XIII-
SANTO AGOSTINHO E O FILHO PRÓDIGO
A parábola do filho pródigo à luz de
Santo Agostinho
Por Frei Mário Spergio OSA.
A partir do Sermão 112A, este artigo analisa a parábola do
filho pródigo sob a perspectiva de Santo Agostinho, destacando temas como
afastamento espiritual, conversão interior e misericórdia divina. Com uma
interpretação simbólica e atemporal, o texto oferece reflexões profundas sobre
a relação entre Deus e cada um de nós.
A parábola
do filho pródigo, narrada unicamente por Jesus no Evangelho de Lucas, é uma das
mais conhecidas e certamente mais profundas. Trata-se de uma das parábolas de
Jesus mais estudadas, comentadas e apreciadas tanto por crentes quanto por não
crentes. De certo modo, todos nós, em algum momento da vida, acabamos nos
identificando com algum dos memoráveis personagens da parábola.
Santo
Agostinho nutria uma particular veneração por esta história, tanto que, em
muitas passagens das Confissões, estabeleceu um paralelo entre
o errático filho pródigo e sua própria trajetória inquieta.
Neste
artigo, pretendemos seguir de perto as ideias e intuições de Santo Agostinho
sobre a leitura dessa parábola lucana. Tomaremos como ponto de partida o Sermão
112A, que nos oferece uma interpretação rica, simbólica e cheia de nuances,
ajudando-nos a refletir também sobre nossa trajetória espiritual.
Os dois filhos: duas histórias,
um só Pai
Santo
Agostinho interpreta simbolicamente os dois filhos da parábola como dois povos:
o mais velho representa o povo judeu, que permaneceu fiel à Lei e ao único
Deus, enquanto o mais novo simboliza os pagãos, que se afastaram do Criador
para seguir ídolos e paixões desordenadas. O bispo de Hipona sublinha que ambos
os filhos recebem do Pai uma herança preciosa: alma, inteligência, memória e
engenho, dons dados para que conhecessem e adorassem o Criador. Sobre isso,
Agostinho escreve: “Qual é a herança que receberam? A alma, com todas
as suas faculdades, isto é, inteligência, memória e engenho.” (Sermão
112A, 1)
O filho mais
novo, ao partir para uma “terra distante”, afasta-se espiritualmente e
materialmente do Pai, desperdiçando os dons recebidos em uma vida desordenada e
dissoluta. Segundo Agostinho, essa terra distante simboliza o esquecimento do
Criador e a adesão ao pecado.
Atenção:
essa distância não é apenas geográfica ou espacial, mas sobretudo existencial.
Podemos estar fisicamente próximos, mas espiritualmente distantes do Pai. Ainda
no seu sermão, Agostinho identifica as "meretrizes" do relato com as
paixões e os ídolos, que frequentemente nos afastam de Deus.
O vazio da distância
A fome que o
filho sente longe do Pai, para Agostinho, nada mais é do que a fome da Verdade,
que somente Deus pode oferecer à sua criatura. Como recorda o texto bíblico, o
jovem, querendo saciar-se, pede ao “chefe daquela região” que lhe dê trabalho.
O chefe daquela região, segundo Agostinho, é um símbolo do diabo, que lhe
confia a missão ingrata e impura de cuidar de porcos — uma imagem que, por
excelência, representa a impureza, o pecado e a condição miserável daquele que
se entrega à escravidão espiritual. “Ele é enviado ao campo, para
cuidar dos porcos, ou seja, aos pecadores. A fome é a falta de pão celeste, de
alimento espiritual, de Cristo.” (Sermão 112A, 2)
As bolotas,
que não satisfazem o filho mais novo, para o Doutor da Graça, simbolizam os
ensinamentos mundanos, ideias que enchem os ouvidos, mas que não nutrem a alma
e o coração. Essa situação experimentada pelo filho pródigo reflete o vazio de
quem busca prazer e sentido naquilo que não pode oferecer plenitude.
Voltando a si, voltou para o
Pai
O momento
culminante na história é aquele em que o filho "volta a si".
Agostinho, mestre da interioridade, enfatiza que, antes de retornar à casa do
Pai, ele precisava reencontrar-se consigo mesmo. Enfim, não se pode encontrar
Deus enquanto se está disperso e perdido de si mesmo. “Não teria ele
voltado ao Pai se antes não tivesse voltado a si mesmo. E como voltou a si?
Reconhecendo sua condição.” (Sermão 112A, 3)
Deus, como
Pai misericordioso, é o verdadeiro protagonista da parábola. Ele não apenas
aguarda o retorno do filho, mas o avista de longe e corre ao seu encontro.
Agostinho interpreta essa atitude do Pai como a expressão mais cabal do Deus de
Jesus Cristo: o Deus do perdão e do abraço, que ama incondicionalmente seus
filhos e nunca os abandona. “O Pai corre ao encontro. De fato, Deus não
é lento em perdoar aquele que se arrepende; não é demorado em correr ao seu
encontro.” (Sermão 112A, 3)
O novilho gordo e a festa da
reconciliação
O banquete
celebrado com o novilho gordo, segundo Agostinho, nada mais é do que uma imagem
do sacrifício de Cristo. O Filho, morto e ressuscitado, é o alimento espiritual
oferecido na Eucaristia, único capaz de saciar verdadeiramente, que acolhe
aqueles que retornam à comunhão com Deus. “É o mesmo Cristo que foi
morto por nós e ressuscitou; é ele quem nos nutre em sua Igreja. Este é o
novilho gordo.” (Sermão 112A, 4)
O irmão mais velho e a tentação
do orgulho
O irmão mais
velho, ao se recusar a entrar na festa, nos lembra de algo muito humano: a
dificuldade de aceitar o perdão dado a quem, aos nossos olhos, “não merece”.
Para Agostinho, ele representa os judeus da época apostólica, que se ressentiam
ao ver os pagãos acolhidos na Igreja sem que estes passassem pelos rigores da
Lei mosaica. “Os judeus disseram entre si: ‘Estamos aqui servindo a
Deus sob o peso da Lei, e agora eles, sem trabalharem como nós, são recebidos e
feitos filhos’.” (Sermão 112A, 5)
Esse ciúme,
porém, vai além de uma questão histórica. Ele é um retrato do orgulho e do
julgamento que todos, em algum momento, podemos sentir. É a dificuldade de
reconhecer que a graça de Deus não é conquistada por mérito, mas é gratuita,
oferecida a todos.
Mesmo assim,
o Pai não desiste do irmão mais velho. Ele sai de casa, vai ao encontro dele e
o convida com paciência a fazer parte da festa. Esse gesto mostra que, para
Deus, ninguém está fora do alcance da sua misericórdia.
Uma parábola para todos os
tempos
A história
do filho pródigo — ou melhor, do Pai Misericordioso — é muito mais do que um
conto antigo. É sobre nós. Todos, em algum momento, somos como o filho mais
novo, que se afasta e precisa voltar, ou como o mais velho, que luta com a
dureza do próprio coração.
O Pai, no
entanto, não faz distinção. Ele ama os dois filhos com a mesma intensidade e
paciência. Sempre está de braços abertos, esperando que todos voltem para Ele.
Santo Agostinho expressa isso de forma tocante: “Não existe alegria
maior para Deus do que a conversão de um pecador.” (Sermão 112A, 6)
Conclusão
A mensagem
de Santo Agostinho no Sermão 112A continua atual porque fala
de algo essencial: a possibilidade de recomeçar. Quantas vezes nos sentimos em
uma “terra distante”? Pode ser uma crise espiritual, escolhas erradas ou apenas
aquele vazio que parece impossível de preencher.
O que essa
parábola nos ensina, com a ajuda de Agostinho, é que nunca é tarde para voltar.
Não importa quão distante estejamos, Deus está sempre pronto para nos acolher.
O Pai não exige explicações complicadas nem perfeição. Basta reconhecer a
própria miséria, levantar-se e dar o primeiro passo. O resto, Ele faz.
Fonte Centro de Estudos
Agostinianos
Nenhum comentário:
Postar um comentário