AS TENTAÇÕES DE JESUS SEGUNDO LUCAS
Uma consideração superficial
desta narrativa poderia levar o leitor a cair numa de duas tentações de pólos
opostos: ou a de ficar na literalidade do relato, que parece descrever umas
tentações de gula, de ambição do poder, de vaidade e presunção, ou então a de
não querer ver nada para além da teologia do evangelista. Quem olhar para o
relato imbuído do preconceito de que não existe o diabo, nem a tentação
diabólica, não terá mais remédio do que refugiar-se na fácil solução da negação
do seu valor histórico, apelando para a teologia do evangelista, para o
simbolismo e significado teológico destas tentações. Por outro lado, quem se
aferrar a uma mentalidade fundamentalista para salvar a todo o custo o sentido
histórico literal de cada pormenor da narrativa, partindo de que esta é uma
crónica jornalística, adoptará uma posição redutora da riqueza teológica do
texto e virá a cair em interpretações pueris e até incoerentes, como, por ex.,
a de imaginar Jesus a ser transportado pelo diabo para um ponto donde pudesse
ver todos os reinos da terra (v. 4), como para o pináculo do Templo, onde «o
colocou», segundo reza o texto (v. 9).
É indiscutível que Jesus foi
sujeito à tentação (cf. Hbr 4, 15). Na
Escritura a palavra «tentação» tem dois sentidos, tanto em grego, como em
hebraico – peirasmós/massá –, a saber, o
de «sedução» para praticar o mal, e o de «provação» que põe à prova a virtude e
a fidelidade da criatura a Deus. Aqui, Jesus aparece claramente a ser tentado
pelo demónio; muitas vezes, especialmente na hora da sua Paixão, é sujeito à
prova (cf. Lc 22, 28. 40-46; 23,
35.37.49, etc.). Não obsta à realidade da tentação – a que Jesus não foi
poupado – o significado simbólico dos elementos da narrativa, como o número «40» (tempo prolongado: cf. 1 Re 19, 8; Ex 16, 35; 24,
18; 34, 28…) e o«deserto» (lugar de solidão,
abandono e perigo e também de encontro com Deus). Alguém escreveu que este
relato recapitula toda a oposição, exterior e interior, que Jesus teve de
enfrentar para cumprir a sua missão de acordo com a vontade do Pai.
Neste caso concreto, convém
advertir que as tentações de Jesus aqui descritas não são de modo algum uma
tentação ocasional, nem sequer um ataque mais violento; foram um duelo mortal e decisivo
entre dois inimigos irredutíveis. Assim, estas tentações não vão dirigidas a
fazer cair Jesus em meras faltas pessoais (gula, avareza, vaidade); mas são
mesmo um ataque frontal, com o fito de fazer gorar toda a obra de Jesus. S.
Lucas apresenta-nos o diabo a querer tirar a limpo até que ponto Jesus era o «Filho de Deus» (vv. 3 e 10),
segundo lhe constaria da teofania do Jordão (cf. Lc 3, 23). Por outro lado, o maligno aparece a
tentar Jesus precisamente no núcleo da sua missão messiânica, para tentar
desviá-lo do plano divino para os seus planos diabólicos, de modo a que esta
missão acabasse por vir a ser desvirtuada. Tentemos agora ver o alcance destas
tentações:
3-4 Na primeira tentação, Jesus aparece tentado a enveredar pelo caminho da
satisfação das esperanças materialistas do povo, que esperava um messias que
lhe trouxesse bem-estar, riqueza, prosperidade, fertilidade, pão e prazer.
5-6 Na segunda tentação, Jesus
é tentado a mover-se na linha das esperanças populares num messias político,
vitorioso, dominador dos opressores romanos e senhor do mundo inteiro; trata-se
da tentação que Jesus sentiu de se desviar do plano do Pai, a instauração do
Reino de Deus, para se dedicar à instauração dum reino temporal, um plano
aparentemente mais eficaz e bem mais sedutor.
9-12 Na terceira tentação, com aquele «atira-te daqui abaixo», é
feito a Jesus um apelo diabólico a ir atrás da expectativa judaica, que pensava
que o messias desceria espetacularmente do céu, à vista de todo o povo. Mas
Jesus renuncia decididamente à fácil tentação de ser um messias milagreiro e
espetacular, e diz não à proposta de uma atuação com base no triunfo pessoal,
no mero êxito humano.
Não devemos estranhar que S.
Lucas inverta a ordem de S. Mateus para as duas últimas tentações, o que em
nada diminui o valor do relato. A fonte pode ser a mesma, mas parece que Lucas
coloca a última tentação em Jerusalém devido ao alto valor simbólico que quer
dar à Cidade Santa e ao Templo no seu Evangelho. Ninguém foi testemunha das
tentações de Jesus, pois se trata de coisas que se passaram apenas no seu espírito;
mas também é compreensível que Jesus abrisse o seu coração aos discípulos,
quando lhes falava da natureza do Reino de Deus e lhes explicava em particular
as parábolas (cf. Mc 4, 34: seorsum autem discipulis suis
disserebat omnia). O que é certo é que, para além das hipóteses
que possam formular os críticos, ninguém poderá provar que estamos em face de
meras criações teológico-narrativas dos evangelistas.
O alcance teológico desta
narrativa nos três Sinópticos (em Marcos há apenas uma brevíssima alusão: 1,
12-13) é grande. Com efeito, as grandes personagens bíblicas foram «tentadas» e
também o povo de Israel, no seu conjunto, especialmente durante a sua
peregrinação pelo deserto, a caminho da terra prometida. Ora, em Jesus
cumpre-se tudo o que estava em toda a Escritura (cf. Lc 24, 44); por outro lado, a vida de Jesus
torna-se também um modelo para os cristãos e para toda a Igreja, que virá a
ser tentada pelos poderes diabólicos, que nunca
deixarão de pôr à prova a sua fidelidade e de os seduzir para o mal; os
caminhos da Igreja não podem ser nunca os da glória terrena e do êxito fácil,
mas os da humildade e do sacrifício, os árduos e escondidos caminhos da
santidade.
13 «O diabo… retirou-se… até certo tempo». É uma observação exclusiva de Lucas, e foi no momento da Paixão de Jesus (sem podermos excluir outros) quando em força avançou o diabo, o poder das trevas (cf. Lc 22, 53. E também foi então a grande derrota do demónio e a vitória definitiva do Senhor, que nos mereceu a graça de também podermos sair vitoriosos das nossas tentações. S. João Crisóstomo comenta: «uma vez que o Senhor tudo fazia e sofria para o nosso ensinamento, também quis ser conduzido ao deserto e ali travar combate contra o diabo, a fim de que os batizados, se, depois do Baptismo vierem a sofrer as piores tentações, não se perturbem com isso, como se se tratasse duma coisa que não era de esperar. Não, não há que se perturbar com isso, mas sim permanecer firmes e suportá-lo generosamente como a coisa mais natural do mundo» (Homilia sobre S. Mateus, 13).
https://www.presbiteros.org.br/roteiro-homiletico-i-domingo-da-quaresma-ano-c/
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