O mal
é um buraco na camisa: não existe, mas existe
A
humanidade não sabe definir o que é o mal, mas alguns exemplos talvez ajudem a
refletir a respeito
O
mal é um buraco na camisa: não existe, mas existe. Este exemplo pode parecer
esdrúxulo, mas não é que existam outros muito melhores. A humanidade, afinal,
não sabe definir o que é o mal, embora não tenham faltado tentativas.
Uma
dessas tentativas é a de entender o mal como uma força oposta ao bem. Deste
ponto de vista, o mal teria existência própria. Existiriam, assim, duas forças
em contínua oposição: uma boa e a outra má. Esta é, grosso modo, a visão
proposta pelo maniqueísmo.
Superando o maniqueísmo
Santo
Agostinho chegou a ser adepto desta visão durante parte da sua juventude, mas,
com o passar do tempo e com as aparas da reflexão, acabou mudando de ideia.
Passou a considerar que o mal não pode ser um ente em si mesmo, porque Deus não
teria criado o mal. O mal, portanto, não pode ser uma força autônoma porque não
pode ser “algo” que exista em si: para Santo Agostinho, o que chamamos de mal é
a própria ausência do bem que poderia ou deveria estar presente.
A
morte é ausência de vida. As trevas são ausência de luz. Os vícios são ausência
de virtude. E essa ausência não é absoluta: onde há vício pode vir a haver
virtude; onde há trevas pode passar a haver luz; onde há morte pode voltar a
haver vida.
O mal não é um ente em si
mesmo
A
perspetiva de que o mal não existe em si mesmo, mas sim como ausência de bem,
já remonta a Platão, que falava das imperfeições deste mundo transitório em
relação a um mundo ideal e perfeito, do qual seríamos apenas sombras
desajeitadas. Retomando alguns lampejos dessa teoria, Santo Agostinho veio a
concordar com o fato de que o mal não tem existência própria: não é um ente,
não é uma criatura. O mal é a falta de um bem que deveria ou poderia estar
presente em outro ente, mas não está.
E
isto se aplica à própria personificação do mal conforme entendida no âmbito
cristão: as criaturas más só existem porque optaram por rejeitar o bem; ou
seja, elas se tornaram más apesar de poderem ou deverem ser boas; não foram criadas
más, nem existiram desde sempre como más em si mesmas. O diabo, no
cristianismo, existe não como metáfora do mal absoluto, porque o mal não existe
como ente em si: o diabo existe porque é uma criatura que Deus fez boa e livre,
mas que, livremente, optou por desprezar o bem, rejeitando o próprio Deus e
causando a si mesma a eterna lacuna do bem.
Nada
disto quer dizer que o mal “não exista”: ele “existe”, sim, mas entre aspas,
pois “existe” precisamente como “ausência de bem”. A morte existe porque a ausência
de vida é um fato existente: é a lacuna deixada pela falta da vida que poderia
estar presente. As trevas existem porque a ausência de luz é um fato existente:
é a lacuna deixada pela falta da luz que poderia estar presente. Essa ausência
não é algo que possua existência própria, já que é uma não-presença, mas, ao
mesmo tempo, “existe” a lacuna causada por essa não-presença; existe o efeito
da ausência do bem que poderia ou deveria estar presente.
O mal é um buraco na camisa
É
como um buraco na camisa: trata-se, em suma, da ausência de tecido. O buraco,
em si mesmo, não é “algo”: é a própria inexistência de algo que deveria estar
ali. Mas, ao mesmo tempo, o buraco “existe” – não como um ser com existência
própria, mas como a lacuna do tecido que poderia ou deveria estar presente.
https://pt.aleteia.org/2021/03/23/o-mal-e-um-buraco-na-camisa-nao-existe-mas-existe/
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