I- REFLEXÃO DOMINICAL II
23 de
março – 3º DOMINGO DA QUARESMA
Por Junior Vasconcelos do Amaral*
“Eu Sou aquele que Sou!”
I. INTRODUÇÃO GERAL
A liturgia deste domingo
nos apresenta Jesus, o novo profeta de Deus. Ele é a síntese do novo mandamento
de Deus, pois é o seu Filho (como ouvimos no domingo passado), o amor encarnado
no meio de nós. À luz da imagem de Moisés, que, na primeira leitura, se
encontra com o nome de Deus (Shem), Jesus, no Evangelho, destaca-se como aquele
que tem uma palavra de Deus, convidando-nos a todos a viver o arrependimento e
a conversão, como formas fundamentais de assumirmos nossa existência. Na
segunda leitura, Paulo deseja que seus ouvintes não se esqueçam dos fatos
importantes realizados por Deus no passado: a travessia do povo pelo deserto
sob a nuvem, a passagem pelo mar e o maná concedido ao povo. Toda essa
realidade prefigurativa é entendida agora em Cristo, a figura absoluta que
consuma o AT.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS 1. I leitura (Ex 3,1-8a.13-15)
Depois de Deus,
Moisés é o destaque dessa narrativa. Pastor do rebanho de seu sogro, Jetro, ele
vai pelo deserto, caminho que o povo de Deus percorreu, e chega até o monte
Horeb, o Sinai (v. 1). O v. 2 destaca, por sua vez, a presença de Deus por meio
de seu mensageiro, o anjo, que aparece em meio à chama da sarça que arde, mas
não se consome. A sarça ardente (em hebraico seneh, um jogo de palavras com
Sinai) medeia a voz de Deus. O fogo sempre foi, na Bíblia, um símbolo
teofânico, da manifestação de Deus. O narrador, no v. 3, coloca-se no íntimo do
pensamento de Moisés, que fala consigo mesmo: “Vou me aproximar desta visão
extraordinária...”. De sua parte, vendo Moisés se aproximar, Deus o chama:
“Moisés, Moisés”. O v. 4 é forjado como relato vocacional, assim como
encontrado no primeiro livro de Samuel (1Sm 3,4) e em Atos, com Saulo (At 9,4),
chamado ao apostolado de Jesus. A resposta de Moisés é pronta: “Aqui estou”. O
v. 5 é assertivo: Deus diz a Moisés que tire a sandália, por ser santa a terra
sobre a qual pisa. Moisés reconhece a santidade do local, ouve seu nome e
conhece o Deus dos patriarcas. O v. 6 destaca o modo de Moisés, temendo a Deus,
cobrir os olhos. Ainda hoje, os judeus colocam as mãos no rosto para orar, em
respeito à face de Deus, a quem se dirigem. Os v. 7-12 são provenientes de uma
fonte javista, duplicata de uma fonte eloísta, referindo-se à ação mesma de
Deus: ver e ouvir o clamor de seu povo (cf. 2,23-25). O teólogo javista
demonstra as atitudes antropomórficas de Deus, que é representado com
características próprias dos seres humanos, como ciumento ou compadecido.
O Deus de Abraão, Isaac
e Jacó – portanto, de Moisés – é um Deus preocupado com seu povo. Por isso, ele
desce até a realidade dos seus. É compassivo e sofre as dores de sua gente,
concedendo-lhe forças para lutar e resistir. Desce às trincheiras da história,
entremeado a esse povo, não como um titã que luta usando armas, mas o
sustentando para não deixá-lo sucumbir, desanimar e desistir. Deus, assim,
desce para incutir em seu povo a necessidade de libertação (pessach – passagem –
Páscoa v. 8a). Deus desce para fazê-lo sair (em passagem).
Moisés é disponível (v.
13): ele irá aos filhos de Israel para dizer que Deus o enviou e dirá: “O Deus
de vossos pais enviou-me a vós”. A questão que Moisés apresenta a Deus é
somente uma: “Qual é o seu nome?” O nome é a essência. Em hebraico, Shem é
palavra que define. A teologia do nome é essencial para compreender quem é esse
Deus, o libertador. No v. 14, Deus lhe responde: “Eu sou aquele que sou” (“Eu
sou aquele que é” – Bíblia de Jerusalém). Deus é aquele sem um nome, mas ao
mesmo tempo está presente. Trata-se do nome hebraico Iahweh (Gn 4,26), depois
identificado pelo “tetragrama divino”: IHWH. Ele se revela Deus pela primeira
vez em primeira pessoa. A etimologia do nome Iahweh é questionada; consiste
certamente numa forma do verbo “ser” (hayâ) na forma causal: “faz ser, criar,
causa da existência de tudo”. Cross e Childs, na obra Exodus, sugerem uma
possível tradução para Iahweh: “(Deus que) cria (o exército celestial)”. Assim,
para concluir, Deus revela seus planos a Moisés (v. 12-15), sintetizados em
“enviou-me a vós” e “este é o meu nome (lembrado) para sempre” – pois tal nome
marcou para a eternidade a vida de seu povo, libertando-o do cativeiro. Moisés
torna-se, dessa maneira, porta-voz, profeta de Deus.
2. II leitura (1Cor 10,1-6.10.12)
Paulo vê, nos eventos do
passado, sinais cristológicos, ou seja, da presença de Cristo. Essa leitura é
chamada de tipológica, pois o typos, a figura, é Cristo, que pode ser
compreendido desde o passado, na passagem pelo mar, no qual o povo sob a nuvem
era protegido por Deus. Foi sob a nuvem e na passagem do mar que Moisés
“batizou” (fez mergulhar) seu povo, que do mar saiu com pé enxuto (Ex 14,27),
tudo isso à luz da fé, como diz Hb 11,29. O povo comeu o maná, comida
espiritual, fazendo recordar a Eucaristia oferecida por Cristo aos seus e a nós
hoje (1Cor 10,16; Mt 26,26-28). A bebida espiritual que emanou da rocha, a
água, prefigura o sangue de Cristo, de cujo coração jorrou sangue e água (Jo
19,34), após o soldado lhe perfurar o lado. O rochedo que outrora saciava a
sede era Cristo (v. 4).
Paulo, contudo, afirma
que a maioria deles desagradou a Deus e ficou no deserto (v. 5). O deserto é
símbolo da purificação. Assim, o apóstolo pondera que tudo o que ocorreu no
passado serve para nós hoje no presente, assim como diz Jesus no Evangelho (Lc
13,4-5). É necessário, diz Paulo, que não desejemos coisas más, como fizeram
outrora no deserto (v. 6). Sobretudo, não murmuremos, como outrora alguns do
povo fizeram (v.10) e por isso foram mortos pelo anjo exterminador. Em tom
parenético, exortativo, Paulo conclui, no v. 12: “Portanto, quem julga estar de
pé tome cuidado para não cair”, o que pode ser a síntese da seção inteira de
1Cor 10. “Os coríntios, dentre os quais alguns se consideravam espiritualmente
superiores, falharam nas provações que geralmente acometem a humanidade. Mas
poderiam ter resistido” (Jerome Murphy-O’Connor, novo comentário bíblico São
Jerônimo, Paulus).
3. Evangelho (Lc 13,1-9)
A passagem do Evangelho
deste domingo situa-se no final da primeira parte da viagem de Jesus a
Jerusalém, no conjunto de Lc 9,52-13,21. A segunda parte da viagem compreende
Lc 13,22-17,10. No trecho em análise, Jesus, fazendo uso do estilo e da
linguagem dos antigos profetas, vê e interpreta, com base em dois
acontecimentos do dia a dia, sinais admoestadores (convidativos) de Deus.
Trata-se de convite urgente e real à conversão – metanoia –, na busca de
realizar a genuína vontade de Deus. Na passagem anterior a essa, em Lc 12,54-59,
o evangelista põe na boca de Jesus ensinamentos que nos chamam a discernir os
sinais do tempo presente, que é um tempo salvífico. Com efeito, para Deus, o
dia da salvação é o nosso hoje, pois o passado e o futuro não nos pertencem. O
que temos, literalmente, é o presente, o dom deste dia, a fim de que nele
sejamos colaboradores/as na construção do Reino vindouro. Os sinais aos quais
Jesus se refere devem ser procurados também nos dias de hoje.
O v. 1 conta o fato
ocorrido com os galileus que Pilatos tinha mandado matar, misturando o sangue
deles com o de seus sacrifícios. Jesus comenta: “Acreditais que esses galileus
fossem mais pecadores do que todos os galileus por terem sofrido tal sorte
(injustiça)?” Não, diz Jesus, “mas, se não vos converterdes, perecereis todos
do mesmo modo” (v. 2). Tal cena de repressão e violência tem como marco a
brutalidade e o menosprezo do governador romano na Judeia, Pôncio Pilatos,
suscitando o horror e a indignação nos habitantes de Jerusalém. Os soldados de
ocupação mataram violentamente um grupo de romeiros galileus, enquanto se
preparavam para sacrificar seus cordeiros ou outras vítimas, talvez por ocasião
da Páscoa. Possivelmente, consistiam em simpatizantes zelotes, grupo
reacionário de resistência surgido no ano 6 d.C., que propagava a luta armada
contra a ocupação romana em solo judaico. Profanar o sangue é, para um judeu,
um crime ofensivo à Lei (Lv 21,11; Nm 19,11).
Os que relatam tais
fatos a Jesus querem, sem dúvida, provocar o juízo e a tomada de decisão de sua
parte, saber o que ele achava, se seriam autorizados a pagar o mal com o mal,
ou descobrir o que ele pensava do grupo dos galileus. Jesus dá uma resposta que
aparentemente ignora tais problemas (v. 3). Ele contesta o pensamento farisaico
e o pensamento de causa e consequência, de crime e castigo, como se os galileus
merecessem tal fim por serem pecadores. O que Jesus deseja é a conversão de
todos hoje, tanto dos que fazem o mal como dos que o sofrem. Para reforçar tal
convite dirigido a todos, ele conta a parábola da figueira infértil, enxertando
aí essa imagem profética (v. 6-9). Todo Israel é uma figueira que deve produzir
frutos bons e saborosos dentro da vinha, mas, se não produzir, deverá ser
cortada no tempo oportuno (v. 7).
O viticultor, que também
cuidará da figueira, tem paciência, resiliência, e pede a Deus que espere o
tempo oportuno para que, depois de cuidada e adubada, a figueira possa
frutificar. Somente então, se não der frutos, ele poderá cortá-la, por conta de
sua inutilidade (v. 8). Assim, todos nós somos convidados à conversão hoje,
mesmo que nos consideremos, a exemplo dos fariseus, imunes ao pecado.
Convertamo-nos enquanto é tempo e enquanto o senhor pode ser achado por nós,
para que geremos frutos bons para esta sociedade adoecida pelo ódio.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Hoje, a comunidade pode
propor-se um exame de consciência, analisando seus frutos de justiça para o
mundo. Aquele que preside a celebração pode levar todos à análise de suas
atitudes: são frutos de justiça e solidariedade? Buscar ver os acontecimentos
do presente – por exemplo, o discurso de ódio disseminado entre os cristãos –
como dados a serem transformados, em vista de nossa conversão comunitária.
Propor à assembleia que a Eucaristia seja o encontro com aquele que é o Senhor
de nossa vida, que nos transforma em novas criaturas, pois as coisas antigas já
se passaram.
Junior Vasconcelos do Amaral*
*é presbítero
da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal
Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade
Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seu doutorado na
modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique
de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor do Departamento
de Teologia e do Programa de Pós-Graduação “Mestrado Profissional em Teologia
Prática” na PUC-Minas, em Belo Horizonte, e desenvolve pesquisas sobre análise
narrativa, sobre Bíblia e psicanálise e sobre teologia pastoral.
E-mail: jvsamaral@yahoo.com.br
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/23-de-marco-3o-domingo-da-quaresma-2/
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