I-
Campanha da Fraternidade de 2025:
“Deus viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31)
Por Moema Miranda, ofs*
Em 2025, a Campanha da Fraternidade acolhe o tema mais desafiador
de nosso tempo: a ecologia integral. Neste artigo, reconhecendo a profundidade
da emergência ambiental que atravessamos, procuramos refletir sobre as razões
das dificuldades em tratar esse como um tema central. A tradição cristã pode
nos ajudar a ampliar nosso compromisso com a defesa da criação. O tempo para
agir é agora.
1. DE ONDE PARTIMOS?
A
Campanha da Fraternidade (CF) – que começou a ser celebrada nacionalmente em
1964, “como expressão da solidariedade da Igreja em favor da dignidade da
pessoa humana” (CNBB, 2024, p. 15) – é uma das mais consistentes e persistentes
iniciativas pastorais da Igreja no Brasil. Acompanhando a Quaresma, tempo de
penitência e conversão, contribui para estimular uma espiritualidade encarnada,
na qual fé e vida comunitária se abraçam. A dimensão pessoal e intransferível
de nosso seguimento de Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado, realiza-se em
plenitude na comunhão com toda a Igreja, o corpo místico de Cristo atuante no
mundo, que, por sua vez, é o lugar da encarnação do próprio Deus. Assim,
Quaresma, para nós, é tempo de penitência, conversão e expressão comprometida
de solidariedade com toda a criação.
Neste
ano, o tema da CF, escolhido por sugestão da Comissão Episcopal Especial para
Mineração e Ecologia Integral, tem uma atualidade desafiadora. Escrevo este
artigo quando, em nosso país, as chamas de incêndios comprovadamente criminosos
destroem florestas e matas, afetando incontáveis vidas humanas e não humanas:
sofrem e choram flores, rios, aves, peixes e pessoas, sufocadas pela fumaça e
pelo calor. A CF, então, amplia seu sentido de solidariedade para abranger não
apenas a “dignidade da pessoa humana”, como no início, mas também a todos os
seres viventes, a toda a biosfera. Acolhe os seres não humanos, como florestas
e rios, seres que sentem dor e morrem. Assim,
a fraternidade que a CF suscita é expandida em espírito profundamente
franciscano e se torna, no mundo, chamado à fraternidade universal. A água irmã
e a terra mãe se unem em oração, para que a CF estimule atitudes de penitência
e conversão pessoal e social na mesma proporção dos pecados ecológicos que
presenciamos.
Na
Quaresma de 2025, sabemos que o mundo estará ainda mais quente do que agora: os
acontecimentos ambientais que atravessamos não são passageiros. Eles, no
entanto, não podem nos deixar paralisados. Como fiéis seguidores do
Ressuscitado, experimentamos e alimentamos a esperança apocalíptica que nasce
em meio à catástrofe; que resplandece mesmo na noite escura; que nos acompanha
na travessia dos abismos profundos, alimentada pela confiança em que não
estamos sós: “Eis que estarei convosco todos os dias, até o final dos tempos”
(Mt 28,20), disse-nos Jesus. Assim, alimentados pela teimosa esperança dos que
vencem a morte, devemos e podemos nos preparar desde já para que a Quaresma de
2025 nos encontre dispostos a gestos concretos de cuidado com toda a criação.
2. PARA VER, DEVEMOS ABRIR OS OLHOS, O CORAÇÃO
E A ALMA
Quando
cantamos hinos de louvor e júbilo pela incrível beleza da criação, sentimos
nosso coração em festa, como se realmente juntássemos nossa voz à voz dos
anjos. Quando olham maravilhados os ipês floridos ou as noites estreladas, o
orvalho da manhã ou a aurora de cada novo dia, os poetas fazem versos e
festejam a beleza deste planeta tão especial em que vivemos e ao qual pertencemos;
onde somos, existimos e nos movemos. Sim, o nosso é um planeta muito especial.
Único. Em todo o cosmos que a ciência humana já pode enxergar, existem trilhões
de outros planetas, bem como bilhões de estrelas semelhantes ao Sol. Em nenhum
deles, porém – até onde os telescópios alcançam –, existem condições propícias
à vida: lá não podemos habitar. Lá não podemos louvar a Deus. Aqui na terra, ao
contrário, nos nossos mais de quatro bilhões de anos, a vida floresceu de forma
cada vez mais densa, plural e ampla. Como diz a canção: “A vida depende da vida
para sobreviver”. Desde seu começo, a vida gerou mais vida, criando a biosfera.
O nosso é um “planeta simbiótico” (Margulis, 2001, p. 1), onde as espécies
vivas interagem entre si e com todos os elementos planetários: a hidrosfera, a
atmosfera etc. Aqui, toda a vida é alimentada pela energia que vem do Sol e,
com ela, podemos dizer que somos seres cósmicos. A natureza, portanto, não é
apenas a paisagem onde nós, seres humanos, desenvolvemos nossas atividades, sejam
elas salvíficas ou não. Como disse o papa Francisco, aqui “tudo está
interligado” e os seres dependem uns dos outros. Portanto, neste universo,
“composto por sistemas abertos […], [somos levados] a pensar o todo como aberto
à transcendência de Deus, dentro da qual se desenvolve. A fé permite
interpretar o significado e a beleza misteriosa do que acontece” (LS 79).
No
entanto, no Ocidente, desde a Modernidade, ou seja, há pelo menos quinhentos
anos, a natureza começou a ser compreendida como “recurso”: como meio de
produção destinado à economia humana. Como se fosse inerte, morta, um mecanismo
desencantado. O sucesso, em termos tecnológicos e econômicos, possibilitado por
essa concepção fez que as noções de “progresso” e “desenvolvimento”, por nós
hoje compartilhadas, implicassem extrair, saquear e devastar a terra, os rios,
os mares e florestas, de forma incompatível com o metabolismo do planeta. Se
entendemos que a Terra é um “superorganismo vivo”, vamos compreender facilmente
que tirar da terra, sem dar tempo de regenerar; derrubar, sem esperar renascer;
poluir, sem deixar descansar, exaure, cansa e mata. A economia baseada no uso
intensivo de petróleo e carvão leva todo o sistema planetário a um estresse
desmedido: ao colapso. Nosso sistema alimentar, baseado na indústria da carne e
da soja, no envenenamento da água, do solo e do ar pelo uso abusivo de
agrotóxicos, para exportação a grandes distâncias, sem descanso e sem trégua,
adoece o planeta tanto quanto os corpos humanos.
O mais
problemático é que esse modelo se baseia em ideias interiorizadas pela maior
parte das nossas sociedades, segundo as quais consumir é sinal de sucesso. Como
dizem alguns filósofos, o capitalismo é uma religião, e o shopping center, que
estimula para o consumo desmedido de itens desnecessários a parte da população
que pode pagar por eles, é seu grande templo. Por isso, é preciso levar a sério
a pergunta: “não seria o capital um novo deus, que nos torna novamente
devedores?” (Han, 2014, p. 18).
O papa
Francisco, na exortação Evangelii Gaudium, afirmou que “a realidade é superior
à ideia” (EG 231-233): quer dizer, a realidade, e não nossas ideias sobre ela,
tem precedência. Infelizmente, porém, muitas vezes nossas ideias mais
viscerais, mais profundamente internalizadas ao longo de anos, dificultam a
compreensão das mudanças profundas pelas quais estão passando nosso planeta e
nossas sociedades. Assim, ainda que vejamos – com nossos olhos físicos – as
chamas das queimadas e o alagamento de cidades inteiras, a morte de pessoas queridas
e de muitos outros seres vivos por desastres e catástrofes provocadas pela ação
humana, ainda acreditamos – com os olhos de nossas ideias, de nossa mente – que
construir estradas, extrair petróleo e abrir minas é sinal de progresso. É o
que os cientistas chamam de “dissonância cognitiva”: nossos olhos veem, mas
nossas ideias não registram a magnitude das mudanças. Assim, vemos, mas não
enxergamos. Aplica-se ao nosso tempo o que disse Jesus: “Eles, vendo, não veem
e, ouvindo, nem ouvem nem entendem” (Mt 13,13).
O
sistema que organiza nossa economia, o capitalismo, estrutura-se, como o
próprio nome diz, em torno do “capital”. Os interesses de crescimento do
capital é que definem seu propósito e sentido. Lamentavelmente, nem sempre o
que é bom para o capital é também bom para as pessoas, para os rios, para a
atmosfera, enfim, para o mundo da vida. Apenas um exemplo: quando moramos em um
lugar onde existe água abundante e de boa qualidade, nenhum de nós vai pagar
para usar a água. Ela flui, e todos os seres dela se beneficiam: as lavadeiras,
os girassóis, os peixes e as pessoas. Nesse lugar onde há água em abundância,
ela é um bem valioso, mas não é mercadoria. Portanto, não tem preço. Todos
ganham mais vida e saúde com a pureza da água, mas ninguém ganha dinheiro. Ou
seja, esse lugar é muito bom para a vida, mas não é bom para o capital, porque
ali não há um dono que lucra com a privatização da água! Trata-se de um dos
vários paradoxos do sistema capitalista: quanto mais escasso um bem, mais
valioso para o capital.
A
grande e dramática questão é que o uso intensivo e abusivo dos bens da
natureza, compreendidos como “recursos naturais”, está levando nosso planeta à
exaustão. Passamos a viver um novo regime climático, que exige urgentemente a
“reorganização do nosso mundo material”. Como diz o filósofo Bruno Latour, a
emergência climática faz que a habitabilidade do planeta seja central.
Portanto, ela deveria se “tornar a questão prioritária, à qual todas as demais
questões políticas e econômicas estão agora sujeitas. O novo regime climático
introduz uma inversão completa da cosmogonia”. Pensávamos que éramos
“proprietários” da Terra, quando, na verdade, somos posseiros, passageiros,
peregrinos (Latour, 2022).
Efetivamente,
o verso do “Cântico das criaturas”, de São Francisco, antecipa em séculos a
conclusão das ciências contemporâneas: a Terra nos sustenta e governa. Se ela
governa, define os limites. Aceitar e reconhecer limites é urgente e
indispensável em um planeta que é limitado, vivo, autopoiético. Assim, garantir
que a Terra continue a ser habitável, diz-nos o filósofo, deveria ser o centro
de nossa ação política. A expressão “cuidar de nossa Casa Comum”, portanto,
deve ser entendida assim: estabelecer como prioridade absoluta a garantia da
habitabilidade do planeta e, com base nesse propósito, organizar todas as
nossas ações políticas, econômicas, culturais, educacionais e sociais. Sem o
planeta Terra, não temos “plano B” para acolher a vida.
Com
esse olhar, que compromete toda a nossa emoção, nossa alma e nosso futuro,
cumpre-nos levar muito a sério o que nos diz o Texto-base da Campanha da
Fraternidade de 2025:
A
origem da crise socioambiental no mundo e no Brasil é complexa e tem muitas
faces, envolvendo uma conjunção de fatores históricos, sociais, econômicos
e políticos. O modelo de desenvolvimento capitalista, baseado na exploração
dos patrimônios naturais, na queima de combustíveis fósseis, como os
derivados do petróleo, na expansão desenfreada do consumo e na relação
mercantilista com a natureza, tem contribuído para uma série de problemas
ambientais, como a degradação do solo, o desmatamento, o extrativismo
predatório, a poluição, a escassez de água, o comprometimento da
biodiversidade com a extinção de algumas espécies e as mudanças climáticas
(CNBB, 2024, n. 26).
O novo
regime climático exige de nós uma conversão inédita. Nunca antes nossa espécie
esteve confrontada de maneira tão definitiva com uma exigência como essa.
Portanto, não temos modelos que nos conduzam no percurso de volta ao
compromisso e ao respeito com nossa Casa Comum. Sabemos, porém, a direção. Como
afirmou o papa Francisco na Exortação Apostólica Laudate Deum, devemos seguir
para a “reconciliação com o mundo” (LD 69). Precisamos alterar as ideias e as
práticas que nos levaram a tornar a Terra um lugar inóspito para a vida. Os
povos indígenas, os quilombolas, os geraizeiros, os ribeirinhos e os camponeses
têm muito a nos ensinar sobre o modo de viver em comunhão com a Terra, e a
tradição cristã permite que tenhamos uma bússola para essa transição tão
urgente! Vejamos.
3. AMAR COMO JESUS AMOU
Nossa
Igreja tem um longo e belo percurso de cuidado com a criação. Desde São João
XXIII, todos os papas foram explícitos na condenação à exploração desmedida dos
bens da natureza. As conferências episcopais de todos os continentes vêm
continuamente emitindo pronunciamentos nessa mesma direção. Aqui no Brasil,
foram várias as Campanhas da Fraternidade desenvolvidas com temas ecológicos.
Também as pastorais sociais, já com a criação do Conselho Pastoral dos
Pescadores, em 1970, do Conselho Indigenista Missionário, em 1972, e da Comissão
Pastoral da Terra, em 1975, atuam firmemente em defesa da criação.
Foi
como herdeiro dessa sólida tradição que, em 2015, o papa Francisco escreveu a
primeira encíclica ecológica de nossa Igreja, a Laudato Si’. A encíclica
completará dez anos em 2025 e tem sido uma referência indispensável, dentro e
fora da Igreja, para os que buscam caminhos de conversão ecológica. A encíclica
integra a Doutrina Social da Igreja, devendo ser lida e estudada como parte de
um compromisso profundo e renovado do magistério.
A
magnitude da crise ambiental, no entanto, exige que reconheçamos, como fez o
papa Francisco, que muitas vezes uma interpretação equivocada dos textos
bíblicos foi utilizada como justificativa para atitudes de domínio despótico
sobre a natureza. Diz o papa:
foi
dito que a narração do Gênesis, que convida a “dominar” a terra (cf. Gn 1,28),
favoreceria a exploração selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser
humano como dominador e devastador. Mas esta não é uma interpretação correta da
Bíblia, como a entende a Igreja. Se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes
interpretamos de forma incorreta as Escrituras, hoje devemos decididamente
rejeitar que, do fato de ser criados à imagem de Deus e do mandato de dominar a
terra, se deduza um domínio absoluto sobre as outras criatura. É importante ler
os textos bíblicos no seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar que
nos convidam a “cultivar e guardar” o jardim do mundo (cf. Gn 2,15) (LS 67,
grifo nosso).
Assim,
a Campanha da Fraternidade de 2025 nos convida a uma leitura profunda,
comprometida e inspiradora dos textos sagrados, com uma hermenêutica
apropriada. Com isso, a dimensão de carinho e amor pela criação vai se nos
revelando de forma apaixonante. Toda criação é fruto do amor de Deus, que cria
e admira, vendo que “tudo era muito bom” (Gn 1,31). A primeira narrativa
bíblica “contempla o ser humano no meio dos elementos que, na fé do Israel
bíblico, têm grande importância. Não cabe ao ser humano uma autonomia absoluta
em relação aos seres criados. A bênção e a Aliança não são apenas para o ser
humano, mas para ‘toda a carne sobre a terra’ (Gn 9,17)” (CNBB, n. 67). Assim,
a arrogância humana, que alimenta o que o papa Francisco identifica como um
“antropocentrismo despótico” (LS 68), não tem base bíblica. Ao contrário,
implica uma distorção das Sagradas Escrituras. Nosso Deus é Deus da vida. Deus
que dá a Vida. O valor intrínseco de todas e de cada uma de suas criaturas se
revela na Bíblia: a água, o ar e o vento, os animais e as plantas não existem
para nós. Eles têm valor em si mesmos e, como nos dizem os Salmos, louvam a
Deus com sua existência.
O
Texto-base da Campanha da Fraternidade mostra também como, na experiência do
Êxodo, o Israel bíblico recebe de Deus mandamentos nos quais o cuidado com a
preservação da natureza está claramente expresso: “O legislador israelita já
reconhece a necessidade de que leis ambientais protejam a fauna e flora”, da
mesma forma que “as leis mosaicas ordenam o respeito às plantas. […] Mais
ainda: a generosidade da terra estimula o ser humano a ser generoso com toda a
criação, da qual ele é parte integrante” (CNBB, 2024, n.74-76).
Jesus
de Nazaré, “por pertencer ao povo judeu, bem conheceu as tradições contidas na
Torá. […] Como um camponês galileu, integrado com a criação, observa
atentamente a sociedade e o ambiente ao seu redor” (CNBB, 2024, n. 80). Nas
parábolas, são constantes as referências aos elementos da natureza: sementes,
figueiras, solo, mar. Na compreensão de Jesus, toda a terra é “pensada como cocriadora”,
porque, se o ser humano lança a semente, é a terra que a acolhe e a transforma
em fruto. Portanto, somos chamados a ser corresponsáveis, a compartilhar, a
perceber nossa integração em um mundo onde o sopro, a ruah de Deus, habita e
continua criando.
Na
celebração da Eucaristia, a profunda comunhão de Jesus com todo o mundo da vida
se apresenta em sua plenitude. O texto da CF nos remete a esta imagem tão
linda, delineada pelo papa Francisco na Laudato Si’: “no apogeu do mistério da
encarnação, o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através de um pedaço de
matéria. Não o faz acima, mas dentro, para podermos encontrá-lo no nosso
próprio mundo” (LS 236). No prólogo do Evangelho de São João, uma poesia de
imensa beleza espiritual, o sentido profundo da encarnação e da criação e a
ligação entre elas se explicitam plenamente. Cristo é o Alfa e o Ômega, por
quem e para quem todas as coisas foram feitas. O Deus que liberta é o que cria.
Por isso, também o papa Francisco ensina que nos cabe compreender o todo da
criação “como aberto à transcendência de Deus, dentro do qual se desenvolve”
(LS 79). Podemos sentir/pensar, portanto, que todo o universo, com seus bilhões
de anos e incontáveis astros e estrelas, está envolvido em uma espécie de
“teosfera”, onde o Espírito de Deus, que soprou no início, continuamente cria e
recria. E nós, humanos, podemos e devemos encontrar um lugar de paz e aconchego
nessa maravilhosa esfera da vida; assumir o lugar de cocriadores, humilde e
plenamente integrados, contribuindo para o embelezamento do mundo e para a
plenificação, nele, do Santo Espírito de Deus.
4. E, AGORA, AGIR NO MUNDO…
A
força criadora do amor de Deus inspira, mas também exige que cada um de nós,
seguidores de Jesus de Nazaré, se ponha em ação neste tempo de catástrofes
inusitadas. Se foi a ação humana que propagou o atual caos climático, somos nós
os responsáveis por reverter o mal que espalhamos. Um primeiro passo é
reconhecer que nem todos os humanos são igualmente responsáveis pela
destruição. O papa Francisco, na Exortação Apostólica Laudate Deum, identifica
a “elite do poder” como a beneficiária do caos e também, por sua ganância
ilimitada, como sua geradora, impondo um modo de vida incompatível com o
planeta, desenvolvido segundo o “paradigma tecnocrático”. A aliança entre o
poder econômico e o poder dos Estados tem levado, muitas vezes, as políticas
públicas a favorecer uma “economia que mata”. No Brasil, vemos que as isenções
fiscais, os incentivos e as pesquisas não raro subsidiam práticas agrícolas
destrutivas da natureza. Ademais, estamos entre os países mais violentos com os
defensores dos direitos humanos e dos direitos da natureza. A cada ano, os
relatórios de violência no campo demonstram como os povos indígenas, os
camponeses, os quilombolas que defendem seus territórios estão submetidos a
ameaças constantes. O assassinato da Irmã Dorothy, que em 2025 completa vinte
anos, mostra que os mártires contemporâneos, assim como os do tempo de Jesus,
seguem alvejando suas roupas em sangue inocente, enquanto esperam por justiça
na terra dos vivos.
Na
Laudate Deum, o papa nos chama a um “multilateralismo de baixo”: a ação dos
povos, em alianças locais e globais, é o melhor, senão o único caminho seguro
para a “reconciliação com o mundo”. Por isso, a Campanha da Fraternidade deve
nos fortalecer para, em comunidade e comunhão, buscarmos caminhos de
libertação. A conversão ecológica, como vimos, não é um percurso fácil. No
entanto, atuando juntos, como irmãos e irmãs, seguidores de Cristo, podemos dar
uma contribuição decisiva na busca de alternativas radicais e profundas a um
modo de vida desrespeitoso com os outros seres criados e incompatível com o
planeta. Nesse caminho, as pequenas ações, os gestos cotidianos, a mudança dos
hábitos alimentares, do modo de vida e de consumo, contam muito. Não são,
todavia, suficientes. Precisamos de uma mudança sistêmica. Assim, devemos
também nos informar e atuar decisivamente na defesa dos territórios dos povos
indígenas e quilombolas, na promulgação de leis e políticas públicas que
favoreçam o cuidado com a natureza. Nossas escolas devem reaprender e ensinar,
desde a mais tenra idade, formas de vida harmonizadas com a Terra. Não há tempo
a perder. Agora é o momento de agir!
Que o
Deus da vida nos guarde, acompanhe e conduza nesse caminho de volta para a
Casa, nosso planeta Terra. Uma morada de muitos quartos, onde todos os seres
criados são bem-vindos. Também nós, a humanidade peregrina.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CNBB.
Campanha da Fraternidade 2025: Texto-base. Brasília, DF: CNBB, 2024.
FRANCISCO,
Papa. Laudate Deum: Exortação Apostólica sobre a crise climática. [Vaticano]:
Libreria Editrice Vaticana, 2023. Disponível em:
https://www.vatican.va/content/francesco/es/apost_exhortations/documents/20231004-laudate-deum.html.
Acesso em: 3 out. 2024.
FRANCISCO,
Papa. Laudato Si’: Carta Encíclica sobre o cuidado da Casa Comum. [Vaticano]:
Libreria Editrice Vaticana, 2015. Disponível em:
https://www.vatican.va/content/francesco/es/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html.
Acesso em: 3 out. 2024.
HAN, B.
C. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo
Horizonte: Ayine, 2018.
LATOUR,
B. O novo regime climático impõe uma nova forma de fazer política. Instituto
Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 28 mar. 2022. Disponível em:
https://www.ihu.unisinos.br/categorias/617246-todos-se-sentem-traidos-entendemos-que-esse-modelo-nao-e-mais-possivel-entrevista-com-bruno-latour.
Acesso em: 3 out. 2024.
MARGULIS,
L. O planeta simbiótico: uma nova perspectiva da evolução. Rio de Janeiro:
Rocco, 2001.
Moema Miranda, ofs*
*leiga
franciscana, integra a coordenação da Rede Igrejas e Mineração. É assessora da
Comissão Episcopal Especial para Mineração e Ecologia Integral (CEEM) e
professora do Instituto Teológico Franciscano (ITF).
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