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/28-de-maio-ascensao-do-senhor/
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