SANTO AGOSTINHO E A ORIGEM DO
MAL
O MAL NUMA PERSPECTIVA JUDAICO-CRISTÃ
Durante séculos o
homem pergunta o que move o espírito humano a escolher uma boa ou má ação e
quais os critérios para efetuar tal escolha. Esses questionamentos procuram,
inicialmente, compreender a origem do homem e do que consiste em sua essência.
Filósofos de importância para a filosofia ocidental, como Santo Agostinho,
procuram dar essa resposta observando o que seus predecessores propuseram
concatenando com suas reflexões, que eram novas, para tentar resolver o
paradoxo. Fazendo um retorno na história, observa-se que a escolha entre o bem
e o mal faz parte desde os primórdios da humanidade, ou pelo menos, o que se
compreende como início, segundo determinada tradição religiosa, o judaísmo e
posteriormente o cristianismo.
O povo hebreu,
conhecido como Judeu ou Israelita, procura explicar o surgimento do mal desde a
fundamentação de sua crença. Encontra-se, segundo esta ótica, a dimensão
originária do mal no livro do Gênesis, que é o primeiro livro do Pentateuco[2].
Este livro têm a narrativa da criação do mundo e, por consequência, da criação
do Homem e da Mulher:
[…] 9.O Senhor
Deus fez brotar da terra toda a sorte de árvores de aspecto agradável, e de
frutos bons para comer; e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore da ciência
do bem e do mal. 15.O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim do Éden,
para cultivar o solo e o guardar. 16.Deu-lhe este preceito: “Podes comer do
fruto de todas as árvores do jardim; 17.mas não comas do fruto da árvore da
ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás
indubitavelmente […] 21.Então, o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono;
e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar.
22.E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e
levou-a para junto do homem. 23.“Eis agora aqui – disse o homem – o osso de
meus ossos e a carne de minha carne; ela se chamará mulher, porque foi tomada
do homem […] 25.O homem e a mulher estavam nus, e não se envergonhavam […] (Gn
2, 9, 15-17, 21-23, 25)[3].
Como é possível
observar, para os judeus, Deus é o Criador de todas as coisas, inclusive do
Homem e da Mulher, sendo esta retirada da costela do Homem. Ele também criou a
árvore que contém a ciência do bem e do mal e dá ordens estritas para que não
seja comido de seu fruto, pois resultaria na morte do ser humano[4].
A narrativa
continua o relato da criação e dos preceitos dados à Adão e Eva por Deus. Tudo
estava perfeitamente ordenado, havia harmonia entre criador e criatura. Até o
surgimento de uma serpente que conduz – fornece informações a – Eva ao erro:
1.A serpente era
o mais astuto de todos os animais do campo que o Senhor Deus tinha formado. Ela
disse à mulher: “É verdade que Deus vos proibiu comer do fruto de toda árvore
do jardim?”
2. A mulher respondeu-lhe: ‘‘Podemos comer do fruto das árvores do jardim. 3.
Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Vós não
comereis dele, nem o tocareis, para que não morrais’. 4.“Oh, não! – tornou a
serpente – vós não morrereis! 5.Mas Deus bem sabe que, no dia em que dele
comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e
do mal.” 6.A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de
agradável aspecto e muito apropriado para abrir a inteligência, tomou dele,
comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente. 7.Então os
seus olhos abriram-se; e, vendo que estavam nus, tomaram folhas de figueira,
ligaram-nas e fizeram tangas para si. 8. E eis que ouviram o barulho (dos
passos) do Senhor Deus que passeava no jardim, à hora da brisa da tarde. O
homem e sua mulher esconderam-se da face do Senhor Deus, no meio das árvores do
jardim […] (Gn 3, 1-8)[5].
Impressionante
constatar a passagem da ordem em que se encontrava Adão e Eva à desordem, dado
o motivo da serpente “induzir” a mulher a desobedecer a um preceito dado por
Deus. Após Eva comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal e oferecer
ao seu marido, o autor narra que os seus olhos abriram e perceberam que estavam
nus. Acontece aqui a passagem direta da vida para a morte, pois começam a
dar-se conta da sua condição humana de finitude e envergonhar-se. É mister
salientar que para além da presença da serpente que “induz” Eva a comer do
fruto proibido, a mulher faz as observações necessárias para tomar a
decisão[6]. Isso o autor narra, claro e distintamente, ao dizer que ela “tomou
dele, comeu e apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente” (Gn 3,6).
É exatamente neste instante que se contempla a mulher e o homem fazendo uma
escolha, e esta é pautada pela vontade que os conduz ao erro, ou como o autor
relata, à morte[7].
A morte aqui deve
ser compreendida não como morte física, mas sim como ausência do unicamente bem
e presença do erro, expulsão do Éden e, principalmente, o rompimento da
solidariedade original entre criatura e Criador, que foi a consequência do ato
de Adão e Eva, assim afirma Lopez:
[…] Antes da
tentação e da queda, o narrador havia observado que “o homem e a mulher estavam
nus, mas não se envergonhavam” (2,25). Depois da queda observa-se que “tomaram
folhas da figueira, entrelaçaram-nas e fizeram cinturas para si”, ao verem que
estavam nus (3,7). Indica-se, deste modo, o primeiro desequilíbrio: a vergonha
como consequência da queda. É o sentido profundo da culpa experimentada pelos
seres humanos. No diálogo de Deus com o primeiro casal humano e nas maldições
sucessivas, surgem outros desequilíbrios: o medo (3,10), a dor e a angústia
(3,16), o cansaço (3,17-19). Rompe-se a solidariedade original entre o homem e
a mulher; quebra-se igualmente a solidariedade original entre o homem e a
terra. E o que é ainda pior: o pecado rompe a solidariedade original entre
criatura e Criador […][8].
Constata-se,
segundo o autor, breve elucidação cronológica, diga-se assim, dos fatos
sucessivos a desobediência de Adão e Eva. Percebe-se que essa desobediência
motivada pela vontade de Eva em escolher comer o fruto, revela a íntima relação
do desejo de ser deus e possuir o conhecimento do bem e do mal[9], mesmo que isso
resulte na sua morte, sendo esta, consequência da vontade de tomar a decisão de
desobedecer ao mandato divino. Assim, segundo a tradição judaico-cristã, surgiu
o mal ou o pecado original e, desde então, o ser humano está quase fadado a
cometer o mal mesmo querendo fazer o bem, como diz São Paulo em sua carta aos
Romanos “Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero”[10].
É necessário,
ainda, romper com a tradição interpretativa que pode cometer o erro de colocar
em Deus a culpa de criar o ser humano imperfeito, permitindo a este ser a
capacidade de cometer o mal[11]. Também essa interpretação pode levar a
condição da mulher como um simples instrumento do pecado. Precisa ser levado em
consideração que este mito foi constituído para dar resposta aos questionamentos
– quanto a existência humana – do povo da época em que foi escrito e isso já
exerce muita influência sobre o redator. Assim é destacado na Bíblia Sagrada
Ave Maria, versão de estudos (São Paulo: Editora Ave Maria, 2019. Nota p. 24)
“Na Bíblia, esses mitos sofrem uma mudança de referencial, uma adaptação
necessária para transmitir a verdade que os sábios querem anunciar a seu povo”.
Observa-se que o pano de fundo da passagem da Criação, é o questionamento do
povo hebreu quanto a existência humana e, na tentativa de responder à luz da
fé, os sábios e patriarcas produziram esta bela composição textual. Para os
crentes, mesmo tendo sido escrita por mãos humanas, há aí a inspiração divina
elucidando a origem humana e sua essência[12].
A atenção central
nesse relato, não deve permanecer na serpente que “induz” a mulher ao erro e na
mulher que o comete, mas sim na “árvore da ciência do bem e do mal” (Gn 2, 9)
que seduz tanto Eva quanto Adão a comer de seu fruto, como afirma a Bíblia
Sagrada (São Paulo: Editora Ave Maria, 2019. Nota pp. 24-25) “A sedução
tampouco provém da mulher, e sim do fruto que ‘era bom para comer, de agradável
aspecto e muito apropriado para abrir a inteligência’ (v.6)”. Assim,
constata-se que há vários aspectos importantes, sem dúvida, mas a hermenêutica
que se realiza aqui, não quer mostrar a sedução da mulher que leva o homem ao
erro, tão pouco quer afirmar que o ser humano é um ser inocente ou que há algo
sexual envolto na narrativa, mas sim o quão profundo é no ser humano se
utilizar como medida para a escolha entre o bem e o mal. Tentativa falha, pois
sabe-se que para tomar qualquer decisão, o ente sofre influências externas e
internas, o que pode colaborar para conduzi-lo ao erro ou ao acerto.
Um tanto quanto
questionada é a interpretação errônea feita durante séculos sobre esta passagem
do Antigo Testamento, onde, de certa forma, retira do ser humano a
responsabilidade de suas escolhas, dando a ele um subterfúgio para a expiação
de sua culpa. Porém, atualmente, se sabe que o ser é responsável pelos seus
atos a não ser que ele tenha algum desequilíbrio psíquico que o torne incapaz
de tomar qualquer decisão. Portanto, o ser humano tem a oportunidade de tomar
consciência de sua finitude e reconhecer, com muita humildade[13], suas
limitações, não procurando culpabilizar outrem por seus atos. Dado o exposto, é
importante fazer correta interpretação dos escritos de acordo com o seu tempo
pois, textos quando interpretados fora de seu contexto, tornam-se apenas
pretextos justificativos.
Portanto, Adão e
Eva ao comer do fruto da árvore da qual Deus havia proibido, são
responsabilizados pelo ato cometido[14]. Isso demonstra que o grande erro não
foi ter comido o fruto, mas sim ter se colocado como medida única de todas as
coisas, elevando seu interesse próprio acima do bem maior, como uma norma
suprema, não obedecendo a lei eterna[15] da qual a moralidade é fundamentada.
Na práxis, isso acontece atualmente quando o ser humano se toma como medida
normativa para seus atos, não levando em consideração a vida do seu semelhante,
resultando na dizimação de povos e na prática de injustiças impiedosas.
Contudo, se
levanta o paradoxo da vontade[16], onde se percebe que mesmo desejando fazer o
bem, o ser, por vezes, falha na tentativa e acaba cometendo o mal não querido.
Santo Agostinho em seu livro De Libero Arbitrio[17] faz um tratado sobre a
origem do mal e, durante o diálogo com Evódio[18], procura elucidar esse
mistério humano. O diálogo tende fundamentar como o ser humano, em sua
liberdade, opta em cometer o mal e deixa de fazer o bem.
https://www.nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/origem-do-mal
Nenhum comentário:
Postar um comentário