"VÍRUS
OU DROGA? DESCOBERTO 'DOOMSCROLLING':
O MONSTRO DO LAGO NESS" ( Parte II)
Por Lindolivo Soares Moura(*)
"A raiva é um veneno que você toma desejando que o
outro morra"
(Shakespeare)
"Por onde vão as ideologias vão
os argumentos", afirma certa máxima que tanto pode ser aplicada à
política, como à ciência e à religião. Quando a polarização ultrapassa os
limites do bom senso e da razão, e alcança patamares de extremismo e radicalismo, deixa de ser
orientada por crenças e ideologias que Gramsci chama de "historicamente
orgânicas" - ideologias estas que
como o cimento na massa dão a um grupo ou sociedade força e sustentação - e
passam a ser configuradas e orientadas a partir de crenças e ideologias que
Marx denomina "arbitrárias ou autoritárias", cujas características
foram já anteriormente apontadas. Ao contrário porém das ideologias e crenças historicamente
orgânicas, que são flexíveis e receptíveis, abertas a novas ideias e eventuais
mudanças, as ideologias e crenças arbitrárias são dogmáticas, inflexíveis
e impermeáveis ao novo e a qualquer tipo
de contestação. Frank Zappa, um dos maiores músicos e compositores do século
XX, afirmava que a mente é como um paraquedas: só funciona bem se não estiver
aberta. Essa é sem dúvida uma boa comparação, e mais que isso uma excelente
recomendação.
O fato é que nossa sociedade não se
encontra apenas dividida e polarizada: vivemos e experimentamos, ainda, o
extremismo de dois grupos intensa e assustadoramente radicalizados. Quando isso
acontece as pessoas têm notória dificuldade em dialogar e se entender nas
mínimas coisas, com o nível de stress e ansiedade indo às alturas, e ao mesmo
patamar o teor de ferocidade e agressividade. Concomitantemente, como seria de
se esperar, os termômetros do respeito e da tolerância tendem a zero. Ao mesmo
tempo, e para piorar ainda mais as coisas, cada grupo se "empanturra"
de todo e qualquer tipo de conteúdo que corrobore suas crenças e convicções - o
assim chamado "viés de confirmação" - alimentando a mente própria e
compartilhando notícias falsas, maldosas, entorpecentes e tendenciosas,
beirando as raias do maquiavelismo e sem um mínimo de apreço para com os
princípios da ética, do bom senso e da moralidade. Virtude então, nem se fale:
fica totalmente fora de cogitação! É como se a razão saísse de cena e cedesse
seu lugar à paixão. Tomados e
arrebatados por esse estado de espírito profundamente alterado as
pessoas passam horas e horas, do dia e da noite, à caça de mais conteúdos,
notícias e compartilhamentos, que logo em seguida vão por sua vez repassar à
frente sem uma checagem consciente e minimamente responsável pela originalidade
e veracidade das fontes. E assim a vida vai seguindo em frente, enquanto uma
espécie de "corrente do mal, da maldade e da maledicência" vai se
formando, ainda que na maioria das vezes, há que reconhecê-lo, sem que haja má
fé ou perversa intenção. Essa espécie de "corrente do pessimismo e do
negativismo" acaba literalmente adoecendo as pessoas, mental, física e
emocionalmente, sem que elas se apercebam desse processo de aniquilamento e exaurimento de suas energias
saudáveis, positivas, otimistas e motivadoras, tudo isso independente do grupo
a que pertençam ou do lado em que estão.
Para entender melhor esse tipo de
perda e comprometimento é preciso ter presente o que sobre a mente e o cérebro
apontamos no início de nossa reflexão. Tudo que "alimenta" nossa
mente inconsciente, dizíamos, mente esta incapaz de distinguir o falso do
verdadeiro e o real do imaginário, vai aos poucos
"programando-a", num claro
desafio à nossa vontade livre e à nossa capacidade consciente de controle e
tomada de decisão. Essa espécie de "conteúdo programático" vai
posteriormente não só orientar nossa vontade, nossas escolhas e decisões, como
também "condicionar" nossos afetos, sentimentos e emoções, e por fim
nossas ações, atitudes e comportamento. Esta é por sinal a base sobre a qual se
assenta a chamada Teoria Cognitivo Comportamental, "uma das", senão a principal
abordagem terapêutica da atualidade. Na prática nossas atitudes e
comportamentos refletem nosso estado afetivo-emocional, isto é, nossos
sentimentos e emoções, que por sua vez são reflexo de nossas crenças, ideias e
representações. "Semeia-se um pensamento colhe-se um ato - afirma Marlon
Laurence - semeia-se um ato colhe-se um hábito, semeia-se um habito colhe-se um
caráter, semeia-se um caráter colhe-se um destino". Tudo começa, como se
vê, com um simples pensamento, uma
crença, uma ideia ou uma representação de mundo, representação esta a que damos
o nome de "cosmovisão".
Equivoca-se quem pensa que o mal e a
maldade em forma de conteúdos e de notícias tóxicas e intoxicantes povoam
apenas notícias, noticiários e os diversos meios de comunicação. Muitas e
muitas vezes tais conteúdos nos chegam discreta e subliminarmente por
intermédio de pessoas bem intencionadas porém descompensadas, de
"amigos" que querem o nosso bem mas que sem querer e saber nos
aproximam do mal, de partidários e correligionários do mesmo grupo, partido,
seita ou religião. Atraídos e seduzidos pelo canto da sereia da polarização e
do extremismo eles se tornaram servos e servidores fiéis do senhorio de
"doom", e como um cego conduzindo outro tentam nos atrair agora para
o abismo da ruína e da perdição. O célebre ditado "diga-me com quem andas
que te direi quem és" não precisa ser senão levemente modificado:
"diga-me com quem te manténs conectado e te direi se estás calmo ou
estressado".
Num artigo recente, intitulado
"Como psicólogos têm tratado o adoecimento político na clínica", a
terapeuta Maria Pereira afirma que tratar os laços que foram desfeitos após
brigas entre famílias e entre amigos por causa da polarização política virou um
desafio até mesmo para psicanalistas. Isso porque, segundo ela, o racha
político e ideológico entre amigos, familias, e até mesmo casais, tem provocado
brigas, rompimento e adoecimento mental para uma grande parcela da população.
No mesmo artigo o psicanalista Christian Dunker afirma que o problema alcança a
todos, e atravessa tanta gente porque ele atinge os recursos naturais da saúde
mental das pessoas, tais como suas mais diversas relações, suas famílias, vínculos
comunitários e laços afetivo-emocionais.
A polarização e a radicalização, ele explica, fizeram muito mal - e continuam
fazendo, grifo nosso - justamente porque fez com que muitos de nós perdêssemos
boa parte desses recursos. Por fim Marcelo Bizzotto, também terapeuta, tece o
seguinte comentário: "a dimensão política hoje está muito ligada à questão
dos afetos. A política deixou de ser algo simplesmente argumentativo e
ideológico e passou a ser algo muito da emoção e da paixão".
Haveria algo ainda mais perigoso e
espinhoso que o quadro descrito por Bizzotto? Lamentavelmente a resposta é
"sim", há um quadro que se revela ainda mais grave: quando a
política, já tendo sido invadida pela paixão, é também tomada de assalto pela
religião. Não há como não deixar de fazer aqui uma analogia com a célebre
advertência de Hans Kelsetn, criador da
chamada "Teoria Pura do Direito". Dizia ele: "quando a política
entra por uma porta, a justiça sai pela outra". Kelsen sabia muito bem dos
"estragos" a que um conluio do tipo está destinado a produzir. Por
isso disse o que disse. Da mesma forma, experimentamos e continuamos ainda a
experimentar na pele o estragos e danos que o conluio entre política e religião
podem causar. Se a paixão desenfreada é capaz de produzir males e perdas
incalculáveis quando invade como
"penetra", sem ser convidada, os domínios da política, ao fazer o
mesmo a religião, seja ela organizada e institucionalizada ou não como afirma
Lou Marinoff, torna-se uma agravante. Das piores! E se o dogmatismo característico
de tais religiões vem junto, os danos produzidos são, aí sim, verdadeiramente
imprevisíveis. Não por acaso e menos ainda por motivo fútil o segundo
Mandamento do Decálogo Cristão adverte para que não se lance mão do nome de
Deus em vão. E isso foi feito "às pampas", de maneira obscena e
ignominiosa nesse período de Eleições, provavelmente como em nenhum outro de nossa história. Quando
cruzamos polarização e radicalismo político com paixão obstinada e
desembestada, e acrescentamos como ingrediente extra fundamentalismo e
radicalismo religioso, temos a receita
certa do desastre nãos mãos. Difícil
mesmo é imaginar para que lado da contenda se decide o divino em meio a tanta
confusão. "A César o que é de César, a Deus o que é de Deus!". Pelo
visto ainda teremos que aprender melhor a lição.
À guisa de conclusão: o monstro do
Lago Ness não existe, nunca existiu. Mas nós podemos criá-lo, dar-lhe vida,
trazê-lo à existência. À semelhança das pedras de um quebra-cabeça que vai
sendo montado passo a passo, cada vez que acessamos a tela de nosso celular ou
computador à caça de notícias, postagens e compartilhamentos cujo conteúdo é
negativo, pessimista e ideologicamente contaminado, "doom" -
permeando nossa mente inconsciente - vai ganhando vida e sendo plasmado. Não à
imagem e semelhança de um "daimon" divino, benígno e criador, mas de
um espírito demoníaco, maligno e destruidor. Fruto de nossa criação ele nos
arrasta e nos faz submergir para as profundezas do lago de nosso inconsciente,
e tenta nos afogar nas águas contaminadas da ansiedade, da malinconia e da
depressão. Mas ele sabe que precisa de nós, e por isso nos quer e nos mantém
vivos, ciente de que somente nós podemos ser os instrumentos e as armas de seu
potencial destruidor. E assim ele nos arrasta para as águas agitadas da
superfície do nosso eu consciente e nos faz destilar ódio, fúria e
ressentimento pela boca, calúnia, injúria e difamação pelas narinas, violência,
agressividade e brutalidade pela mãos.
Enquanto nossos filhos e netos, os
jovens e os adolescentes, travam uma luta de vida e morte contra os personagens
e as forças do mal do mundo distópico, infernal e sul-real de "doom",
nós adultos travamos uma batalha mais que sul-real contra personagens reais do
mundo da justiça, da política e da religião. Personagens estes que com nossas
mentes entoxicadas e adoecidas são por nós diabolizados, monstrificados e
endemonizados, e que como espectros e fantasmas povoam dia e noite nossa imaginação. Forças do mal
que não estão fora mas dentro de nossas mentes, que louca e tresloucadamente
nos levam a travar uma guerra perdida de antemão, pois nos tornamos
literalmente entorpecidos e incapazes de perceber que estamos combatendo o
inimigo errado no campo de batalha equivocado. Damos vida a um monstro, um
"frankstein" - " um demônio", se se preferir - que depois
nos torna cegos para a percepção de sua existência, escravizados a serviço de
suas pretensões maquiavélicas, e nos mantém cativos numa prisão chamada
"mente". "Mente inconsciente", mais precisamente!
Não é preciso ser religioso,
espiritualista ou sequer espirituoso para saber que com o mal não se brinca.
Nenhum pai ou mãe minimamente consciente e responsável coloca nas mãos do filho
fogo, droga ou veneno, e muito menos uma arma que sangra e mata. Pelo
contrário, mantém bem longe tudo que ameaça e é capaz de ceifar a vida, tanto
dos seus como de outrem. Ocorre que os influenciadores digitais e os criadores
de "diversões infernais" estão à solta, assim como os propagadores de conteúdos tóxicos, destrutivos
e letais. Não faz sentido advertir, proibir ou até mesmo punir os pequenos,
quando também nós adultos -
"imagos" e referências paradigmáticas da estruturação de suas
personalidades - fazemos o mesmo na vida real. Tampouco precisamos de demônios,
espíritos malignos e forças do mal que venham do além, do sub-mundo ou do
além-mundo, para perpetrarem e nos causarem mal. Os "daimons" e
"dooms" malignos e malévolos que
perambulam entre nós e povoam nossas mentes bastam, são potencialmente
danosos e destrutivos o suficiente para intoxicar e fazer adoecer nossa vida
mental. E sabemos bem do quê uma única mente maníaca e "possuída" é
capaz de produzir em termos de morte e destruição. A humanidade certamente
jamais se esquecerá de um nome, Adolph Hitler, com sua mente pervertida e seu
plano infernal. Sabemos também que por razões óbvias os criadores de
"Doom", a série, não estão
"nem aí", não dão a mínima para a intoxicação mental e a contaminação
emocional de nossos jovens. Oxalá nós pais e adultos não continuemos, também
nós, nos deixando seduzir e cair em semelhante tentação no mundo real. Afinal,
"somos o que pensamos - afirmava Buda - tudo que somos surge com nossos
pensamentos. Com nossos pensamentos construímos o nosso mundo".
(*) Reflexão enviada de Vitória(ES)
por whatsapp.
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