Reflexão para o 6º Domingo da Páscoa - Jo 14, 15-21 (Ano A)
Por
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
Neste sexto domingo da páscoa,
continuamos a leitura do capítulo quatorze do Evangelho segundo João, iniciada
no domingo passado. A liturgia de hoje propõe os versículos de 15 a 21. O
contexto continua sendo o da última ceia de Jesus com seus discípulos em
Jerusalém. Como já fizemos uma contextualização mais ampla no domingo passado,
não julgamos necessário refazê-la hoje. Por isso, faremos apenas pequenos
acenos a alguns elementos essenciais do contexto. O texto lido faz parte do
discurso de despedida de Jesus, considerado um verdadeiro testamento, uma vez
que contém a síntese de seus principais ensinamentos. João é o único
evangelista que fez essa síntese final dos ensinamentos de Jesus, respondendo
às necessidades concretas das suas comunidades, ameaçadas pelas perseguições e
por problemas internos, quando o Evangelho foi escrito, na última década do
primeiro século. Propositadamente, a liturgia prioriza a leitura de trechos
desse discurso nos domingos que antecedem à solenidade da ascensão, para que as
comunidades cristãs tenham clareza da essência da mensagem de Jesus e não interpretem
o seu retorno para junto do Pai como ausência, mas como início de uma presença
ainda mais intensa entre os seus seguidores.
Eis o que o texto afirma logo
em seu início: “Se me amais, guardareis os meus mandamentos” (v. 15). Enquanto
o primeiro versículo do evangelho do domingo passado cobrava fé nos discípulos
(Jo 14,1), o de hoje faz praticamente a mesma exigência com o amor. De fato, fé
e amor são duas características indispensáveis para uma comunidade cristã. Essa
é a primeira vez que Jesus pede amor para si, e o faz empregando o verbo que
expressa o amor em sua máxima dimensão. Ora, no grego, idioma da redação do
Evangelho, há quatro verbos que significam amar, mas somente um expressa um
amor ilimitado e incondicional, capaz de doar a vida: é o verbo agapáo
(άγαπάω), empregado aqui. O amor cristão tem um parâmetro que é o amor de
Jesus, e os cristãos não podem amar de outro jeito que não seja esse. Quem ama
Jesus guarda os seus mandamentos, o que aqui significa a totalidade de sua
mensagem, uma vez que ele deixou um único mandamento, o mandamento do amor (Jo
13,34-35). Assim, mandamento no plural significa a totalidade da mensagem de
Jesus, o que não consiste em preceitos morais, mas num estilo de vida.
E a consequência do amor a
Jesus é a observação e vivência efetiva dos seus ensinamentos. Ele não fala de
obediência aos seus mandamentos, mas de guardar, o que significa conservar,
preservar algo em sua essência, sem adulterações. Inclusive, o evangelista usa
aqui o mesmo verbo guardar (em grego: τηρήω – terêo) colocado na boca do
mestre-sala no episódio das bodas de Caná, ao elogiar o vinho novo,
desconhecido para ele, como se estivesse “guardado até agora” (Jo 2,10).
Portanto, quem ama Jesus vive e mantém a sua mensagem autêntica e intacta ao longo
do tempo, não obstante as adversidades, como as enfrentadas pela comunidade do
evangelista. Para conservar a mensagem de Jesus em sua integridade, no entanto,
a comunidade precisa ler os sinais dos tempos, à luz do Espírito Santo, já que
é uma mensagem dinâmica e viva.
Estando prestes a retornar ao
Pai, Jesus reconhece a vulnerabilidade dos seus discípulos, que se encontravam
angustiados e com medo (Jo 14,1). Por isso, lhes faz uma promessa: “E eu
rogarei ao Pai e ele vos dará um outro defensor, para que permaneça sempre
convosco” (v. 16). Aqui, Jesus está se referindo ao Espírito Santo como o outro
defensor, sendo que o primeiro defensor é ele mesmo (1Jo 2,1); o outro atuará
na vida dos discípulos com uma presença semelhante, embora mais intensa, à do próprio
Jesus em sua vida terrena. O termo grego correspondente a defensor é
“Parákletos” (παράκλητος), corresponde ao termo latino “advocatus”, do qual
provém a palavra advogado; se trata de uma palavra composta (παρά – pará =
“junto a” + κλητος – klétos = chamado), cujo significado literal é “chamado a
estar junto ou do lado” para defender, consolar e encorajar. Adaptada ao
português como “Paráclito”, esse termo foi praticamente transformado em título
do Espírito Santo, quando na verdade expressa a sua função na comunidade. Ora,
angustiados e aflitos pelo medo, os discípulos temiam exatamente que a partida
de Jesus os deixasse desamparados; a essa situação, Jesus responde prometendo o
outro defensor. Assim, ele antecipa que, através do Espírito Santo, estará para
sempre presente na vida dos seus seguidores de todos os tempos, com uma
presença até mais efetiva do que aquela terrena, uma vez que não estará mais
condicionado aos limites do espaço e do tempo.
A presença do Espírito Santo é
decisiva e vital para a comunidade; por isso, Jesus continua referindo-se a
ele, mostrando agora uma função clara, aquela de ajudar a manter a comunidade
na Verdade, que é o próprio Pai e Jesus, já que quem vê um vê o outro (Jo
14,9), uma vez que os dois são Um (Jo 10,30): “O Espírito da Verdade, que o
mundo não é capaz de receber, porque não o vê nem o conhece. Vós o conheceis,
porque ele permanece junto de vós e estará dentro de vós” (v. 17). Aqui,
evangelista faz a contraposição, típica da sua teologia, entre a comunidade cristã
e o mundo. Mundo não é a criação ou cosmos, mas toda a oposição ao Evangelho; é
a negação do amor de Deus comunicado por Jesus, o que geralmente é o sistema
opressor – religioso, político ou econômico – mas também as contradições e
incoerências da própria comunidade. Enfim, é toda realidade que rejeita o amor
de Deus, que são os sistemas que se alimentam da mentira, do ódio, da violência
e de tudo o que é contrário ao Evangelho. A comunidade só resiste a tudo isso
se acolher o Espírito da Verdade, a quem ela conhece, porque Jesus deu a
conhecer, inclusive enviando-o para dentro de cada discípulo.
A presença do Espírito na
comunidade garante proteção e amparo aos discípulos; por isso, Jesus lhes
assegura: “Não vos deixarei órfãos. Eu virei a vós” (v. 18). Os discípulos
temiam exatamente viver como órfãos num mundo hostil e injusto, após a partida
de Jesus. Ora, os órfãos, juntamente com as viúvas, formavam a categoria de
pessoas mais vulneráveis e frágeis em Israel, sujeitos à exploração dos
poderosos. Eram os protótipos das pessoas abandonadas. Por isso, eram
destinatários de atenção especial na própria Lei de Moisés (Dt 14,28-29). Com
essa afirmação, Jesus declara que não os abandonará; pelo contrário, virá a
eles; essa vinda não é a parusia, ou seja, a vinda definitiva no final dos
tempos, mas o seu retorno à comunidade após a ressurreição (Jo 20,19.24);
inclusive, nos relatos das aparições, o evangelista João não dirá que Jesus
apareceu aos discípulos, mas que ele veio onde eles se encontravam e, por
sinal, eles estavam com medo (Jo 20,19.24).
Com muita clareza, Jesus falava
da sua morte ressurreição, certamente com os discípulos já mais tranquilos,
após o anúncio do outro defensor: “Pouco tempo ainda, e o mundo não mais me
verá, mas vós me vereis por que eu vivo e vós vivereis” (v. 19). Ao contrário
do mundo, para quem a morte de Jesus será uma partida permanente, porque não se
abriu para conhecer o seu amor, os discípulos não deixarão de vê-lo, pois,
ressuscitado, estará para sempre vivo entre eles. A relação com Jesus é fonte
de vida, pois quem lhe vê, vive. Ver aqui significa a relação de intimidade com
ele, e essa relação é geradora de vida. Naquela ocasião, os discípulos
confirmarão a união íntima entre Jesus e o Pai e poderão também participar dessa
mesma união, como ele mesmo promete: “Naquele dia sabereis que eu estou no meu
Pai e vós em mim e eu em vós” (v. 20). Logo, a presença de Jesus no Pai e do
Pai em Jesus se realiza também na vida dos discípulos, eliminando, assim, toda
distância entre o humano e o divino. A comunidade cristã aberta ao Espírito da
Verdade é, portanto, morada de Jesus e do Pai.
No último versículo, é retomada
a temática dos mandamentos, e novamente associados ao amor: “Quem acolheu os
meus mandamentos e os observa, esse me ama. Ora, quem me ama, será amado por
meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele” (v. 21). O termo mandamento (em
grego: έντολή – entolê), tanto no singular quanto no plural, aparece vinte e
seis vezes nos evangelhos, sendo dezesseis nos sinóticos (Mt 5,19; 15,3; 19,17;
22,36;38;40; Mc 7,8.9; 10,5.19; 12,28.31; Lc 1,16; 15,29; 18,20; 23,56) e dez
em João (Jo 10,18; 11,57; 12,49.50; 13,34; 14,15.21; 15,10.12); enquanto nos
sinóticos sempre faz referência aos mandamentos da Lei, embora
(re)interpretados por Jesus, em João os mandamentos são somente seus, não
aludem à antiga Lei. Com isso, o evangelista reforça que é Jesus com seu amor o
único parâmetro para a comunidade. Nesse versículo, o evangelista abre uma nova
perspectiva; enquanto nos versículos anteriores o discurso foi todo construído
em segunda pessoa, com Jesus falando diretamente aos discípulos reunidos com
ele (“vós”), agora ele fala em terceira pessoa. Ele passa então, a dirigir-se a
toda pessoa, de qualquer lugar e de qualquer época (quem, aquele, qualquer
um...). Logo, a experiência que os discípulos de primeira hora estavam vivendo
pode ser vivida por qualquer pessoa que cumpre o mandamento do amor. Isso
significa que toda pessoa, sem distinção, pode ser discípula de Jesus. Isso foi
um conforto que o evangelista transmitiu aos membros da sua comunidade,
especialmente àqueles chegados por último, vítimas de preconceito e
discriminação, e serve de alento para as comunidades de todos os tempos.
Convictos da presença ativa de
Jesus na comunidade que vive o seu amor e o aceita como única regra de vida,
somos animados a acolher o Espírito Santo para estreitar cada vez mais os laços
com Ele, com o Pai e com o próximo, o primeiro destinatário do seu amor. Dessa
presença emana a força necessária para resistir aos obstáculos e as convicções
para perseverar na verdade do Evangelho, como único parâmetro para a vida
cristã.
https://www.fiquefirme.com.br/160-reflexao-para-o-6o-domingo-da-pascoa-jo-14-15-21-ano-a
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