REFLEXÃO DOMINICAL III
JESUS,
CAMINHO, VERDADE E VIDA
Por Pe. Johan Konings, sj
I. INTRODUÇÃO GERAL
A liturgia de hoje
deve ser contemplada à luz da leitura evangélica, tomada de João. Essa leitura,
junto com o prólogo de João, fornece, como veremos, a chave da mensagem do
Quarto Evangelho: a manifestação de Deus em Jesus Cristo. Por outro lado, a
primeira e a segunda leituras dirigem nosso olhar para a comunidade nascida da
fé em Jesus, a Igreja. Por isso, a dinâmica da homilia poderá desdobrar-se na
ordem inversa das leituras, pois o que o evangelho faz entrever é a base
daquilo que as leituras evocam.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (At 6,1-7)
A primeira leitura
continua a narração dos primórdios da jovem comunidade nos tempos depois da
Páscoa e Pentecostes. A caridade cria novas tarefas, porque o crescimento da
comunidade tinha trazido um novo problema. Além dos convertidos do judaísmo
tradicional de Jerusalém, entraram convertidos do “judeu-helenismo”, judeus
helenizados, que viveram nas cidades comerciais do Mediterrâneo, ou pagãos
convertidos, prosélitos, que tinham aderido ao judaísmo e agora passavam à
comunidade cristã. A entrada dessas pessoas, que não pertenciam aos clãs
tradicionais, tornou necessário um novo serviço na comunidade: a organização da
assistência às viúvas desse grupo e do “ministério dos pobres” em geral, ao lado
dos apóstolos, que serão em primeiro lugar servidores da Palavra e fundadores
de comunidades.
2. II leitura (1Pd 2,4-9)
A segunda leitura
casa bem com a primeira. Fala do mistério da Igreja, templo de pedras vivas,
sustentadas pela pedra de arrimo que é Jesus Cristo, “pedra angular rejeitada
pelos construtores” (1Pd 2,7; cf. o salmo pascal, Sl 118[117],22). Em 1Pd 2,9,
a Igreja é chamada pelo título por excelência do povo de Israel segundo Ex
19,6, “sacerdócio régio”, sacerdócio do Reino. Assim como o povo de Israel foi
escolhido por Deus para celebrar a sua presença no meio das nações, assim a
Igreja é o povo sacerdotal, escolhido por Deus para santificar o mundo. Ela é
chamada a ser o “sacramento do Reino”, sinal e primeira realização do Reino no
mundo. Com essas imagens, Pedro destaca a dignidade e responsabilidade dos que
receberam o batismo na noite pascal. Graças ao Concílio Vaticano II,
valorizamos agora melhor esse sacerdócio dos fiéis, que designa a
santificação do mundo como vocação do povo de Deus como tal, isto é,
de todos os que podem ser chamados de “leigos” (em grego, laós = povo;
nesse sentido, também os membros da hierarquia são “leigos”!). Como o sacerdote
santifica a oferenda, assim todos os que levam o nome cristão devem santificar
o mundo pelo exercício responsável de sua vocação específica, na vida
profissional, no empenho pela transformação da sociedade, na humanização, na
cultura etc. Tal “sacerdócio dos fiéis” não entra em concorrência com o
sacerdócio ministerial, pois este é o serviço (“ministério”) de santificação
dentro da comunidade eclesial, aquele é a missão santificadora da Igreja no
mundo, como tal. O sacerdócio dos fiéis significa que a Igreja, como
comunidade, e todos os fiéis pessoalmente, em virtude de seu batismo, recebem a
missão de santificar o mundo, continuando a obra de Cristo.
3. Evangelho (Jo 14,1-12)
No domingo passado,
Cristo foi chamado a “porta das ovelhas”. No evangelho de hoje,
vemos com maior clareza por que Cristo é o acesso ao Pai: Caminho, Verdade e
Vida. O sentido desses três termos, que constituem uma unidade (o Caminho da
Verdade e da Vida), é apresentado mediante pequena encenação. Jesus inicia sua
despedida (Jo 13,31-17,26) dizendo que sua partida é necessária: ele vai
preparar um lugar para seus discípulos. Quando Jesus sugere que eles conhecem o
caminho, Tomé, o cético, responde que não o conhecem. Então, Jesus explica que
ele mesmo é o caminho da Verdade e da Vida, o caminho pelo qual se chega ao
Pai. Na Bíblia, caminho e caminhar significam muitas vezes o modo de proceder.
O caminho ou caminhar reto é o que hoje chamaríamos de moral ou virtude.
Portanto, se Jesus chama a si mesmo de caminho, não se trata de algo teórico,
uma doutrina, mas de um modo de viver. É vivendo como Jesus viveu que
conhecemos o seu caminho e encontramos a vida e a verdade às quais ele nos
conduz (v. 6a). Se, pois, ele diz que ninguém vai ao Pai senão por ele (v. 6b),
não está proclamando uma ortodoxia que exclui os que não confessam o mesmo
credo, mas dá a entender que os que chegam ao conhecimento/experiência de Deus
são os que praticam o que ele, em plenitude, praticou: o amor e a fidelidade
até o fim. E isso pode acontecer até fora do credo cristão.
Depois da pergunta de
Tomé, temos a pergunta de Filipe: “Mostra-nos o Pai, isso nos basta” (Jo 14,8).
Ora, qualquer judeu piedoso, qualquer pessoa piedosa, quer conhecer Deus – que
Jesus costuma chamar de Pai. Porém, diz João no prólogo de seu evangelho,
ninguém jamais viu a Deus (Jo 1,18). Agora, Jesus explica a Filipe: “Quem me viu,
viu o Pai”. Nesse momento, quando (segundo a contagem judaica) já se iniciou o
dia de entregar a vida por amor até o fim, Jesus revela que, nele, contemplamos
Deus. Nosso perguntar encontra nele resposta; nosso espírito, verdade; nossa
angústia, a fonte da vida. Nesse sentido, ele mesmo é o caminho que nos conduz
ao Pai e, ao mesmo tempo, a Verdade e a Vida que se tornam acessíveis para nós.
“O Unigênito, que é Deus e que está no seio do Pai, no-lo fez conhecer” (Jo
1,18). Jesus não falou assim quando realizava seus “sinais”: o vinho de Caná, o
pão para a multidão, nem mesmo a cura do cego ou a revivificação de Lázaro.
Pois o sentido último para o qual a atuação de Jesus apontava não era fornecer
vinho ou pão, ou substituir um médico ou curandeiro, mas manifestar o amor do
Pai, o Deus-Amor.
Trata-se de ver a
Deus em Jesus Cristo na hora de sua entrega por amor. Para saber como é Deus, o
Absoluto da nossa vida, não precisamos contemplar outra coisa senão a
existência de Jesus de Nazaré, “existência para os outros”, na qual Deus
imprimiu seu selo de garantia, no coroamento que é a ressurreição. Muitas
vezes, tentamos primeiro imaginar Deus para depois projetar em Jesus algo de
divino (geralmente, algo de bem pouco humano…). Devemos fazer o contrário:
olhar para Jesus de Nazaré, para sua vida, para sua palavra e sua morte, e
depois dizer: assim é Deus – isso nos basta (cf. Jo 14,8-9). E isso é possível
porque Jesus, trilhando até o fim o caminho que ele mesmo é, assumindo ser a
“graça e a verdade” (Jo 1,14), o amor e a fidelidade de Deus até o fim, mostra
Deus assim como ele é, pois “Deus é amor”, diz o mesmo João em sua primeira
carta (1Jo 4,8.16). Podemos dizer, com Paulo, que Jesus é o rosto do Pai, a
perfeita imagem dele (cf. Cl 1,15). Assim como Jesus procede, Deus é. Ele está
no Pai e o Pai está nele (Jo 14,11), e quem a ele se une fará o que ele fez, e
mais ainda, agora que ele se vai para junto do Pai (14,12) e deixa, por assim
dizer, o campo aberto para a ação dos que creem nele, animados pelo Espírito-Paráclito
(14,13-17, continuação do texto de hoje).
III. DICAS PARA REFLEXÃO: A manifestação de Deus-Amor em
Cristo e em sua comunidade
Para o cristão, o
gesto de amor e fidelidade de Jesus até o fim é a suprema revelação de Deus.
Não podemos, nesta existência terrena, conhecer a Deus em si. Ele é “o além de
nossos horizontes”. Mas ele se manifesta a nós no justo e santo, aquele que faz
sua vontade e lhe pertence por excelência, Jesus de Nazaré. Mais exatamente:
quando este, “na carne” (cf. 1Jo 4,2), leva a termo o amor e a fidelidade (“a
graça e a verdade”, Jo 1,14), os traços fundamentais de Deus já manifestados no
seu agir em relação a Israel (veja, por exemplo, Ex 34,6). Jesus, Palavra de
Deus “acontecendo em carne” (cf. Jo 1,14), não se limita a um só povo. Toda a
carne humana é assumida nesse homem, que vive o amor e a fidelidade de Deus até
o fim, de modo que o que se pode dizer de Deus é isto: “Deus é amor”. Amor que
ama primeiro e é conhecido em Jesus, mas também quando amamos nossos irmãos
(1Jo 4,10-12).
Aí entra o pensamento
acerca da comunidade eclesial, que constitui o segundo grande tema deste
domingo. Como Cristo encarnou o que Deus fundamentalmente significa para a
humanidade – amor radical –, sua comunidade é chamada a manifestar essa mesma
realidade de Deus ao mundo. Aí está sua santa vocação, seu sacerdócio, de que
participam todos os que foram batizados em Cristo (e, assim, no Pai e no
Espírito). Ser cristão não é simplesmente proclamar um credo ou pertencer a uma
instituição, mas encarnar o Deus-Amor trilhando o “caminho” que é Jesus.
(*) Pe. Johan Konings, sj
Nascido na Bélgica, reside há muitos
anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em
Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina.
Atualmente é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo Horizonte. Dedica-se
principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento
(tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre
outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se
fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos
A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas
suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da
“Fonte Q”.
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/18-de-maio-5o-domingo-da-pascoa/
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