sábado, 2 de outubro de 2021

CPRI: “CRENÇAS E PRÁTICAS RELIGIOSAS INTOXICANTES: COMO IDENTIFICÁ-LAS"

Lindolivo Soares Moura(*)

Você seria capaz de submeter sua crença e sobretudo sua prática religiosa a um criterioso processo de investigação, sem medo ou constrangimento, e sobretudo sem lançar mão de racionalismos e de sua bateria de "mecanismos de defesa"? Aceitaria refletir com coragem e honestidade sobre a possibilidade de estar praticando uma religiosidade ou uma espiritualidade "tóxicas", ainda que bem-intencionado? Sim? Acha que é capaz? Ou quem sabe já terá lançado mão de seu primeiro mecanismo de defesa? Se não o fez, e aceita o desafio, convido-o a seguir em frente.

Primeira pergunta: tem certeza que o Deus da sua fé existe? É "sim" ou "não", sem terceira alternativa. Se respondeu "não", passou no primeiro teste, se respondeu "sim", sinto muito mas ficou de recuperação.

Quem trabalha com certezas é a Ciência e não a Fé. Você é um Crente ou um Cientista? A fé pressupõe uma "aposta", um "investimento", uma "adesão com riscos". Quer "certezas" como exigência de adesão? Procure a Ciência; a Fé pode lhe oferecer no máximo alguns "dogmas", certezas não.

Segunda pergunta: sua fé ou sua religião possuem um Livro Sagrado. Para você as "verdades" aí contidas são absolutas e incontestáveis: "Sim" ou "Não"? Sem terceira alternativa. Se respondeu "não", aprovado; se respondeu "sim", mais conteúdo para a recuperação. Só Deus pode, deve, e requer ser considerado "absoluto", qualquer outro ser, coisa ou criatura, jamais. Absolutizar uma verdade ou mesmo um Livro que suposta ou pressupostamente as contenha é idolatria. Deus é "o" e "único" absoluto e nada se lhe pode comparar em relação a tal atributo. Não existe verdade absoluta, e caso existisse, assim como Deus ela seria inacessível ao ser humano.

Terceira pergunta: qual a melhor religião do mundo? Se você respondeu "A", "B", ou "C", foi reprovado mais uma vez. Nenhuma religião é "fim" em si mesma, todas são "meios" com vistas à persecução de um fim. Uma melhor religião, portanto, deveria ser considerada aquela que faz você melhor, independente de qual seja. Se você é daqueles que defendem a ferro e fogo, que sua crença ou religião são as melhores do mundo, está incorrendo em idolatria. Hora de mudar de atitude, enquanto há tempo.

Quarta pergunta: quem tem mais fé, o crente ou o ateu? Essa foi fácil, certo? Você sequer pensou para responder. E como diz o ditado, "a pressa costuma ser inimiga da perfeição". Ateu não é "quem não acredita que Deus existe", e sim "quem acredita - por vezes firme e convictamente - que Deus não existe". Crentes e ateus, portanto, compartilham ambos uma verdadeira e autêntica "Profissão de Fé". Só com o Agnóstico é diferente: entra em cena a indiferença. Vale a pena conhecer e reconhecer essa diferença.

Quinta pergunta: se o assunto é Ecumenismo, seja franco: você se considera ou não um defensor da "tolerância religiosa"?

Cravou "sim" sem precisar pensar, mais uma vez? Que pena! Valeu a intenção, mas ela é insuficiente. A rigor você só pode tolerar o que também pode proibir. E você pode proibir que alguém pratique sua religião, qualquer que seja ela? Não? Então também não lhe cabe "tolerar". Sim, eu sei que tolerância é preferível a intolerância, mas respeitar é preferível a tolerar. A exigência da justiça precede a da caridade, e seria lamentável, ainda que impulsionando pela boa intenção, pretender "tolerar por caridade, o que já é devido a título de justiça".

Sexta pergunta: você seria capaz de viver, ou continuar vivendo, sem sua religião? Essa vai dar o que pensar, não é verdade? Então pense! Bem! Preparado? E então, "sim" ou "não"? Sem terceira alternativa, racionalização ou mecanismo de defesa. "Sim"? Parabéns! Você tem crescido em espiritualidade. "Não"? Aumenta o conteúdo da recuperação. Se como vimos toda e qualquer religião é um meio, e não um fim em si mesma, no limite você deveria ser capaz de abrir mão da religião para continuar praticando a espiritualidade - abrir mão do meio para continuar perseguindo o fim - e não o contrário. Veja o que diz o Advogado uruguaio Eduardo Couture, numa raríssima obra prima intitulada "Os Dez Mandamentos do Advogado": "o jurista persegue o Direito, a Lei, mas se em algum momento a sua pratica conflita com a justiça, o jurista deve continuar perseguindo a justiça, e não o Direito, pois o Direito e a Lei são apenas meios e instrumentos para se perseguir a justiça, e não o contrário". No limite, a religião pode ser dispensada, a pratica do amor, nunca! "Chegará o momento em que adorareis a Deus em Espírito e Verdade..."!

Sétima pergunta: alguém bate à sua porta, gentilmente você abre, e ouve de "bate-pronto": "podemos rezar por você?", ou "podemos rezar com você?". Qual a primeira coisa que você pensa ou pergunta? Algo do tipo "qual a sua religião?", apressando-se em deixar claro qual é a sua? Se respondeu "não", parabéns, sua espiritualidade vai de vento em popa. Se respondeu "sim, mais ou menos isso", mais conteúdo para a recuperação. Se a sua religião lhe deu como parte de uma missão "ir pelo mundo inteiro e pregar uma certa 'Boa Nova' a toda criatura", por que outras religiões não poderiam ou mesmo "deveriam" fazer o mesmo? Se Deus é único, e não pode deixar de sê-lo, por que as invocações e orações de uns teriam aos olhos D'Ele maior valor que as de outros? Você pode ter lá, com certeza, outros motivos para dizer "não", mas se lá no fundo e no mais profundo, sua recusa se deu em razão de quem bateu à porta professar outro credo ou outra Religião, você acaba de expulsar seu Deus de sua casa. Esqueceu-se que o Centurião era romano e nada em princípio tinha a ver com aquela "religião": "Senhor, eu não sou digno sequer de que entreis em minha morada..."! Se não era, a partir de então tornou-se!

Oitava pergunta: "picuinhas"! Sabe o que são? Sim? Que ótimo! Então podemos seguir em frente com a próxima pergunta: sua prática religiosa "é chegada" a picuinhas, e você chega a deleitar-se quando envolvido com uma delas? Tipo, "quantos filhos teve Maria?", "Sábado ou Domingo, qual é o Dia do Senhor?", "roupa para cima ou para baixo do joelho, é pecado?", e outras tantas mais. Já perdeu horas discutindo sobre picuinhas desse tipo? Quem ganhou a discussão? Quem saiu ganhando alguma coisa? Quem se deu por convencido e aceitou mudar de opinião? Entendeu por que são chamadas "picuinhas"? Compreende por que por vezes até os chamados "Grandes Mestres" acabam também eles perdendo a paciência? Quer ser um bom discípulo, quem sabe dos melhores entre eles? Se sim, procure desfazer-se desde já das picuinhas. Elas são verdadeiras pedras nos sapatos.

Nona pergunta: se numa discussão amigável, alguém insiste em afirmar que toda e qualquer religião, sem exceção, não passa de uma criação humana, você:

A. mantém a calma porque, verdade ou não isso não abala os alicerces da sua fé;
B. fica "possesso" da vida porque não poderia haver ofensa maior a lhe ser dirigida;
C. encerra na hora a discussão porque entende que sua crença está sendo cada vez mais agredida e fortemente ultrajada.

"B" e "C" mantém você na lista de Recuperação, e apenas "A" o mantém fora dela ou deixa de lhe acrescentar conteúdo. O fato é que toda e qualquer religião se considera "divina"; toda e qualquer verdade se considera "sagrada"; todo e cada povo se proclama "eleito"; e toda e qualquer Escritura é tida como "inspirada". Presumidamente respaldadas por esse "quarteto", guerras e extermínios sangrentos, sempre reputados como "santos", foram, continuam sendo, e certamente continuarão a ocorrer. Afirma Bertrand Hussell: "nenhuma fé é racional, toda fé é apaixonada: apenas amplia o bem ou o mal que já existe. Homens cruéis acreditam num Deus cruel e usam sua crença para justificar sua crueldade. Homens bons acreditam num Deus bondoso, e serão bondosos de qualquer jeito". Em outras palavras, pela fé e pelas crenças acabamos por "criar um Deus à nossa imagem e semelhança".

Décima pergunta, último desafio: Deepak Choppra, considerado um fenômeno e a estrela da nova Espiritualidade, faz, dentre outras, duas afirmações provocadoras. Responda de imediato e sem refletir, ao tomar conhecimento delas, o que elas suscitam em você: serenidade ou desconforto? A seguir, caberá desta vez a você mesmo ponderar sobre as possíveis razões do sentimento suscitado. Eis o que ele afirma:

01. "'Deus' é um termo vazio, exceto quando expresso por meio das revelações de santos, profetas e místicos a longo da historia (...). Contudo, ninguém pode afirmar que Deus tenha se revelado de forma consistente a partir de mensagens também consistentes. De alguma forma as revelações podem ser consideradas divinas e contraditórias ao mesmo tempo".

02. "Ao longo da evolução de Deus as pessoas anseiam por transformação. Cada religião se assemelha a um programa de treinamento, com vistas a trocar a concha da mortalidade pelo manto reluzente da imortalidade. Quando uma religião insiste que apenas um programa de treinamento funciona, e que os descrentes serão punidos como hereges por discordar, a imortalidade se perde em meio ao dogma".

À guisa de conclusão: práticas religiosas podem ser terapêuticas por um lado, ou intoxicantes por outro. O problema maior reside no fato de que a linha limítrofe ou fronteiriça costuma ser tênue e facilmente ultrapassada; a boa intenção se encarrega do resto.

A presente reflexão é nada mais que um convite a pensar "com" e não "como". Se você vier a dizer "não" a cada "provocação" que lhe foi feita, sem se sentir ofendido ou diminuído, ótimo sinal: sua fé e sua prática religiosa acompanham passo a passo sua espiritualidade. Se não é bem assim, significa que você está a caminho, em fase de expansão e crescimento, o que é tão importante quanto.

(*) Lindolivo Soares Moura
Vasta experiência como Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta, bem como Professor Universitário. Atendimento terapêutico na área de família, casais, adolescentes, jovens e adultos (menos crianças). Consultório Clínico em Vitória, ES, por aproximadamente 19 anos, com especialização em Terapia Cognitivo Comportamental, Psicanálise, Psicodrama e Constelação familiar. Ministro religioso (Sacerdote) por aproximadamente 20 anos. Atualmente atuando sobretudo na área de Psicologia Clínica e Professor Universitário (Filosofia, Psicologia, e Teologia aplicadas).

Nenhum comentário:

Postar um comentário