sexta-feira, 15 de setembro de 2023

"JAVÉ, ALÁ, BRAHMAN, LOGOS, OU O GRANDE MISTÉRIO: RESSIGNIFICANDO O CONCEITO DE DEUS"

 

"JAVÉ, ALÁ,  BRAHMAN, LOGOS, OU O GRANDE MISTÉRIO: RESSIGNIFICANDO O  CONCEITO DE DEUS"

Lindolivo Soares Moura(*)

        [Texto Integral]

       "Deus  é  um   termo   'vazio', exceto quando  expresso  por  meio das revelações  de  santos,  profetas   e místicos  ao  longo da história"  [Deepak Chopra]

Os seres humanos, se não todos pelo menos uma grande parte, sempre foram fascinados pela origem e o surgimento das coisas. Quanto maior o mistério, maior o fascínio. Assim ocorre, por exemplo, com a busca pela origem do universo, da matéria, do próprio ser humano, do bem e do mal, e de tantas outras realidades que nos cercam. Nessa incansável e inesgotável busca, nem sempre a razão é soberana. De acordo com Deepak Chopra, por exemplo, o que levou Einstein a elaborar a Teoria da Relatividade não foi a razão, e sim o fascínio e o êxtase nascidos da contemplação e da admiração. Einstein concordaria plenamente com essa afirmação. Num opúsculo precioso intitulado "Como vejo o mundo", no qual faz questão de compartilhar com todos e não apenas com os homens de ciência sua visão do universo, ele escreveu: "a emoção mais bela e mais profunda que podemos ter é a sensação do místico. É a precursora da verdadeira ciência. Aquele para quem essa emoção é desconhecida, aquele que não consegue mais ser tomado de assombro, está praticamente morto". Platão, falando das relações saudáveis e amistosas entre mito e razão, afirmava que o mito busca na razão uma explicação, enquanto a razão continua buscando no mito - ou seja, na fantasia e na imaginação - uma complementação. Seriam esses dois diferentes e complementares mundos a razão de ser dos dois diferentes lados, esquerdo e direito, do nosso cérebro?

Se quanto maior o mistério maior o fascínio, seria inconcebível que Deus permanecesse fora dessa busca. Afinal, de acordo com Rubem Alves Deus não é apenas um entre tantos: é "o", Grande Mistério. E se Deepak Chopra tem razão, o que ele chama de "buscadores" seria a irmandade ou fraternidade mais antiga do mundo, que se conhece. "Há milhares de anos - ele afirma - talvez desde os tempos das cavernas, a mente humana possui a capacidade de abstrair a existência de uma realidade superior. Pinturas sagradas e estátuas são tão antigas quanto a civilização, precedem a linguagem escrita e talvez até a agricultura".

O certo é que antes mesmo que a razão e a racionalidade humana viessem ocupar a cena como atores principais, com o surgimento da filosofia, poetas como Homero e Hesíodo já demonstravam particular interesse em perscrutar a origem do cosmo e o nascimento dos deuses, ensinamentos que posteriormente eram repassados, oralmente, sobretudo para as crianças e jovens de seu tempo. Ilíada, Odisseia e Teogonia deixariam marcas importantes e profundas não apenas na cultura e na vida dos gregos, mas também de muitos outros povos e civilizações. As diversas teologias - e não mais, "teogonias" - particulares e específicas que surgiriam posteriormente acabariam sendo todas elas, de uma forma ou de outra, devedoras de uma teogonia comum -  aquela de Hesíodo - e dos poemas épicos atribuídos a Homero.

Característica desses tempos o politeísmo reinava dominante em praticamente todas as civilizações, exceção talvez a ser feita ao Zoroastrismo persa de Zaratustra -  Zoroastro para os gregos - e posteriormente ao Judaísmo, Cristianismo, Islã ou Islão ou ainda Islamismo. As primeiras "archés" - princípio original e originante de tudo, para os gregos - eram divinas, e seria necessário aguardar a chegada dos primeiros filósofos, chamados físicos ou naturalistas, para que esse lugar e essa função fossem exercidos, ao menos por um tempo, pelos mais diversos elementos presentes na natureza. A racionalidade filosófica viria lançar luz sobre certas questões com as quais o mito, a mitologia e as teogonias sequer haviam se preocupado em confrontar. Dentre elas o fato de que Deus, sendo um ser perfeito, deveria também ser imutável, posto que a mudança ou mutabilidade só poderia ser consequência inevitável da finitude e da imperfeição da criatura, não do criador. A esse respeito Deepak Chopra esclarece: "na evolução de Deus, suas origens são ancestrais, o que não significa que sejam primitivas. Deus evolui, enquanto as crenças afirmam que Deus é infinito. O que evolui, na verdade, é o entendimento humano. Pensamos que Deus muda porque nossa própria percepção muda". Ressignificar e rematrizar são formas privilegiadas de se continuar aprimorando essa percepção, bem como impulsionando e garantindo a continuidade dessa evolução. O fato de que Deus seja imutável não implica necessariamente que a percepção que dele temos deva ser estática, um erro de trágicas consequências cometido pelo chamado "fundamentalismo religioso". Muito pelo contrário, precisa e requer que seja estável; estática, jamais.

Escritos e conteúdos semelhantes a este com o qual você está interagindo nesse momento são particularmente problemáticos. A principal razão disso é que eles costumam transformar em problema aquilo que para muitos, provavelmente a maioria, é percebido como solução e parece fora de discussão. Todo terreno sagrado é também um campo minado", afirma Karim Khoury, quer estejamos falando da espiritualidade coletiva, quer daquela individual ou pessoal. Assim como  espaços e territórios têm sido demarcados desde sempre, indicando privacidade, posse e propriedade e a partir de então defendidos a ferro e fogo, cada religião possui também sua versão particular e exclusiva de Deus, defendida não apenas com discursos, bandeiras e brasões, mas também com armas, escudos e munições. Basta que se admita a existência de um ou mais deuses nos céus para que uma verdadeira legião de supostos eleitos se apresentem como seus legítimos representantes na terra. A crítica impiedosa de Nietzsche ao monoteísmo religioso sempre teve como principal razão o fato de o mesmo, segundo ele, ampliar ainda mais o desrespeito e a intolerância das religiões monoteístas entre si, e destas para com as demais. A luta por hegemonia, assim como as inúmeras guerras e batalhas que ao longo dos séculos entre elas vêm sendo travadas, teriam se intensificado, de acordo com ele, justamente por essa razão. Se é verdade que tal hipótese dificilmente pode ser comprovada, pode com certeza muito razoavelmente ser admitida. O certo é que, se para muitos Deus é visto como solução, os diversos conceitos que dele se tem, acompanhados dos ensinamentos e das práticas que os acompanham, podem revelar-se extremamente complexos, contraditórios e problemáticos. Todo cuidado é pouco quando se transita num terreno dessa natureza.

Podemos não concordar plenamente com as críticas feitas à religião e à fé religiosa por homens como Nietzsche, Freud, Marx e Sartre, dentre outros, para mencionar apenas os séculos XIX e XX, mas abdicar da tarefa de analisar, refletir e avaliar sobre os benefícios e ganhos que podemos extrair de tais críticas seria no mínimo insensatez, para não dizer irresponsabilidade. Considerando-se que a crítica Nietzscheana foi e parece continuar sendo a mais contundente delas, culminando inclusive com sua célebre "proclamação da morte de Deus", parece oportuno que nela nos detenhamos, ainda que, por razões óbvias, brevemente. Mas se estamos abertos e dispostos a esse confrontamento, é preciso fazê-lo com coragem e sem preconceito. Nos tempos atuais parece não haver unanimidade nem para exaltação e tampouco para crucificação seja de sua pessoa seja de seus escritos. Como se ambos estivessem, como ele mesmo diria, "para além do bem e do mal". O problema surge a partir do momento que insistimos em interpretar a crítica nietzscheana de Deus não com a chave de leitura e de interpretação do próprio Nietzsche, e sim com nossa própria chave de leitura e de interpretação. Acabamos incorrendo assim numa espécie de erro metódico ou metodológico grave, lamentável e imperdoável, não raro interrompendo a leitura antes mesmo de iniciá-la e terminando por condenar o réu antes mesmo de submetê-lo a julgamento. Por vezes até mesmo o inquérito e a investigação acabam sendo dispensados: os estudiosos que menos leem Nietzsche costumam ser os que mais conspiram contra ele. Houve um tempo em que a isso se dava o nome de "inquisição". Se você se considera mentalmente "conectado" com esse tempo, e ideologicamente de acordo com sua estratégia de enfrentamento para com a pluralidade e a diversidade de opiniões, sinta-se à vontade para ignorar o próximo parágrafo.

Sobre Nietzsche, OSHO, considerado ao lado de Buda e Gandhi como um dos dez grandes personagens que mudaram o curso da história da Índia, e entre os mil que influenciaram a trajetória da  humanidade, proferiu o seguinte comentário: "Friedrich Nietzsche talvez seja o maior filósofo que o mundo já conheceu. Ele é igualmente grande numa outra dimensão da qual a maioria dos filósofos não faz a menor ideia: Nietzsche é um místico de nascença. Seu único azar foi ter nascido no ocidente. Para compreender um homem como ele,  é preciso estar no mesmo nível de consciência que ele, se não acima". Duas afirmações nietzscheanas são particularmente impactantes, e se constituem ao nosso ver na melhor e mais adequada chave de leitura e de interpretação de sua crítica sobre Deus e de sua espiritualidade peculiar. São elas, em grau de importância não necessariamente nesta ordem: "o verdadeiro e autêntico Cristianismo morreu na cruz" e "não me faço cristão porque não vejo nos cristãos rostos de ressuscitados". Tais afirmações permitem, ausente qualquer juízo prévio de valor, uma primeira e importante conclusão:  Nietzsche não foi um ateísta no sentido clássico e tradicional do termo, assim como provavelmente também não o tenham sido um Marx, um Freud, um Einstein e um Sartre, dentre outros. Foram sim, todos eles, incontestável e inegavelmente grandes e apaixonados humanistas. Da mesma forma que Lutero inicialmente jamais teve a pretensão de provocar divisão ou ruptura para com a Igreja, Nietzsche propugnava por uma reforma radical - se é que ele validaria uma expressão do tipo - dos costumes, dos valores e das crenças, maiormente aquelas de natureza moral e religiosa, reforma para a qual lamentavelmente nem a Igreja nem a ciência, e tampouco a filosofia da religião pareciam estar preparadas para enfrentar e muito menos realizar. Nesse sentido, foi sem dúvida um personagem muito à frente de seu tempo, assim como certamente o foram Giordano Bruno, Lutero, Hans Küng, Leonardo Boff e outros mais. Sua afirmação de que "o verdadeiro e autêntico cristianismo morreu na cruz" recebeu várias, díspares, e como não poderia deixar de ser, absurdas e tendenciosas interpretações. Ao sabor, claro, das ideias, ideologias, crenças e intenções de quem o interpretava. A esse respeito, OSHO faz a seguinte afirmação: "ninguém pode evitar ser mal interpretado; não há o que se possa fazer contra isso. Uma vez que você tenha dito algo, o que a outra pessoa vai fazer com isso depende apenas dela. As pessoas compreendem as coisas de acordo com seu próprio nível de consciência". Há porém uma verdade inconteste que, a nosso juízo, transcende todas essas interpretações: a de que, para além de sua pesada e mordaz crítica, Nietzsche reconhecia a possibilidade de existência de um Cristianismo autêntico e verdadeiro, vivido, praticado e ensinado por um líder carismático de nome "Jesus", mas que infelizmente, em se confirmando o testemunho da história, teria conhecido seu fim "com" e "em uma" cruz. Cruz esta que a seu juízo terminararia por decretar não apenas o fim trágico de seu fundador, mas, com ele, o fim igualmente trágico e irreversível do "modus essendi" e do "modus vivendi" - um jeito característico de ser e de viver - que ele havia praticado, ensinado e implantado. "Se se separa o judaísmo dos profetas, e o cristianismo tal como foi ensinado por Jesus Cristo de todos os acréscimos posteriores, em particular aqueles dos padres - escreveu Einstein - subsiste uma doutrina capaz de curar a humanidade de todas as moléstias sociais". Para  Nietzsche, a forma como a autoproclamada "Igreja" e os assim chamados "cristãos" vêm ao longo dos séculos conduzindo, vivenciando e ensinando o que viria a ser chamado de "cristianismo", seria uma outra história, uma espécie de "segunda traição" para com seu mestre e fundador. E é essa outra história, bem como sobretudo a forma de conduzi-la, a razão e o fundamento maior da crítica Nietzscheana. Podemos não concordar com essa crítica, seja no todo seja em parte, mas ignorar esse fato seria não apenas incorrer numa lamentável demonstração de parcialidade em nosso julgamento, como também cometer uma cruel e imperdoável injustiça contra  Nietzsche. Isto porque, a rigor, sua crítica não é apontada diretamente para o Deus cristão - quiçá, para nenhum deus em particular - mas sim para aquilo no que a autoproclamada "Igreja" e os assim chamados cristãos vêm, há muito, transformando esse Deus: uma autêntica caricatura. Máximas ou chavões do tipo:  "Deus está morto! - Nietzsche. Nietzsche está morto! -Deus", são demasiado passionais e obviamente insuficientes para invalidar essa crítica. Nietzsche: para muitos, uma mente errante e tresloucada, louca e alucinada; para outros, uma inteligência brilhante, um ressignificador e um rematrizador para além da capacidade de compreensão e aceitação de seu tempo. E possivelmente do nosso.

De acordo com Jean-Yves Leloup, em "A arte da atenção", os conceitos arquetípicos de "Deus" e do "amor são, curiosa e paradoxalmente, os que mais vêm se deteriorando ao longo dos tempos. E o principal motivo, em ambos os casos, não poderia ser outro: em nome de Deus e em nome do amor os seres humanos tanto têm alcançado píncaros de grandeza e generosidade, como atingido abismos de mesquinhez e atrocidades. Apesar de mandamentos e ordens expressas alertarem para os perigos e as consequências de se pronunciar e utilizar o nome de Deus em vão, isso tem sido feito com rotineira frequência de maneira irresponsável, escancarada e em muitos casos despudorada. "Toda fé é uma paixão fortíssima, tanto para o bem quanto para o mal", afirma Lou Marinoff, ao que Bertrand Russell fazendo eco acrescentaria: "apenas amplia o bem ou o mal que já existe". De acordo com ele, Russell, "homens cruéis acreditam num Deus cruel e usam sua crença para justificar sua crueldade. Homens bons acreditam num Deus bom, e serão bondosos de qualquer jeito". Desse paradoxo nenhuma religião parece ter conseguido se libertar, máxime se aqui estamos a nos referir àquelas que abraçam o monoteísmo, também chamadas de "religiões do livro": Judaísmo, Cristianismo, Islã ou Islão ou Islamismo.Tanakh, Bíblia Cristã, e Alcorão, são respectivamente seus livros considerados sagrados. Vidas e mais vidas continuam ainda hoje sendo sacrificadas em disputas sangrentas por lugares e espaços considerados sagrados e de propriedade supostamente inconteste, por essa tríade político-religiosa ou religioso-política, como se prefira. Era a elas, muito provavelmente, que Rubem Alves se referia quando afirmava que toda teologia não é senão uma "gaiola de palavras" com a qual se pretende aprisionar o Grande Mistério com o propósito de dele se apropriar, e em nome dele tentar justificar todo tipo de atrocidades. Se por um lado todas as religiões ensinam a observar a tolerância, cultivar a paz, e compartilhar um amor universal, por outro seus livros considerados sagrados são continuamente desvirtuados com a finalidade de justificar o ódio, a perseguição e o extermínio dos mais diversos tipos de "bodes expiatórios", paranoicamente considerados como ameaçadores e hostis aos seus propósitos de hegemonia, arrebanhamento e homogeneização do "rebanho". Cumpre observar que em todos os casos mencionados o que está em jogo não é Deus, em sua essência e em si mesmo considerado - para todas as religiões o conceito de Deus invariavelmente se identifica com o conceito de amor - mas sim concepções e interpretações excessivamente antropomórficas que dele se têm, algumas delas reconhecidamente tóxicas e letais por suas consequências. De acordo com Marinoff, as grandes religiões tornaram-se "grandes" principalmente em razão de conquistas políticas: "foi a combinação de fanatismo religioso com ambição politica - ele afirma - que tantas vezes deu origem ao sofrimento em escala maciça, em toda a história do mundo. Sempre que os fanáticos de qualquer fé ou culto tribal ou ateu conquistaram o poder político, infligiram sofrimento desnecessário". Assim, quando Nichiren Daishonin afirma que "Budismo é razão", e Sidharta Gautama, o Buda, decide por não incluir Deus em sua trajetória de busca por iluminação, podemos ponderar que sérias e justificadas razões estariam em jogo por trás dessa decisão. E como ao que parece tais razões jamais foram suficientemente explicitadas, nossa imaginação transita livre para conjecturar sobre quais poderiam ter sido. A possibilidade de que Buda de forma visionária e profética tenha se antecipado em aproximadamente dois milênios e meio a Freud, e  tentado evitar - ou ao menos não compactuar -  "com" - o que seria identificado e classificado por Freud como um profundo mal-estar na civilização, não pode ser descartada. E na eventualidade de haver sido esse o caso, sem minimizar o mérito concedido a Freud, a quem se atribui o título de "pai da psicologia científica", talvez a Buda ficasse bem o reconhecimento da "maternidade". Ao menos no tocante a essa mesma filha.

Dizia Voltaire que se Deus não existisse seria necessário inventá-lo. Filósofo deísta, acreditava em Deus na exata medida em que recusava a qualquer igreja ou religião a pretensão de apresentar-se como seu suposto e legítimo representante; se de maneira restrita e exclusivista, menos ainda. Deus estaria presente na natureza e acima de tudo em cada ser humano, bastando portanto a razão para se poder alcançá-lo, assim como para se alcançar a salvação. Iluminista convicto e contumaz a ele é atribuída pelos defensores da liberdade de expressão, tanto religiosa como de pensamento, a célebre máxima: "posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até à morte o seu direito de dizê-lo". Se partirmos do pressuposto de que nossas palavras externalizam e verbalizam nossos pensamentos - ou que ao menos assim deveria ser - concluiremos que para Voltaire também o direito de pensar livremente deva ser considerado um direito inalienável a ser garantido pela Carta Magna de cada povo e nação. Nascia daí a pergunta que para ele se recusou a calar: e por que não, por toda e qualquer fé ou religião? Juntamente com outros iluministas renomados Voltaire criticava a postura da Igreja pela sua pretensão em controlar e condicionar as ideias e as crenças das pessoas, impedindo-as assim de exercitar sua liberdade tanto de pensamento como de expressão e de religião. Porém, assim como em Nietzsche, sua crítica não se dirigia diretamente a Deus, considerado por ele como ser necessário, supremo, inteligente, e única explicação possível para um mundo "impecavelmente" - adjetivo nosso, e não dele -  estruturado e ordenado. Visava, sim, as religiões estabelecidas, que compactuando com o poder temporal e secular mantinham as pessoas cativas de sua própria ignorância e de sua subserviência, justamente por não poderem pensar livremente e por conta própria. Rejeitando essa herança medieval os iluministas passaram a considerar tal período como um tempo e um legado de trevas e escuridão. Qualquer crítica que ignore ou  desconsidere esse contexto, e sobretudo essa motivação, seria também injusta, para não dizer irresponsável, tanto para com os iluministas em geral como para com Voltaire em particular. Na esteira de Lutero, e juntamente com ele ainda que em diferentes momentos da história, propugnaram todos eles, corajosa e incansavelmente - para fazer uso de uma linguagem da psicologia contemporânea - por um processo de "ressignificação e de rematrização" tanto do conceito de Deus como do conceito de religião. Somente isso já seria motivo mais que suficiente para sermos reconhecidos e gratos a todos eles. Porém, talvez seja forçoso admitir, é provável que ainda não estejamos suficientemente preparados para tanto.

Afirma um ditado alemão que "quanto mais leis, menos justiça". De forma análoga, razão e racionalidade desafiam o nosso bom senso insistindo ser imperativo compreendermos que, "quanto mais dogmas, menos credibilidade". O fato é que certas religiões chegam a cometer esse "pecado capital" - enclausurar mistérios em dogmas - em nível e grau tão elevados, que até Deus provavelmente chega a ficar desconfiado. Coloque e mantenha sua paixão no "stand by" por alguns instantes - já vimos que toda fé é "apaixonada", de acordo com Marinoff e Russell - e feito isso pare, pense e reflita: talvez não haja absurdo maior a que se possa chegar, que a pretensão de enclausurar um "mistério" em um "dogma", e a partir daí sair a proclamá-lo mundo afora como sendo o principal fundamento ou "pedra angular" de um  determinado credo ou religião. Quando não se trata apenas de um, mas de dezenas deles - aos dogmas, e não aos mistérios, estou me referindo - o absurdo cresce em progressão geométrica e se torna praticamente impossível identificar o grau da equação. Que a vida nos submeta a todo momento a uma série de paradoxos, é algo que aparentemente não se tem como evitar. Mas os paradoxos a que somos submetidos por certas religiões, há que se admitir: só mesmo Deus para resolvê-los. Isso, claro, se é que eles tenham solução. Não se requer muito exercício de inteligência para se perceber que "mistério" e "dogma" são dois conceitos totalmente incompatíveis, tanto por natureza quanto por definição. Se por evidência se pode entender "o esplendor da verdade que arrebata o nosso assentimento", sem sombra de dúvida estamos aqui diante de uma das evidências mais contundentes com as quais um ser humano possa ser confrontado. Dogmatizar um mistério significa literalmente incorrer num autêntico "assassinato", vários deles, um genocídio, na medida em que com a dogmatização o mistério simplesmente deixa de existir como tal, isto é, como mistério que é, sempre foi, sempre deveria ser e deve continuar sendo. Observe com atenção a esse respeito o seguinte "relato-testemunho" - por razões pessoais vou descrevê-lo assim - com o qual nos brinda e ao mesmo tempo nos conclama à reflexão Rubem Alves: "havíamos ido ao cinema ver o E.T.. Minha filha, cinco anos, chorava convulsivamente ao voltarmos para casa. Depois do lanche, quis consolá-la das lágrimas, que não paravam. 'Vamos procurar a estrelinha do E.T.!', sugeri. Ela me acompanhou. Mas o céu se cobrira repentinamente de nuvens. Não havia nenhuma estrela visível. Fiquei sem saber o que dizer. Improvisei, então. Corri para trás de uma árvore e disse: 'venha! O E.T. está aqui!'. Ela parou de chorar, olhou-me séria e disse com voz firme: 'papai, não seja bobo! O E.T. não existe!'. Essa resposta realista e fria pegou-me desprevenido. Me defendi. Armei um xeque-mate: 'não existe? Então por que você estava chorando?'. O seu choro não era uma evidência de que ela acreditava na existência do E.T.? Mas quem levou o xeque-mate fui eu. Foi isso que ela me respondeu: 'eu estava chorando por isso mesmo, porque o E.T. não existe!'. Eu, tolo, misturara o que não podia ser misturado. Tirara o E.T. do mundo da fantasia onde ele vivia - uma estrela distante, provavelmente vizinha da estrela sorridente, morada do Pequeno Príncipe - e o matara ao trazê-lo para o mundo real. Ela sabia mais do que eu. Sabia que o E.T. só existe no mundo da fantasia. Até minha intervenção desastrada o E.T. era real. A estória estava acontecendo. Por isso ela chorava. A alma chora pelo que não existe. Mas seu choro parou quando sequestrei o E.T. de sua estrela distante para colocá-lo atrás da árvore do meu jardim". Ao buscar esse relato-testemunho com a intenção de aqui reproduzi-lo, fiquei surpreso ao perceber que Rubem Alves utiliza um termo-sinônimo - "matar" - equivalente ao que eu utilizara anteriormente - "assassinar" - para caracterizar o que ele chama de uma "intervenção desastrada". Talvez a transmutação de um mistério em um  dogma não se constitua senão nisto: numa triste, lamentável e desastrada intervenção.

À guisa de conclusão: podemos imaginar - "normal" ou neuroticamente, a linha limítrofe é bastante tênue - que existe uma espécie de "complô" em todos os níveis, inclusive mundial e universal, com o nítido propósito de exterminar da face da terra Deus, deuses, e as diversas religiões. Acabar com a própria fé, para muitos, talvez seria o último passo dessa empreitada, mais que maquiavélica,  verdadeiramente demoníaca. Quanto mais nos convencermos e abraçarmos convicta e apaixonadamente tal crença, maior será inevitavelmente a probabilidade de recusarmos de forma veemente, sem discussão e sem a mínima reflexão, qualquer proposta de ressignificação e rematrização de nossas demais crenças e convicções. Se estivermos falando de crenças e convicções de natureza "religiosa", então, essa probabilidade se aproxima de zero. O problema é que, de acordo com certo autor desconhecido, "as crenças e as convicções governam o mundo com seus pezinhos de lã", "primeiro entrando em cena as ideias e só depois os canhões", como diria outro ilustre desconhecido. Em contrapartida, seria no mínimo insensatez, para não dizer estupidez, ignorar o fato de que, em razão da dialética tanto da vida e das coisas, quanto das idéias e do pensamento, forças contrárias, por vezes radicalmente antagônicas, contracenam o tempo todo neste grande palco que é a vida, e neste cenário permeado de paradoxos e contradições que é a nossa existência tanto coletiva quanto pessoal e individual. Uma grande "tragicomédia" talvez fosse o conceito mais adequado para se caracterizar a natureza desse drama. Apesar de tudo isso, de acordo com Rubem Alves "a vida é e será sempre um verdadeiro show, um maravilhoso espetáculo". Saber contracenar bem neste grande "show da vida", atuando como um músico imprescindível para a harmonia de uma grande orquestra, exige mais que dom ou talento: requer também muito ensaio, esforço e determinação. Sem um despertar intencional da consciência corremos o risco de permanecer sonolentos e até adormecidos no momento mais aguardado da entrada em cena de nosso instrumento-solo. Despertar é preciso!

Deus, a fé, e sobretudo as chamadas grandes religiões, exercem inegavelmente papel importante nos "modus essendi" e  vivendi" de cada ser humano. Para o bem ou para o mal. Desconhecer, negar ou ignorar esse fato, seria caminhar na contramão da história, além do que, de pouco adianta ao espírito livrar-se "de", alguma coisa, se não se estiver em condições "para", oferecer uma alternativa melhor. Entretanto, quando certas alternativas são consideradas verdadeiras utopias pelo simples fato de não haverem logrado êxito total e absoluto em suas pretensões, requer-se prudência e sabedoria no juízo que sobre elas acabamos proferindo. Em carta dirigida a Sigmund Freud o grande Einstein, visivelmente tomado pela emoção, assim se pronunciava: "muy caro Sr. Freud. Sempre admirei sua paixão para descobrir a verdade. Ela o arrebata acima de tudo. Por esta profunda paixão se reconhecem todos aqueles que, superando seu tempo e sua nação, foram julgados mestres, espirituais ou morais. Descobrimos o mesmo ideal em Jesus Cristo, em Goethe ou em Kant. Não é bastante significativo ver que esses homens foram reconhecidos universalmente como mestres, apesar de terem fracassado em sua vontade e em seu propósito de estruturar as relações humanas?". William James por sua vez, em sua obra "As variedades da experiência religiosa. Um estudo sobre a natureza humana", contrariando o materialismo cientificista que tende a reduzir a experiência religiosa a fenômenos neuróticos ou patológicos, afirma que a religião, assim como as inúmeras experiências místicas pessoais que vêm sendo testemunhadas ao longo da história, devem ser consideradas reais, e não como mero devaneio da imaginação, visto que o simbolismo envolvido no vínculo com o divino - quem quer e qualquer que seja esse divino - é capaz de produzir não só sentimentos mas também transformações e ações concretas que, de acordo com ele, não deveriam e nem poderiam ser ignorados pela ciência. Ciência materialista à época nascente, diga-se de passagem. Mesmo tendo recebido também interpretações pessimistas e desfavoráveis ao seu pensamento, a intenção primordial de William James parece ter sido a de mostrar que a fé e as experiências de natureza mística e religiosa são fundamentais, se não cruciais, para a vida e o viver humano. O certo é que sua influência perduraria por todo o século XX, e provavelmente ele e suas ideias continuarão ainda por longo tempo sendo lembrados.

"Deus é um termo vazio", continua nos lembrando Deepak Chopra. E é justamente esse esvaziamento que permite que a ele sejam atribuídos os mais diversos sentidos e significados, e dele se tenham as mais díspares e controvertidas concepções. Talvez Einstein estivesse pensando nisso, quando num memorável diálogo com Tagore - Rabindranath Tagore, o grande místico que ele sempre demonstrou vontade de conhecer e com quem fez absoluta questão de se encontrar- assim desabafou: "independente do que Deus possa ser, talvez seja melhor ficar longe do alcance. O desconhecido me move, e soluciono o desconhecido pela ciência. Não posso provar que minha concepção esteja certa, mas esta é minha religião". De acordo com Deepak Chopra Einstein havia declarado certa vez que gostaria de conhecer a "mente de Deus", deixando assim um pouco mais aliviadas as pessoas religiosas que consideravam a ciência inimiga da fé. Foi sem dúvida um grande "buscador", como diriam alguns mestres orientais, dentre eles OSHO e o próprio Deepak Chopra. Buscador não só da verdade científica, mas também da verdade sobre o divino, sem todavia jamais ter conseguido obter no campo espiritual o mesmo êxito que lograria obter no campo cientifico. O "Grande Mistério" o perseguiria a vida toda e continuaria perseguindo até à morte, como aconteceu com o próprio Rubem, e como certamente continuará acontecendo com todos os persistentes "buscadores" de todos os tempos. Cair na tentação de manter esse Deus preso em "gaiolas de palavras", enclausurá- lo em forma de dezenas de dogmas, ou  pretender tê-lo ao alcance das mãos em milhares ou milhões de caixinhas ricamente adornadas a ouro e prata, espalhadas mundo afora, não são certamente as formas adequadas de se lidar e interagir com o divino. Em verdade, talvez não seja mais que uma obsessão muitas vezes desesperada e lamentavelmente equivocada -  "humana, demasiado humana", como diria Nietzsche - mesmo que bem intencionada, na tentativa de assenhorar-se do absoluto, daquilo e daquele que jamais se permite ser possuído. Por isso a advertência de OSHO: "a liberdade é uma necessidade espiritual tão grande, é algo tão imprescindível que, sem ela, o homem nunca poderá verdadeiramente realizar a sua humanidade. A libertação de toda sorte de dogmas, superstições e ideologias é uma coisa tão urgente e crucial que, uma vez realizada, será como se todos tivéssemos asas e pudéssemos voar livremente pelos céus". A acrescentar, apenas isso: também pela terra, OSHO, também pela terra.

                       (*) Texto enviado de Vitória, pelo whatsapp.

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