BATISMO
DO SENHOR – 8 de janeiro
Por Johan Konings, sj
I. Introdução geral
O sentido principal
da festa do Batismo do Senhor, neste ano B, é a investidura de Jesus como
Messias. O evangelho, próprio do ano B, descreve o batismo de Jesus no Jordão,
quando o Espírito desce sobre ele na forma visível de pomba (Mc 1,7-11). Para
as outras leituras e o salmo responsorial, o Lecionário oferece como primeira
opção os mesmos textos que nos anos A e C: a 1ª leitura de Is 42,1-4.6-7 (o
profeta e servo impelido pelo Espírito), a 2ª leitura de At 10,34-38 (Pedro
proclamando Jesus como ungido por Deus com o Espírito Santo). É uma temática
eminentemente cristológica. Como, neste ano, a festa do Batismo do Senhor não é
celebrada no domingo, proclama-se apenas uma leitura, a ser escolhida entre as
várias opções existentes.
Com efeito, o
Lecionário prevê textos alternativos para as 1ª e 2ª leituras e o salmo
responsorial. A 1ª leitura: o convite pronunciado pela boca do profeta Isaías
para “vir às águas” (Is 55,1-11); o salmo responsorial, cujo refrão canta: “Com
alegria bebereis do manancial da salvação” (Is 12,2-6); a 2ª leitura, o
testemunho de Jesus dado pela água e pelo Espírito (1Jo 5,1-9). Esses textos
são menos ilustrativos para o tema cristológico do evangelho, mas, acentuando o
simbolismo da água, podem eventualmente servir para uma reflexão em torno do
batismo cristão. Nosso comentário, porém, seguirá a linha cristológica dos
textos oferecidos como primeira opção.
II. Comentários aos textos bíblicos
- I leitura (Is 42,1-4.6-7)
O primeiro cântico do
Servo (Is 42) encaminha nossa mente para a compreensão do evangelho. Apresenta
a misteriosa personagem do tempo do exílio babilônico, à qual foram dedicados
quatro cânticos (Is 42,1-7; 49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12). O primeiro cântico do
Servo, lido hoje, apresenta a eleição desse predileto para levar aos povos e
aos continentes (“ilhas”) o verdadeiro conhecimento do Deus de misericórdia e
fidelidade. O Servo é a aliança com o povo, a luz das nações, para restaurar a
paz e a felicidade dos oprimidos. Ele é o portador da quase trágica “eleição”
do povo de Israel para, no desterro, ser testemunha do Deus verdadeiro no meio
das nações.
- Evangelho (Mc 1,7-11)
O evangelho de hoje
mostra o “empoderamento” de Jesus para sua atividade pública, a qual começa com
a proclamação da chegada do reino de Deus (Mc 1,14-15). O Evangelho de Marcos
começa solenemente com o anúncio, feito por João Batista, da chegada do enviado
escatológico. Em Marcos, diferentemente dos outros evangelhos, faltam as
palavras do anúncio do juízo e da pregação penitencial do Batista (Mt 3,7-10;
Lc 3,7-14). Marcos concentra totalmente a atenção naquele que há de vir. Cita a
frase do Batista: “Depois de mim vem aquele que é mais forte do que eu. Eu nem
sou digno de, abaixando-me, desatar a correia de suas sandálias” – tarefa do
escravo ou do discípulo a serviço de seu “rabi”.
Quando Jesus
participa com seu povo do despertar messiânico provocado pelo Batista, Deus lhe
dá a investidura de Messias. Enquanto João Batista batiza com água, o “mais
forte” chega para batizar com Espírito Santo. O batismo de João era um rito de
conversão para o povo de Israel. João o administrava lá onde o povo pudesse se
reunir, independentemente do templo de Jerusalém. Escolheu para esse rito as
águas do rio Jordão, as quais, muitos séculos antes, o povo tinha atravessado
para entrar na terra prometida. Era como se agora renovassem essa experiência.
Jesus, todo entregue ao projeto de Deus, seu Pai, não podia faltar a esse
evento, movimento de preparação messiânica e expressão pura e livre da piedade
de seu povo, o povo judeu. Mas a atividade de Jesus nos leva a outro nível.
João pertence a um
degrau preparatório na história da salvação. Jesus vem depois dele, mas isso
não é um “depois” como o do discípulo que segue o mestre. Significa o novo tempo
que suplanta o anterior. É o tempo da efusão do Espírito anunciada pelos
profetas (cf. Ez 36,26-27: espírito novo nos corações; Jl 3,1-2: efusão
escatológica do Espírito). O suposto seguidor do Batista é, na realidade,
aquele que batiza com o Espírito Santo. E como ninguém pode dar o que não
recebeu, conta-se como Jesus recebeu, por ocasião do batismo, o Espírito de
Deus.
É um momento
escatológico, quase apocalíptico: Jesus vê o céu “rasgar-se”, como na invocação
da vinda salvadora de Deus proclamada por Isaías (Is 63,19). A voz de Deus,
representada pela visão da ave mensageira, proclama a investidura de Jesus como
rei messiânico, com a fórmula que lembra a investidura dos reis: “Tu és meu
filho” (cf. Sl 2,7). A fórmula é completada pelo termo “amado”, que exprime a
eleição por Deus, e seguida da declaração: “em ti ponho meu benquerer”
(Lecionário), “em ti está meu agrado” (Bíblia da CNBB). Sobre Jesus, que recebe
o Espírito de Deus, está o agrado ou o benquerer de Deus, isto é, sua vontade
salvífica. Deus não está querendo dizer que o seu amado é “agradável”, e sim
que ele executará o agrado de Deus, a saber, a obra da salvação. Pode-se
parafrasear: “Coloco sobre teus ombros a obra que eu quero realizar”.
É de notar que, no
Evangelho de Marcos, só Jesus vê o céu aberto e ouve a voz (os outros
evangelistas apresentam a cena de modo mais público). Isso se deve, em parte,
ao fato de a investidura ser dirigida ao novo rei individualmente (cf. Sl 2,7).
Mas, em Marcos, há algo a mais. O conhecimento e a compreensão da missão
messiânica de Jesus se dão progressivamente. A fórmula é retomada bem no meio
do Evangelho de Marcos, na transfiguração de Jesus (Mc 9,7), depois da
confissão de fé feita por Pedro (Mc 8,29) e da subsequente correção do conceito
de Messias no primeiro anúncio da Paixão (Mc 8,31-33). Os três discípulos mais
representativos são conduzidos para o alto da montanha e lá recebem uma visão
de Jesus glorioso. A esses é revelado o que, na cena do batismo (segundo
Marcos), foi proclamado só para Jesus: “Este é o meu Filho amado, escutai-o”
(Mc 9,7). E, no fim do evangelho, quando Jesus cumpre a sua missão, dando sua
vida, um soldado romano, representante do mundo inteiro ao qual se destina a
salvação, exclama: “Este homem era verdadeiramente (o) Filho de Deus” (Mc
15,39). Só nesse momento fica claro de que modo Jesus assume o “agrado”, o
plano salvífico de Deus, de acordo com sua exclamação na hora da agonia: “Não o
que eu quero, mas o que tu queres” (Mc 14,38). Assim, Marcos estende por sobre
todo o seu evangelho o que se costuma chamar de “segredo messiânico”, a
revelação do Filho de Deus que se completa na cruz. O batismo engaja Jesus
nessa missão.
III. Pistas para a reflexão
O Natal se prolonga
nas festas da Epifania e do Batismo de Jesus, que têm em comum a ideia da
manifestação de Deus ao mundo em Jesus de Nazaré. Deus se manifestou ao próprio
Jesus para lhe confiar sua missão.
A 1ª leitura
apresenta o “Servo de Deus” de que fala o profeta Isaías. “Servo” (= ministro,
encarregado) é um título que pode ser aplicado ao rei, ao profeta ou até ao
próprio povo da aliança. Na sua disposição de executar o projeto de Deus, o
“Servo” prefigura Jesus. A 2ª leitura conta como, depois de Pentecostes, os
apóstolos proclamam Jesus, chamando-o com o nome bíblico de “Ungido de Deus” –
em hebraico, Messias: ungido com o Espírito Santo.
É isso que o
evangelho descreve. Jesus tinha-se integrado no movimento de João Batista, que
fez reviver a voz profética, silenciada durante séculos. Agora, no momento em
que Jesus recebe das mãos de João o batismo no rio Jordão, Deus lhe dá “sinal
verde” para sua própria missão: “Tu és o meu Filho amado, em ti ponho meu
benquerer”. “Filho de Deus” era um título dado ao rei (Davi). Num sentido
infinitamente mais rico, esse título cabe a Jesus. Deus o “empodera” como
executor de seu benquerer, realizador de seu reinado. Desce sobre Jesus o
Espírito de Deus: sua força, seu dinamismo, seu calor, sua sabedoria… O reinado
que ele vai instaurar supera de longe o de Davi. É um projeto divino, para que
Deus reine nos corações humanos e em todas as estruturas da comunidade humana e
para que seus “aliados” realizem a justiça e o amor.
Jesus assumiu sua
“nomeação” e deu a vida para cumpri-la: para desmascarar o cinismo e a
hipocrisia dos chefes religiosos e políticos; para ensinar o plano de Deus ao
povo entregue às mãos dos poderosos; para formar um grupo de discípulos que
entendessem sua proposta – ao menos, depois de sua morte e ressurreição…
Jesus assumiu a
realização da vontade do Pai. Anunciou a justiça e a misericórdia de Deus aos
que mais as esperavam: os pobres, os excluídos. Pregou a libertação, o fim do
mal que domina este mundo. Mas ele não quis ficar sozinho. Formou uma
comunidade que continuasse sua missão. Essa comunidade é marcada com o mesmo
sinal que Jesus quis receber juntamente com seu povo em busca de renovação: o
batismo. Os que sucedem Jesus no empenho pelo reinado de Deus trilharão o seu
caminho, assumindo tudo o que colabora para a justiça concebida por Deus, assim
como Jesus assumiu o movimento lançado por João Batista. E, sobretudo, voltarão
o ouvido e o coração à voz que vem do Pai, para que se realize o que diz a
oração final desta liturgia: “Chamados filhos de Deus, o sejamos de fato”.
Johan
Konings, sj
Nascido na Bélgica,
reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia
e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de
Lovaina. Atualmente é professor de Exegese Bíblica na Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos
seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), evangelhos
(especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre outras obras, publicou:
Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia
dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C. E-mail: konings@faculdadejesuita.edu.br
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/batismo-do-senhor-8-de-janeiro/
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