"O
NOVO QUE JÁ NASCE VELHO: RESSIGNIFICANDO
O CONCEITO
DE 'ANO NOVO'"
Lindolivo Soares Moura(*)
"O objetivo de um ano
novo não que nós
deveríamos ter um novo ano,
e sim que
nós deveríamos ter uma nova alma" (G.K.Chesterton);
Todo santo ano é a mesma coisa: ainda
mal digerimos o peru da Ceia de Natal, e lá vem a Ceia da antevéspera do Ano
Novo! Comilança pra cá, bebelança pra lá, bejim bejim, bracim bracim, e depois
pé na estrada, cada um de volta ao seu lugar. Permeando tudo, renovam-se os
votos, os augúrios e as felicitações: primeiro, de um santo e feliz Natal; uma
semana depois, de um feliz e próspero Ano Novo. Do vermelho do Papai Noel e das
festas natalinas ficam apenas as contas e duplicatas a pagar. Duplicatas,
"triplicatas", e até "quadruplicatas", diga-se de passagem,
em razão da incontida euforia em direção às compras que tais tempos costumam
suscitar. Assim é que uma semana depois o vermelho deixado pela festança cede
lugar ao branco da esperança: pipocam fogos, renovam-se pedidos, refazem-se
promessas e os céus se enchem de colorido. Que os deuses nos ajudem e que o ano
entrante seja melhor e menos sofrido! Se o Natal faz renascer o Filho, o Ano
Novo se encarrega de ressuscitar o restante da Trindade, ficando a tríade
completa: Pai, Filho, e Espírito Santo! O resto do ano é um coro só, pra
cá e pra lá, de "Deus nos
acuda!". É tanto pedido de ajuda, que de tempos em tempos a "Santa Madre"
não tem outra alternativa senão abrir Concurso para pretendente à santidade,
única maneira de conseguir atender a demanda cada vez mais desenfreada.
É triste! Mais que isso: é lamentável!
Para a grande maioria das pessoas o Novo Ano envelhece rápido! Muito rápido!
Rápido até demais! As queixas, os queixumes e as lamúrias mal respeitam a
"Oitava do Natal" para reentrarem em cena. Muita gente segue ainda
agarrada degustando o esqueleto do peru, só que agora ao embalo de prantos e
lamentações, e não mais de "oh! Senhor!", "Deus de Amor!" e
"noite feliz!". Há cenas que fazem lembrar coisa típica de pós
velório e de defunto mal enterrado: puro choro, luto, pranto e lamentação,
seguida de lenga lenga, fé de menos e muita reclamação! A "ladainha de
todos os santos" é rapidamente acompanhada de uma ladainha de
"ais" e "ais" e queixas que não acabam mais! Vez por outra,
claro, faz-se uma pausa para respirar e tentar lubridiar tanta adversidade: e
lá vem carnaval, feriado, dia santo,
e "epiqueias" de alívio enganador
e passageiro. Depois tudo retorna ao "normal". Normal que para a
grande maioria não costuma ser nada bom, por sinal! Mas que círculo vicioso é
esse afinal? Por quais razões o Novo Ano acaba sempre ficando velho antes da
hora para tantas pessoas, sem sequer esperar pelo próximo Natal? Parei para
refletir, e ocorreu-me sugerir algumas possíveis razões, que a partir de agora
deixo flutuando no ar. Fica a seu critério prosseguir, parar por aqui, ou
retornar mais tarde quando o ânimo recobrar.
🙏Começamos
o novo ano fazendo votos e suplicando. E como pedimos! E como imploramos e
suplicamos! Sem problemas; não parece haver nada de errado com isso. Cedo se
aprende que "rezar nunca é demais". Mas cada desejo e súplica,
convenhamos , deveriam ser acompanhados não apenas de uma reta intenção mas
também de uma sincera disposição de quem pede ou suplica: o que estamos
realmente dispostos a fazer, deixar de fazer se for o caso, investir ou
sacrificar para que tal desejo e tal súplica se tornem realidade no ano entrante?
Graça alguma deveria ser suplicada sem que antes deixemos bem claro qual será
nossa contribuição para que o pedido ou a graça se realizem. Ausente essa
condição, orar e suplicar não passa de abuso e exploração da misericórdia
divina! Essa é uma tentação que todos
deveríamos evitar.
🥱
Procrastinação: esta é uma das principais agravantes para que o sucesso da
realização dos pedidos que fazemos e dos augúrios que recebemos não se
concretize. Procrastinar é a maneira mais eficaz de sabotar tanto aquilo que se
pede como aquilo a que se propõe. E o que é pior: procrastinamos na maioria das
vezes por razões "inconscientes".
Se sabotar a si mesmo já é o fim,
fazê-lo sem sequer estar ciente disso é sem dúvida mais trágico ainda.
Antes de se fazermos qualquer pedido,
nos dispormos a fazer qualquer coisa, ou nos determinarmos a atingir qualquer meta, deveríamos nos
capacitar em vencer a procrastinação. Buscar ajuda profissional é quase sempre
o melhor caminho, mas quase sempre suplicar passe de mágica costuma fazer parte
do pacote. Resultado da estratégia: nosso pedido pode ter sido atendido, o
entregador estar à porta para fazer a entrega, mas a gente simplesmente não
abre pra verificar. Claro: depois de um tempo ele vai embora. É assim que muitas oportunidades
acabam sendo literalmente "desperdiçadas", e nossa vontade e nossa
determinação transformadas em fumaça pelo fantasma da procrastinação. O
"Novo" ficando para o ano seguinte.
🫣
Cultivar "olho grande" ou "olho gordo" também pode retardar
e até impedir a chegada do "Novo". Muita gente não se dá conta, mas
esse costuma ser um poderoso empecilho a dificultar o sucesso e a realização de
toda e qualquer pretensão. Deveríamos pedir e batalhar sobretudo - e antes de
tudo - pelo que é necessário à nossa
subsistência, e não, abusar da misericórdia divina suplicando sempre por um
corpo mais perfeito, aquilo que nos encantou numa vitrine, ou o que o vizinho,
parente ou concorrente conseguiram alcançar. Olho grande ou olho gordo tornam a
pessoa ansiosa e eternamente insatisfeita. Pais são responsáveis por satisfazer
as necessidades, e não necessariamente os desejos e expectativas mirabolantes
de seus filhos. Um trabalho digno é sem dúvida uma súplica bem mais sensata do
que pedir para ganhar na loteria. Ou, o que seria ainda pior, poder usufruir de
uma herança, mesmo que para isso tenha que almejar pela perda dos pais, do
companheiro, do sócio e de tantos outros consórcios mais.
🤔 Uma
regra de ouro para atrair o "Novo" é sugerida pela Sabedoria:
reclamar menos e agradecer mais. O tempo que investimos em rancor, amargura,
ressentimento e reclamações, é literalmente um tempo perdido. Quando
reconhecemos e agradecemos mais pelo que já temos, sem obsessão em forma de
súplica por aquilo que ainda "não temos", acabamos nos surpreendendo:
terminamos sendo agraciados ainda mais com surpresas gratificantes "até quando" e "quando
menos" esperamos. A energia que corre em nossa mente é como o sangue que
corre em nossas veias: precisa ser de boa, se possível de excelente qualidade.
Se aprendemos a ser felizes com o pouco, é certo que o muito não nos trará
inquietude e ansiedade. A experiência tem mostrado que a ambição impede dormir
bem, e a inveja deixa sufocado até mesmo quem muito tem.
🫢
"Novo" tem que ser em primeiríssimo
lugar eu, você, e não os outros e tampouco o ano que bate à porta.
Desejar a alguém um feliz Natal, aniversário ou "Ano Novo", deve ser
antes de tudo expressão de um compromisso: comprometo-me a me esforçar para ser
diferente e melhor para com você, para com nosso vínculo, para com tudo que
diga a nosso respeito, para que assim o
meu e seu ano seja melhor! Votos e augúrios são uma espécie de compromisso, não
uma promessa por um lado e tampouco somente uma carta de boas intenções por
outro. Se não formos capazes ou não estivermos dispostos a ser melhores e
diferentes, melhor não fazermos votos e nem expressarmos felicitações. Energia
positiva se traduz em gestos e compromissos, sejam eles explicitados de forma
clara ou não. Todo voto ou desejo deve ser um compromisso assumido de sermos
parte do "Novo" que desejamos a alguém. E, claro, do "Novo"
que desejamos a nós mesmos.
🤗
Felicitar e desejar o "Novo" significa também estar disposto a
compartilhar toda energia positiva e construtiva com a qual somos agraciados.
Para que isso seja possível é preciso expandir ao máximo nossos conceitos de
"pátria", "próximo", "família",
"irmãos", para que o "Novo" esteja ao alcance de todos, sem
distinção. Boa parte do que somos ou possuímos não nos veio senão por dom e
graça; apenas a outra parte reflete nosso esforço e nosso mérito. Tudo que
estiver ao nosso alcance pode e deve ser compartilhado: física, material,
afetiva, emocional e humanamente. Todos precisam e são merecedores de um
quinhão dos benefícios de nosso êxito e
de nosso sucesso na vida, para poderem nutrir expectativas não só de um ano
melhor, mas também de uma vida melhor. Não ajuntemos e acumulemos apenas para
nós mesmos: a chuva e o sol nascem para todos, sem qualquer tipo de
preconceito, seleção ou discriminação. Cada um de nós pode ser ao menos parte
do "Novo" na vida de alguém.
🤫 Ser
canal e veículo para que o "Novo" aconteça significa também aprender
a exercitar nosso contraponto até encontrarmos a excelência do nosso equilíbrio
pessoal. Se por hábito e inatamente costumamos falar muito, procuremos ouvir
mais; se temos o costume de falar alto, diminuamos progressivamente o tom; se
pouco contribuímos com as tarefas comuns, esforcemo-nos um pouco mais
progressivamente; se perdemos facilmente a calma, procuremos ser mais
tolerantes; se temos dificuldade em demonstrar afeto, determinemo-nos a ousar
um pouco mais; e por aí segue o leque das possibilidades. Os elos e os vínculos
entre as pessoas são construídos com pequenos gestos, poucas palavras, e muito,
muito afeto. Se não foi bem esse o nosso legado como filhos, não façamos disso
uma desculpa: "construamo-lo" para com os nossos entes queridos, não
importa o tempo e o quanto for necessário para isso. Cada vida singular é
construída de certo número de anos. Viver muito é muito bom, mas viver bem e
cercado de afeto é melhor ainda. Ser "Novo, tornar-se "Novo" a cada dia e a cada
oportunidade: o Novo Ano nos coloca também esse difícil mas precioso desafio.
🫢
"Tornar novas todas as coisas", incluindo o ano entrante, pode ser
também estabelecer um pacto conosco mesmos no sentido de não explorar as
pessoas: em sentido nenhum, e quem quer que elas sejam. Não importa o
quanto estejamos lhes pagando por um serviço, a posição que estamos ocupando,
nossa classe ou nosso status social. Se servir é um dom, sentir-se explorado
fere, machuca, além de ser expressão de
maldade. Por outro lado, uma palavra de gratidão, um gesto inesperado, um
estimulo ou um simples "muito obrigado" possuem um valor terapêutico
maior que qualquer cifra monetária. A humanidade de uma pessoa - sua dignidade,
se preferirmos - não se mede antes em números ou cifras, mas sobretudo em
palavras e gestos de conforto, gratidão e reconhecimento. Isso não significa de
forma alguma menosprezar e menos ainda ignorar a pobreza e a miséria real das
pessoas. Mas é preciso ter cuidado: afeição desprovida de justiça expressa
hipocrisia, generosidade que nasce da
exploração espelha falsidade.
🥳
"Professores são pesados: afundam! Palhaços são leves: flutuam!". Calma!
Nada contra os professores e educadores! São e continuarão sendo com certeza
nossos grandes mestres. A analogia pede porém passagem para que possa falar da
"leveza", da "sensibilidade" e da "delicadeza".
Todos somos como pedras preciosas que precisam passar pelo cadinho, ser
"polidas",
"lapidadas", para que assim possamos cumprir de forma
eficiente e melhor nossa missão no planeta. O "Novo" de um novo ano
pressupõe também esse processo de transformação da "rudeza", da
"aspereza" e da "rispidez" em "leveza" ,
"brandura", "candura", "suavidade" e
"amabilidade". Claro que renovar-se nesse sentido não é tarefa fácil,
principalmente para os que se consideram "por natureza" rígidos, pouco maleáveis, e
por vezes duros de coração. Mas toda virtude consiste antes de tudo no esforço
e na disposição, e não necessariamente no "quantum" da aquisição.
Gratificante é saber que se há propósito em ação, é certeza de haver graça em
jogo. Mas todo dom e toda graça supõem a natureza, contam com ela, e pouco ou
nada podem por vezes sem ela. Se o antigo foi ou era rude, bruto ou "casca
grossa" como se diz, o "Novo" pode ser menos, cada vez menos, quem sabe até o ponto
de entrelaçar-se na linha do tempo com a leveza, a serenidade, a benevolência e
a paz. Como qualquer músculo de nosso corpo, requer-se para isso treino,
persistência, e acima de tudo o mais importante: não desistir jamais!👨🎓Se
"chronos" é graça, "kairós" é construção. Cada ano que
chega, e que nos é concedido, não é novo nem velho: em si mesmo é apenas e tão
somente "chronos", cronologicamente passível de ser medido em meses,
dias, horas, minutos e segundos; assim como por esta ou aquela estação. Para
ser ou se transformar em "kairós" - "Novo", como almejamos
- "chronos" precisa ser permeado de mudanças, transformações,
ressignificações e rematrizações. Fisica, material, temporal e espacialmente
cada ano será sempre um "ano velho", a cada ano cada vez mais velho.
Isso é "Chronos", e isso é absolutamente "inevitável".
Mental, espiritual, afetiva e emocionalmente, esse mesmo ano estará sempre
aberto ao novo, ao diferente, à completude e ao amadurecimento: isso é
"kairós", e isso é absolutamente "opcional". Desafiar
"chronos" resultará sempre numa mera perda de tempo: mais cedo ou mais
tarde, como afirma Rubem Alves, "o fio de ouro se romperá", para
todos e para cada um de nós. Invistamos pois
todo o nosso melhor no que é "opcional" e está ao nosso
alcance - "kairós" - e sejamos criteriosos nessa escolha. O que
chamamos de "felicidade" transcorre sim, com certeza, na linha do
tempo de "chronos". Mas só vamos encontrá-la e experimentá-la no
inevitável entrelaçamento com "kairós". Caso contrário, o que
chamamos de "eternidade" não será mais que uma "inevitável,
eterna e absoluta perda de tempo". O "Novo" do ano entrante não
chega com a "virada" do ano: precisa ser construído e forjado a cada
novo mês, dia, hora, minuto e segundo! Feliz Construção do "Novo" pra
você! Feliz Vida Nova para todos e para cada um de nós!
(*) Texto enviado por whatsapp, de Vitória(ES)
por L.S.M em 01/01/2024.
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