quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

SANTO AGOSTINHO Com o diabo no Couro [O Demônio] “O demônio é um cão acorrentado, pode ladrar muito, mas só faz mal a quem se lhe chegue perto” (Santo Agostinho) Como já foi dito o demônio pode ser tudo, de rato a leão, menos burro. Ao menos no tangente à inteligência. As Sagradas Escrituras, a Tradição e o Magistério da Igreja (a quem Cristo deu a ordem e a autoridade de ir e ensinar[1]), nos ensinam que os demônios são criaturas como nós, entretanto sua natureza é a angélica, pois são anjos, ainda que decaídos. E os anjos, por sua vez, são seres quase puramente espirituais (só Deus é puro espírito), portanto, invisíveis, mais inteligentes e poderosos que os homens, além de não estar presos ao tempo e ao espaço como estamos. Seu mundo é o metafísico enquanto o nosso é o físico. Mas como podem interagir com o mundo físico e influenciar as decisões humanas, não fosse a onipotência e a misericórdia divinas seu estrago seria ainda maior, porque a natureza angélica decaída só deseja e faz o mal, assim como a nossa em função do pecado original, que aqueles experimentaram primeiro e depois nos induziram. A diferença é que enquanto vivemos podemos contar com a Graça e os Sacramentos[2], que ajudam a combater essa natureza manchada e os próprios demônios (cf. Efe VI, 10-18; Tg V, 13ss), o que para estes últimos é impossível devido a que não podem mais arrepender-se uma vez que sua decisão foi definitiva em função de não estarem, como dito, presos ao tempo e ao espaço, tendo assim pleno conhecimento da consequência de seu ato. Ao contrário, porém, do que se pensa os demônios não são seres completamente maus. Eles são moral, não essencialmente maus, pois nada é mal por essência/natureza. Para que se entenda este ponto de suma importância tomemos como exemplo um símbolo denominado yn yang. Um círculo com um tracejado ao meio em forma de “S”. Uma metade quase totalmente branca com um ponto preto e a outra quase totalmente preta com um ponto branco. Pois bem, dentre os significados possíveis deste símbolo ligado ao taoísmo gnóstico[3] está o de afirmar que não há nada no mundo completamente bom ou mau. Todo mal possui um bem e todo bem um mal. Daí o ponto preto na superfície quase totalmente branca e vice-versa. Ocorre que isto é um sofisma, que como já foi visto são ideias ou doutrinas que misturam verdade e mentira para poder enganar mais fácil e rápido quem não conhece a verdade das coisas, mas vive de ouvir coisas e as considerar verdades. E onde estariam aqui uma e outra? Simples. A verdade está na afirmação de que não há um ser completamente mau. E a mentira, em afirmar o seu oposto. Por quê? Porque há um ser completamente bom: o Ser por essência. Então nem Satanás é completamente mau? Não. Simplesmente porque Deus fez tudo bom, até os demônios, que antes de se tornarem tais por livre e espontânea vontade, eram anjos bons como todos os outros. Também podemos responder de outra forma: porque tudo o que existe possui existência, e a existência (o existir) é em si algo bom; portanto, ainda que Satanás quisesse ser absolutamente mau como Deus é absolutamente bom (porque é a Bondade mesma), ainda que desejasse ser o ponto totalmente preto em oposição ao totalmente branco, jamais poderia, pois ele existe, possui existência[4]. E ainda poderíamos acrescentar os próprios dons, ainda que os utilize para o mal, tal como nós o fazemos com os nossos. Por isso ao contemplar o conjunto da criação viu Deus que tudo era muito bom (cf. Gen I, 31). E isto inclui os anjos. Para retomar o fio condutor lembremos que os demônios são seres desprovidos de bondade (são maus moralmente) porque perderam para sempre a capacidade de amar ou de ter compaixão, posto que não passaram na prova, como ocorre com os condenados no Inferno. Devido a esta incapacidade passarão a desejar para nós a mesma condenação que tiveram a partir de sua queda, em outras palavras, desejarão firmemente que tomemos o mesmo tombo que tomaram, que dividamos com eles, por ódio e inveja, a sua infelicidade eterna. E lutam diária e ferozmente por isso. Como são mais inteligentes e astutos armam laços para nos prender e arrastar ao abismo eterno e sem volta (cf. Jd 5-8; Ap XIV, 9-12), ao contrário do que creem os Adventistas e as Testemunhas de Jeová, por exemplo, e tantas almas por demais bonachonas e misericordiosas. Daí que há dois equívocos nos quais jamais poderíamos nos deixar equivocar. Jamais se poderia subestimar e/ou superestimar os demônios. Para o primeiro erro, três passagens, que falarão por si, servirão de alerta: comecemos novamente por São Judas: “Quando o Arcanjo Miguel, disputando com o demônio, altercava sôbre o corpo de Moisés, não se atreveu a proferir contra êle a sentença de maldição, mas disse (somente): Reprima-te o Senhor. Êstes, porém, blasfemam de todas as coisas que ignoram…” (v. 9s)[5]. Passemos novamente por S. Pedro, o primeiro Papa, em sua segunda epístola: … e principalmente aqueles que vão atrás da carne na imunda concupiscência, e desprezam a soberania (de Cristo), audaciosos, comprazendo-se em si mesmos, não temem introduzir (novas) seitas, blasfemando; enquanto que os anjos, que são maiores em fortaleza e robustez, não levam (diante de Deus) juízo de maldição uns contra os outros. Mas estes, como animais sem razão, naturalmente feitos para a presa e para a perdição, blasfemando das coisas que ignoram, perecerão por sua própria corrupção, recebendo a paga da (sua) iniquidade… (II, 10-13). E terminemos com o Eclesiástico, um dos sete livros que lamentavelmente não figuram nas bíblias protestantes, para sua infelicidade: “Quando o ímpio amaldiçoa o demônio, amaldiçoa a si mesmo” (XXI, 30). Para o segundo erro, outras três advertências. Comecemos por Tobias (outro dos sete): “E Tobias, lembrando-se do que lhe tinha dito o anjo, tirou da sua bôlsa um pedaço de fígado do peixe e colocou-o sôbre uns carvões acessos. Então o anjo Rafael pegou no demônio, e ligou-o no deserto do alto Egito” (VIII, 2s). Passemos por Jó: Satanás, respondendo, disse: Porventura Jó teme (ou serve) debalde a Deus?… Não abençoaste as obras de suas mãos, e os seus bens não se têm multiplicado sobre a terra? Mas estende um pouco a tua mão, e toca em tudo o que ele possui, e verás se ele não te amaldiçoa na tua cara. Disse, pois, o Senhor a Satanás: Pois bem, tudo o que ele tem está em teu poder; somente não estendas a tua mão contra ele (I, 9-12). E terminemos com Baruque (outro dos sete): Fostes vendidos às nações, não para perdição, mas por ter provocado a indignação de Deus; por isso fostes entregues aos adversários. Porque irritastes aquele que vos criou, o Deus eterno, sacrificando aos demônios e não a Deus. (…) E agora em que vos posso eu ajudar? Porque aquele que fez vir sobre vós os males, esse mesmo vos livrará das mãos de vossos inimigos (III, 6s. 17s). O que temos aqui e o que temos nas seitas, especialmente pentecostais e carismáticas? Aqui temos o que já foi exposto, que os demônios não se subestimam ou se superestimam. Como ensinava S. Agostinho, enquanto se mantiver a devida distância o demônio não ultrapassará o limite da corrente que o amarra e nós não sofreremos as consequências (cf. Tg IV, 7). Mas bastará entrar em seu raio de alcance para a mordida ser, muitas vezes, fatal. Nas seitas, por seu turno, temos o que a Bíblia não manda fazer. Vídeos postados na internet e a própria realidade servirão de prova. Em uns e outros vemos cenas no mínimo temerárias para quem se intitula evangélico. Confiando em seu livre exame, induzindo ao erro um povo religiosamente analfabeto, mesmo entre os inteligentes e cultos, os pastores vêm dando verdadeiros shows de exibicionismo, atraindo fãs de programas de auditório, novelas e melodramas. Tamanha a familiaridade entre os tais “homens de Deus” com os demônios que podemos desconfiar de certa cumplicidade. Não podemos deixar de ficar com a nítida impressão de que nos bastidores, antes das sessões de descarrego, das curas, milagres e “sai capeta” há mesmo certo conluio, a exemplo do que pretendeu o esperto escriba com Cristo (cf. Mt VIII, 18ss), a exemplo do que tentou Simão Mago com os Apóstolos (cf. At VIII, 9-24) e a exemplo do que fazem os nossos políticos. O bom senso e a razão nos levam a crer que nesta relação há alguma trampa[6], seja em forma de conchavo com os demônios seja com os supostamente endemoniados e enfermos. Ou com ambos, o que não é improvável. Ocorre que se nem “os anjos superiores em fortaleza e robustez” ousam desafiar os que outrora foram seus pares, mesmo sendo os primeiros mais fortes e robustos devido a graça que mantiveram, perguntamos ainda outra vez: “onde está na Bíblia” o respaldo para os desafios, as chacotas, os enfrentamentos, as afrontas, atrevimentos, juízos de maldição e provocações de todo gênero que fazem aos demônios esses pastores e apóstolos? Em que livro, capítulo ou versículo tais pessoas encontram Nosso Senhor e os discípulos dando o exemplo, utilizando para expulsar os demônios a pantomima usada em cultos e sessões de descarrego? Como então, de posse de nossas faculdades mentais e de uma boa dose de senso comum, podemos não ver aí mais que teatro, um verdadeiro circo (de horrores) montado? O fato é que os palhaços já não estão no picadeiro, mas nas arquibancadas, pois vivemos o tempo em que já não se suporta a sã doutrina, onde a cada esquina se fabricam mestres e deuses segundo o gosto pessoal de cada um. Tal macaca S. João bem a traduziu ao retratar as personagens do Falso profeta e do Anticristo (cf. Ap XIII) como bestas, comparando ainda o seu chefe a um Dragão. Não precisamos ir longe, algumas películas cinematográficas[7] nos dão mostras críveis de como agem os demônios, como devem agir os verdadeiros exorcistas e como agem os verdadeiros possessos com os falsos exorcistas. Há também na internet vídeos de exorcismos reais com exorcistas reais: sacerdotes católicos ou pessoas devidamente autorizadas, pois também aqui, a despeito da livre interpretação protestante de Lc IX, 49s, é necessário envio e autorização especial por parte da Igreja[8] para que tudo seja feito “convenientemente e com ordem”. Vozes de dentro do meio evangélico já nos confidenciaram achar um tanto estranho “viver falando no diabo mais do que em Deus”, ou ainda “ver capeta em tudo”, dedicando boa parte dos cultos a dar um chega pra lá nos supostos demônios: no fundo, nada que remédios, terapias ou uma boa confissão sacerdotal não resolvesse. A Igreja possui verdadeiros manuais de demonologia nos quais há séculos se estuda e aprofunda[9]. Desses estudos surgiram ritos e instruções próprios para orientar e autorizar aqueles que receberiam a missão do enfrentamento demoníaco. Apesar da Igreja, de um tempo para cá, ter negligenciado este tema, o que acabou abrindo espaço para seitas teatrais e sensacionalistas, ela nunca deixou de reconhecer a existência dos demônios e a seriedade com que o tema deve ser tratado[10]. E não poderia ser diferente, visto que em sua trajetória muitos foram os homens e mulheres – incluindo papas – a quem Deus conferiu experiências místicas autênticas e reconhecidas pela autoridade eclesiástica, com visões do Inferno, lutas espirituais contra os anjos caídos e mesmo casos raros de possessão[11], tudo sem histeria, sensacionalismo, pirotecnia. Tais relatos foram em grande parte registrados e posteriormente submetidos à Igreja, a quem pertence a palavra final em todo assunto ligado à fé e à moral. De outro lado, não são poucos os casos de pseudoexorcistas e pastores que batem às portas de padres e exorcistas verdadeiros. Depois de anos de shows de “exorcismo”, “curas”, “milagres”, “descarregos” e “sai capeta”, chegam confessando estar, eles mais que qualquer outro, com o diabo no couro[12]. Não raro acabam em clínicas psiquiátricas e manicômios, terminando sua triste vida crendo-se o próprio satanás, em carne e osso: fim trágico para quem faz comédia com coisa séria. Devido à atração pelo espetacular, sensacional e pirotécnico grande parte das pessoas, mesmo no meio católico, tem se deixado levar por esses embustes de ilusionismo. Nada, porém, é novidade. Já nos tempos de Cristo os judeus buscavam o milagre do pão ao invés do Pão vivo que descera dos céus. Ia-se atrás do milagre e não de Quem os fazia. Hoje os protestantes, além de não ter o Pão do céu, a Eucaristia, continuam indo atrás dos milagres. Mas de algumas coisas não se pode olvidar, e a lição vem do deserto: Cristo recusou, dos reinos da terra “… o poder de tudo isto, e a glória dêstes…” oferecidos pelo demônio. E oferecidos “… porque êles foram-me dados, e eu dou-os a quem me parece” (Lc IV, 5ss). Não tenhamos ilusões de que o demônio não exista ou não possua algum poder, pois “… todo o mundo está sob o (jugo do espírito) maligno” (1 Jo V, 19). Ele pode oferecer porque pode dar. Inclusive paz. Mas uma outra, baseada no respeito humano que é o respeito ao erro, à liberdade para errar, que resulta no respeito ao pecado, à blasfêmia, à heresia e à negação de Deus e do mundo por Ele ordenado. É esta a paz que os governos vêm implantando por força de lei, sendo tolerada, temida, bem recebida e difundida. Esquecem que para existir respeito pelo pecador não o deve existir por seu pecado[13] e que a paz do mundo é ilusória. Todavia, este poder satânico tem limites e está sujeito a quem o criou. Todos os reinos da terra (poder, status, riqueza) são “esterco” comparados à Deus, nossa glória e recompensa eternas (cf. Fil III, 8); isso declarado por quem viu o paraíso “… e ouviu palavras inefáveis que não é lícito (ou possível) a um homem proferi-las…” (2 Cor XII, 1-4). Em tempo: o demônio continua, como sempre, jogando o mesmo jogo, mudando somente a embalagem para que as vendas não caiam. Duas sempre foram suas estratégias preferidas: ou se esconder ou se mostrar por demais. As duas proporcionarão um mesmo resultado a longo prazo, passando por dois outros a curto e médio: primeiro divide-se as categorias de homens entre os que o subestimam e os que o superestimam. Passado o tempo, ambos o desacreditarão. Nesse momento já terão avançado o limite da corrente sem dar-se conta. ________________________________________ NOTAS [1] Ver capítulo VII. [2] Sobre os Sacramentos há a leitura do Catecismo de S. Pio X, elaborado em forma de perguntas e respostas e indicado ao final das postagens. Para crianças (e adultos) há o Catecismo Ilustrado, também ao final. Para fixar nestes. [3] Termo que une dois outros: Taoísmo e Gnose. O Taoísmo faz parte do rol das falsas religiões orientais, sendo oriundo do Japão. A Gnose por sua vez remonta ao início da humanidade; o nome vem do grego e significa “conhecimento”. Prega que o homem é uma pequena parte da divindade, uma “centelha divina”, mas que está aprisionado pela matéria (o corpo, p. ex.). Por isso é preciso desprender-se dela, porque é má. Esse desprendimento pode se dar, por um lado através da gnose adquirida em seitas iniciáticas e secretas como a Maçonaria, Rosa Cruz etc, ou em religiões que possuam muito dos ingredientes gnósticos em seus ensinamentos, como o Taoísmo, Budismo, Hinduísmo etc., ou ainda em movimentos gnósticos como a New Age (Nova Era) e o Hare Krishna. Por outro lado, destruindo a matéria para se desfazer a “prisão”. Não por acaso tudo o que hoje conhecemos como “cultura da morte” (suicídio, homicídio, aborto, eutanásia, união homossexual, guerras, genocídios, esterilização e controle populacional…) tem como base e fundamento o pensamento gnóstico. [4] Doutrina extraída de Santo Agostinho em A Verdadeira Religião. [5] Tomando de empréstimo este trecho de S. Judas, temos aqui um perfeito exemplo de que a própria Bíblia não conta só com o que “está na Bíblia”. De fato, esta narrativa da disputa do corpo de Moisés por São Miguel e Satanás, citada pelo Apóstolo, não está na Bíblia. E ela não será a única. A este propósito ver capítulo V – Os dogmas protestantes. [6] Do espanhol: armadilha, arapuca, engano. [7]Tais como: O exorcista, O Exorcismo de Emile Rose, O ritual e Possuídos. [8] Ver Pe. Gabrielle Amort em Bibliografia/Fontes ao final. [9] Como nos relata, por exemplo, o livro “Existe o Inferno? – provas pedidas ao bom senso”, do Pe. Lacroix. [10] A bem da verdade, já no final do pontificado de João Paulo II vemos uma necessária retomada por parte da Igreja em relação ao tema. Com Bento XVI muitas iniciativas como a da orientação de que cada Diocese possua um exorcista foi posta em pauta e se encontra em andamento (ver: http://pt.aleteia.org/2014/07/02/vaticano-reconhece-a-associacao-internacional-dos-exorcistas/). [11] Tais são os casos de S. Tereza D’Ávila/de Jesus, S. Faustina Kowalska, S. Cura d’Ars, o Papa Leão XIII e S. Pio de Pietrelcina; ou ainda das crianças (pastorinhos) de Fátima. No século passado Amnelise Michel, piedosa jovem católica alemã, pela permissão divina foi possuída por demônios para provar uma vez mais a sua existência a um mundo cegado pelo materialismo, agnosticismo e ateísmo. Sua história é retratada no filme “O exorcismo de Emily Rose” acima citado. [12] Em seus livros e em entrevistas pelo mundo o Pe. Amort, recentemente falecido, nos conta casos peculiares envolvendo pessoas – inclusive conhecidas no mundo protestante – que afrontaram os demônios, a exemplo dos sete irmãos judeus (cf. At XIX, 11-18), sem a mínima prudência ou autoridade, tendo, como estes últimos, trágicos desfechos. [13] Conforme o demonstrou o Senhor em Jo VIII, 1-11. https://irmandadedocarmo.org/2017/09/16/capitulo-xi-com-o-diabo-no-couro-o-demonio/

 

 

SANTO AGOSTINHO

Com o diabo no Couro [O Demônio]

“O demônio é um cão acorrentado, pode ladrar muito, mas só faz mal a quem se lhe chegue perto”

(Santo Agostinho)

 

Como já foi dito o demônio pode ser tudo, de rato a leão, menos burro. Ao menos no tangente à inteligência.

As Sagradas Escrituras, a Tradição e o Magistério da Igreja (a quem Cristo deu a ordem e a autoridade de ir e ensinar[1]), nos ensinam que os demônios são criaturas como nós, entretanto sua natureza é a angélica, pois são anjos, ainda que decaídos. E os anjos, por sua vez, são seres quase puramente espirituais (só Deus é puro espírito), portanto, invisíveis, mais inteligentes e poderosos que os homens, além de não estar presos ao tempo e ao espaço como estamos. Seu mundo é o metafísico enquanto o nosso é o físico. Mas como podem interagir com o mundo físico e influenciar as decisões humanas, não fosse a onipotência e a misericórdia divinas seu estrago seria ainda maior, porque a natureza angélica decaída só deseja e faz o mal, assim como a nossa em função do pecado original, que aqueles experimentaram primeiro e depois nos induziram. A diferença é que enquanto vivemos podemos contar com a Graça e os Sacramentos[2], que ajudam a combater essa natureza manchada e os próprios demônios (cf. Efe VI, 10-18; Tg V, 13ss), o que para estes últimos é impossível devido a que não podem mais arrepender-se uma vez que sua decisão foi definitiva em função de não estarem, como dito, presos ao tempo e ao espaço, tendo assim pleno conhecimento da consequência de seu ato.

Ao contrário, porém, do que se pensa os demônios não são seres completamente maus. Eles são moral, não essencialmente maus, pois nada é mal por essência/natureza. Para que se entenda este ponto de suma importância tomemos como exemplo um símbolo denominado yn yang. Um círculo com um tracejado ao meio em forma de “S”. Uma metade quase totalmente branca com um ponto preto e a outra quase totalmente preta com um ponto branco. Pois bem, dentre os significados possíveis deste símbolo ligado ao taoísmo gnóstico[3] está o de afirmar que não há nada no mundo completamente bom ou mau. Todo mal possui um bem e todo bem um mal. Daí o ponto preto na superfície quase totalmente branca e vice-versa. Ocorre que isto é um sofisma, que como já foi visto são ideias ou doutrinas que misturam verdade e mentira para poder enganar mais fácil e rápido quem não conhece a verdade das coisas, mas vive de ouvir coisas e as considerar verdades.

E onde estariam aqui uma e outra? Simples. A verdade está na afirmação de que não há um ser completamente mau. E a mentira, em afirmar o seu oposto. Por quê? Porque há um ser completamente bom: o Ser por essência.

Então nem Satanás é completamente mau? Não. Simplesmente porque Deus fez tudo bom, até os demônios, que antes de se tornarem tais por livre e espontânea vontade, eram anjos bons como todos os outros. Também podemos responder de outra forma: porque tudo o que existe possui existência, e a existência (o existir) é em si algo bom; portanto, ainda que Satanás quisesse ser absolutamente mau como Deus é absolutamente bom (porque é a Bondade mesma), ainda que desejasse ser o ponto totalmente preto em oposição ao totalmente branco, jamais poderia, pois ele existe, possui existência[4]. E ainda poderíamos acrescentar os próprios dons, ainda que os utilize para o mal, tal como nós o fazemos com os nossos. Por isso ao contemplar o conjunto da criação viu Deus que tudo era muito bom (cf. Gen I, 31). E isto inclui os anjos.

Para retomar o fio condutor lembremos que os demônios são seres desprovidos de bondade (são maus moralmente) porque perderam para sempre a capacidade de amar ou de ter compaixão, posto que não passaram na prova, como ocorre com os condenados no Inferno. Devido a esta incapacidade passarão a desejar para nós a mesma condenação que tiveram a partir de sua queda, em outras palavras, desejarão firmemente que tomemos o mesmo tombo que tomaram, que dividamos com eles, por ódio e inveja, a sua infelicidade eterna. E lutam diária e ferozmente por isso.

Como são mais inteligentes e astutos armam laços para nos prender e arrastar ao abismo eterno e sem volta (cf. Jd 5-8; Ap XIV, 9-12), ao contrário do que creem os Adventistas e as Testemunhas de Jeová, por exemplo, e tantas almas por demais bonachonas e misericordiosas. Daí que há dois equívocos nos quais jamais poderíamos nos deixar equivocar. Jamais se poderia subestimar e/ou superestimar os demônios. Para o primeiro erro, três passagens, que falarão por si, servirão de alerta: comecemos novamente por São Judas: “Quando o Arcanjo Miguel, disputando com o demônio, altercava sôbre o corpo de Moisés, não se atreveu a proferir contra êle a sentença de maldição, mas disse (somente): Reprima-te o Senhor. Êstes, porém, blasfemam de todas as coisas que ignoram…” (v. 9s)[5].

Passemos novamente por S. Pedro, o primeiro Papa, em sua segunda epístola:

… e principalmente aqueles que vão atrás da carne na imunda concupiscência, e desprezam a soberania (de Cristo), audaciosos, comprazendo-se em si mesmos, não temem introduzir (novas) seitas, blasfemando; enquanto que os anjos, que são maiores em fortaleza e robustez, não levam (diante de Deus) juízo de maldição uns contra os outrosMas estescomo animais sem razão, naturalmente feitos para a presa e para a perdição, blasfemando das coisas que ignoramperecerão por sua própria corrupção, recebendo a paga da (sua) iniquidade… (II, 10-13).

E terminemos com o Eclesiástico, um dos sete livros que lamentavelmente não figuram nas bíblias protestantes, para sua infelicidade: “Quando o ímpio amaldiçoa o demônio, amaldiçoa a si mesmo” (XXI, 30).

Para o segundo erro, outras três advertências. Comecemos por Tobias (outro dos sete): “E Tobias, lembrando-se do que lhe tinha dito o anjo, tirou da sua bôlsa um pedaço de fígado do peixe e colocou-o sôbre uns carvões acessos. Então o anjo Rafael pegou no demônio, e ligou-o no deserto do alto Egito” (VIII, 2s).

Passemos por Jó:

Satanás, respondendo, disse: Porventura Jó teme (ou serve) debalde a Deus?… Não abençoaste as obras de suas mãos, e os seus bens não se têm multiplicado sobre a terra? Mas estende um pouco a tua mão, e toca em tudo o que ele possui, e verás se ele não te amaldiçoa na tua cara. Disse, pois, o Senhor a Satanás: Pois bem, tudo o que ele tem está em teu poder; somente não estendas a tua mão contra ele (I, 9-12).

E terminemos com Baruque (outro dos sete):

Fostes vendidos às nações, não para perdição, mas por ter provocado a indignação de Deus; por isso fostes entregues aos adversários. Porque irritastes aquele que vos criou, o Deus eterno, sacrificando aos demônios e não a Deus. (…) E agora em que vos posso eu ajudar? Porque aquele que fez vir sobre vós os males, esse mesmo vos livrará das mãos de vossos inimigos (III, 6s. 17s).

O que temos aqui e o que temos nas seitas, especialmente pentecostais e carismáticas?

Aqui temos o que já foi exposto, que os demônios não se subestimam ou se superestimam. Como ensinava S. Agostinho, enquanto se mantiver a devida distância o demônio não ultrapassará o limite da corrente que o amarra e nós não sofreremos as consequências (cf. Tg IV, 7). Mas bastará entrar em seu raio de alcance para a mordida ser, muitas vezes, fatal.

Nas seitas, por seu turno, temos o que a Bíblia não manda fazer. Vídeos postados na internet e a própria realidade servirão de prova. Em uns e outros vemos cenas no mínimo temerárias para quem se intitula evangélico. Confiando em seu livre exame, induzindo ao erro um povo religiosamente analfabeto, mesmo entre os inteligentes e cultos, os pastores vêm dando verdadeiros shows de exibicionismo, atraindo fãs de programas de auditório, novelas e melodramas. Tamanha a familiaridade entre os tais “homens de Deus” com os demônios que podemos desconfiar de certa cumplicidade. Não podemos deixar de ficar com a nítida impressão de que nos bastidores, antes das sessões de descarrego, das curas, milagres e “sai capeta” há mesmo certo conluio, a exemplo do que pretendeu o esperto escriba com Cristo (cf. Mt VIII, 18ss), a exemplo do que tentou Simão Mago com os Apóstolos (cf. At VIII, 9-24) e a exemplo do que fazem os nossos políticos. O bom senso e a razão nos levam a crer que nesta relação há alguma trampa[6], seja em forma de conchavo com os demônios seja com os supostamente endemoniados e enfermos. Ou com ambos, o que não é improvável.

Ocorre que se nem “os anjos superiores em fortaleza e robustez” ousam desafiar os que outrora foram seus pares, mesmo sendo os primeiros mais fortes e robustos devido a graça que mantiveram, perguntamos ainda outra vez: “onde está na Bíblia” o respaldo para os desafios, as chacotas, os enfrentamentos, as afrontas, atrevimentos, juízos de maldição e provocações de todo gênero que fazem aos demônios esses pastores apóstolos? Em que livro, capítulo ou versículo tais pessoas encontram Nosso Senhor e os discípulos dando o exemplo, utilizando para expulsar os demônios a pantomima usada em cultos e sessões de descarrego? Como então, de posse de nossas faculdades mentais e de uma boa dose de senso comum, podemos não ver aí mais que teatro, um verdadeiro circo (de horrores) montado? O fato é que os palhaços já não estão no picadeiro, mas nas arquibancadas, pois vivemos o tempo em que já não se suporta a sã doutrina, onde a cada esquina se fabricam mestres e deuses segundo o gosto pessoal de cada um. Tal macaca S. João bem a traduziu ao retratar as personagens do Falso profeta e do Anticristo (cf. Ap XIII) como bestas, comparando ainda o seu chefe a um Dragão.

Não precisamos ir longe, algumas películas cinematográficas[7] nos dão mostras críveis de como agem os demônios, como devem agir os verdadeiros exorcistas e como agem os verdadeiros possessos com os falsos exorcistas. Há também na internet vídeos de exorcismos reais com exorcistas reais: sacerdotes católicos ou pessoas devidamente autorizadas, pois também aqui, a despeito da livre interpretação protestante de Lc IX, 49s, é necessário envio e autorização especial por parte da Igreja[8] para que tudo seja feito “convenientemente e com ordem”.

Vozes de dentro do meio evangélico já nos confidenciaram achar um tanto estranho “viver falando no diabo mais do que em Deus”, ou ainda “ver capeta em tudo”, dedicando boa parte dos cultos a dar um chega pra lá nos supostos demônios: no fundo, nada que remédios, terapias ou uma boa confissão sacerdotal não resolvesse.

A Igreja possui verdadeiros manuais de demonologia nos quais há séculos se estuda e aprofunda[9]. Desses estudos surgiram ritos e instruções próprios para orientar e autorizar aqueles que receberiam a missão do enfrentamento demoníaco. Apesar da Igreja, de um tempo para cá, ter negligenciado este tema, o que acabou abrindo espaço para seitas teatrais e sensacionalistas, ela nunca deixou de reconhecer a existência dos demônios e a seriedade com que o tema deve ser tratado[10]. E não poderia ser diferente, visto que em sua trajetória muitos foram os homens e mulheres – incluindo papas – a quem Deus conferiu experiências místicas autênticas e reconhecidas pela autoridade eclesiástica, com visões do Inferno, lutas espirituais contra os anjos caídos e mesmo casos raros de possessão[11], tudo sem histeria, sensacionalismo, pirotecnia. Tais relatos foram em grande parte registrados e posteriormente submetidos à Igreja, a quem pertence a palavra final em todo assunto ligado à fé e à moral.

De outro lado, não são poucos os casos de pseudoexorcistas e pastores que batem às portas de padres e exorcistas verdadeiros. Depois de anos de shows de “exorcismo”, “curas”, “milagres”, “descarregos” e “sai capeta”, chegam confessando estar, eles mais que qualquer outro, com o diabo no couro[12]. Não raro acabam em clínicas psiquiátricas e manicômios, terminando sua triste vida crendo-se o próprio satanás, em carne e osso: fim trágico para quem faz comédia com coisa séria.

Devido à atração pelo espetacular, sensacional e pirotécnico grande parte das pessoas, mesmo no meio católico, tem se deixado levar por esses embustes de ilusionismo. Nada, porém, é novidade. Já nos tempos de Cristo os judeus buscavam o milagre do pão ao invés do Pão vivo que descera dos céus. Ia-se atrás do milagre e não de Quem os fazia. Hoje os protestantes, além de não ter o Pão do céu, a Eucaristia, continuam indo atrás dos milagres. Mas de algumas coisas não se pode olvidar, e a lição vem do deserto: Cristo recusou, dos reinos da terra “… o poder de tudo isto, e a glória dêstes…” oferecidos pelo demônio. E oferecidos “… porque êles foram-me dados, e eu dou-os a quem me parece” (Lc IV, 5ss). Não tenhamos ilusões de que o demônio não exista ou não possua algum poder, pois “… todo o mundo está sob o (jugo do espírito) maligno” (1 Jo V, 19). Ele pode oferecer porque pode dar. Inclusive paz. Mas uma outra, baseada no respeito humano que é o respeito ao erro, à liberdade para errar, que resulta no respeito ao pecado, à blasfêmia, à heresia e à negação de Deus e do mundo por Ele ordenado. É esta a paz que os governos vêm implantando por força de lei, sendo tolerada, temida, bem recebida e difundida. Esquecem que para existir respeito pelo pecador não o deve existir por seu pecado[13] e que a paz do mundo é ilusória. Todavia, este poder satânico tem limites e está sujeito a quem o criou.

Todos os reinos da terra (poder, status, riqueza) são “esterco” comparados à Deus, nossa glória e recompensa eternas (cf. Fil III, 8); isso declarado por quem viu o paraíso “… e ouviu palavras inefáveis que não é lícito (ou possível) a um homem proferi-las…” (2 Cor XII, 1-4).

Em tempo: o demônio continua, como sempre, jogando o mesmo jogo, mudando somente a embalagem para que as vendas não caiam. Duas sempre foram suas estratégias preferidas: ou se esconder ou se mostrar por demais. As duas proporcionarão um mesmo resultado a longo prazo, passando por dois outros a curto e médio: primeiro divide-se as categorias de homens entre os que o subestimam e os que o superestimam. Passado o tempo, ambos o desacreditarão. Nesse momento já terão avançado o limite da corrente sem dar-se conta.


NOTAS

[1] Ver capítulo VII.

[2] Sobre os Sacramentos há a leitura do Catecismo de S. Pio X, elaborado em forma de perguntas e respostas e indicado ao final das postagens. Para crianças (e adultos) há o Catecismo Ilustrado, também ao final. Para fixar nestes.

[3] Termo que une dois outros: Taoísmo e Gnose. O Taoísmo faz parte do rol das falsas religiões orientais, sendo oriundo do Japão. A Gnose por sua vez remonta ao início da humanidade; o nome vem do grego e significa “conhecimento”. Prega que o homem é uma pequena parte da divindade, uma “centelha divina”, mas que está aprisionado pela matéria (o corpo, p. ex.). Por isso é preciso desprender-se dela, porque é má. Esse desprendimento pode se dar, por um lado através da gnose adquirida em seitas iniciáticas e secretas como a Maçonaria, Rosa Cruz etc, ou em religiões que possuam muito dos ingredientes gnósticos em seus ensinamentos, como o Taoísmo, Budismo, Hinduísmo etc., ou ainda em movimentos gnósticos como a New Age (Nova Era) e o Hare Krishna. Por outro lado, destruindo a matéria para se desfazer a “prisão”. Não por acaso tudo o que hoje conhecemos como “cultura da morte” (suicídio, homicídio, aborto, eutanásia, união homossexual, guerras, genocídios, esterilização e controle populacional…) tem como base e fundamento o pensamento gnóstico.

[4] Doutrina extraída de Santo Agostinho em A Verdadeira Religião.

[5] Tomando de empréstimo este trecho de S. Judas, temos aqui um perfeito exemplo de que a própria Bíblia não conta só com o que “está na Bíblia”. De fato, esta narrativa da disputa do corpo de Moisés por São Miguel e Satanás, citada pelo Apóstolo, não está na Bíblia. E ela não será a única. A este propósito ver capítulo V – Os dogmas protestantes.

[6] Do espanhol: armadilha, arapuca, engano.

[7]Tais como: O exorcistaO Exorcismo de Emile RoseO ritual e Possuídos.

[8] Ver Pe. Gabrielle Amort em Bibliografia/Fontes ao final.

[9] Como nos relata, por exemplo, o livro “Existe o Inferno? – provas pedidas ao bom senso”, do Pe. Lacroix.

[10] A bem da verdade, já no final do pontificado de João Paulo II vemos uma necessária retomada por parte da Igreja em relação ao tema. Com Bento XVI muitas iniciativas como a da orientação de que cada Diocese possua um exorcista foi posta em pauta e se encontra em andamento (ver: http://pt.aleteia.org/2014/07/02/vaticano-reconhece-a-associacao-internacional-dos-exorcistas/).

[11] Tais são os casos de S. Tereza D’Ávila/de Jesus, S. Faustina Kowalska, S. Cura d’Ars, o Papa Leão XIII e S. Pio de Pietrelcina; ou ainda das crianças (pastorinhos) de Fátima. No século passado Amnelise Michel, piedosa jovem católica alemã, pela permissão divina foi possuída por demônios para provar uma vez mais a sua existência a um mundo cegado pelo materialismo, agnosticismo e ateísmo. Sua história é retratada no filme “O exorcismo de Emily Rose” acima citado.

[12] Em seus livros e em entrevistas pelo mundo o Pe. Amort, recentemente falecido, nos conta casos peculiares envolvendo pessoas – inclusive conhecidas no mundo protestante – que afrontaram os demônios, a exemplo dos sete irmãos judeus (cf. At XIX, 11-18), sem a mínima prudência ou autoridade, tendo, como estes últimos, trágicos desfechos.

[13] Conforme o demonstrou o Senhor em Jo VIII, 1-11.

https://irmandadedocarmo.org/2017/09/16/capitulo-xi-com-o-diabo-no-couro-o-demonio/

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