sábado, 23 de setembro de 2023

SANTO AGOSTINHO E A ORIGEM DO MAL

 

 

SANTO AGOSTINHO E A ORIGEM DO MAL

O MAL NUMA PERSPECTIVA JUDAICO-CRISTÃ

Durante séculos o homem pergunta o que move o espírito humano a escolher uma boa ou má ação e quais os critérios para efetuar tal escolha. Esses questionamentos procuram, inicialmente, compreender a origem do homem e do que consiste em sua essência. Filósofos de importância para a filosofia ocidental, como Santo Agostinho, procuram dar essa resposta observando o que seus predecessores propuseram concatenando com suas reflexões, que eram novas, para tentar resolver o paradoxo. Fazendo um retorno na história, observa-se que a escolha entre o bem e o mal faz parte desde os primórdios da humanidade, ou pelo menos, o que se compreende como início, segundo determinada tradição religiosa, o judaísmo e posteriormente o cristianismo.

O povo hebreu, conhecido como Judeu ou Israelita, procura explicar o surgimento do mal desde a fundamentação de sua crença. Encontra-se, segundo esta ótica, a dimensão originária do mal no livro do Gênesis, que é o primeiro livro do Pentateuco[2]. Este livro têm a narrativa da criação do mundo e, por consequência, da criação do Homem e da Mulher:

[…] 9.O Senhor Deus fez brotar da terra toda a sorte de árvores de aspecto agradável, e de frutos bons para comer; e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal. 15.O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim do Éden, para cultivar o solo e o guardar. 16.Deu-lhe este preceito: “Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; 17.mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente […] 21.Então, o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar. 22.E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem. 23.“Eis agora aqui – disse o homem – o osso de meus ossos e a carne de minha carne; ela se chamará mulher, porque foi tomada do homem […] 25.O homem e a mulher estavam nus, e não se envergonhavam […] (Gn 2, 9, 15-17, 21-23, 25)[3].

Como é possível observar, para os judeus, Deus é o Criador de todas as coisas, inclusive do Homem e da Mulher, sendo esta retirada da costela do Homem. Ele também criou a árvore que contém a ciência do bem e do mal e dá ordens estritas para que não seja comido de seu fruto, pois resultaria na morte do ser humano[4].

A narrativa continua o relato da criação e dos preceitos dados à Adão e Eva por Deus. Tudo estava perfeitamente ordenado, havia harmonia entre criador e criatura. Até o surgimento de uma serpente que conduz – fornece informações a – Eva ao erro:

1.A serpente era o mais astuto de todos os animais do campo que o Senhor Deus tinha formado. Ela disse à mulher: “É verdade que Deus vos proibiu comer do fruto de toda árvore do jardim?”
2. A mulher respondeu-lhe: ‘‘Podemos comer do fruto das árvores do jardim. 3. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Vós não comereis dele, nem o tocareis, para que não morrais’. 4.“Oh, não! – tornou a serpente – vós não morrereis! 5.Mas Deus bem sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal.” 6.A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e muito apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente. 7.Então os seus olhos abriram-se; e, vendo que estavam nus, tomaram folhas de figueira, ligaram-nas e fizeram tangas para si. 8. E eis que ouviram o barulho (dos passos) do Senhor Deus que passeava no jardim, à hora da brisa da tarde. O homem e sua mulher esconderam-se da face do Senhor Deus, no meio das árvores do jardim […] (Gn 3, 1-8)[5].

Impressionante constatar a passagem da ordem em que se encontrava Adão e Eva à desordem, dado o motivo da serpente “induzir” a mulher a desobedecer a um preceito dado por Deus. Após Eva comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal e oferecer ao seu marido, o autor narra que os seus olhos abriram e perceberam que estavam nus. Acontece aqui a passagem direta da vida para a morte, pois começam a dar-se conta da sua condição humana de finitude e envergonhar-se. É mister salientar que para além da presença da serpente que “induz” Eva a comer do fruto proibido, a mulher faz as observações necessárias para tomar a decisão[6]. Isso o autor narra, claro e distintamente, ao dizer que ela “tomou dele, comeu e apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente” (Gn 3,6). É exatamente neste instante que se contempla a mulher e o homem fazendo uma escolha, e esta é pautada pela vontade que os conduz ao erro, ou como o autor relata, à morte[7].

A morte aqui deve ser compreendida não como morte física, mas sim como ausência do unicamente bem e presença do erro, expulsão do Éden e, principalmente, o rompimento da solidariedade original entre criatura e Criador, que foi a consequência do ato de Adão e Eva, assim afirma Lopez:

[…] Antes da tentação e da queda, o narrador havia observado que “o homem e a mulher estavam nus, mas não se envergonhavam” (2,25). Depois da queda observa-se que “tomaram folhas da figueira, entrelaçaram-nas e fizeram cinturas para si”, ao verem que estavam nus (3,7). Indica-se, deste modo, o primeiro desequilíbrio: a vergonha como consequência da queda. É o sentido profundo da culpa experimentada pelos seres humanos. No diálogo de Deus com o primeiro casal humano e nas maldições sucessivas, surgem outros desequilíbrios: o medo (3,10), a dor e a angústia (3,16), o cansaço (3,17-19). Rompe-se a solidariedade original entre o homem e a mulher; quebra-se igualmente a solidariedade original entre o homem e a terra. E o que é ainda pior: o pecado rompe a solidariedade original entre criatura e Criador […][8].

Constata-se, segundo o autor, breve elucidação cronológica, diga-se assim, dos fatos sucessivos a desobediência de Adão e Eva. Percebe-se que essa desobediência motivada pela vontade de Eva em escolher comer o fruto, revela a íntima relação do desejo de ser deus e possuir o conhecimento do bem e do mal[9], mesmo que isso resulte na sua morte, sendo esta, consequência da vontade de tomar a decisão de desobedecer ao mandato divino. Assim, segundo a tradição judaico-cristã, surgiu o mal ou o pecado original e, desde então, o ser humano está quase fadado a cometer o mal mesmo querendo fazer o bem, como diz São Paulo em sua carta aos Romanos “Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero”[10].

É necessário, ainda, romper com a tradição interpretativa que pode cometer o erro de colocar em Deus a culpa de criar o ser humano imperfeito, permitindo a este ser a capacidade de cometer o mal[11]. Também essa interpretação pode levar a condição da mulher como um simples instrumento do pecado. Precisa ser levado em consideração que este mito foi constituído para dar resposta aos questionamentos – quanto a existência humana – do povo da época em que foi escrito e isso já exerce muita influência sobre o redator. Assim é destacado na Bíblia Sagrada Ave Maria, versão de estudos (São Paulo: Editora Ave Maria, 2019. Nota p. 24) “Na Bíblia, esses mitos sofrem uma mudança de referencial, uma adaptação necessária para transmitir a verdade que os sábios querem anunciar a seu povo”. Observa-se que o pano de fundo da passagem da Criação, é o questionamento do povo hebreu quanto a existência humana e, na tentativa de responder à luz da fé, os sábios e patriarcas produziram esta bela composição textual. Para os crentes, mesmo tendo sido escrita por mãos humanas, há aí a inspiração divina elucidando a origem humana e sua essência[12].

A atenção central nesse relato, não deve permanecer na serpente que “induz” a mulher ao erro e na mulher que o comete, mas sim na “árvore da ciência do bem e do mal” (Gn 2, 9) que seduz tanto Eva quanto Adão a comer de seu fruto, como afirma a Bíblia Sagrada (São Paulo: Editora Ave Maria, 2019. Nota pp. 24-25) “A sedução tampouco provém da mulher, e sim do fruto que ‘era bom para comer, de agradável aspecto e muito apropriado para abrir a inteligência’ (v.6)”. Assim, constata-se que há vários aspectos importantes, sem dúvida, mas a hermenêutica que se realiza aqui, não quer mostrar a sedução da mulher que leva o homem ao erro, tão pouco quer afirmar que o ser humano é um ser inocente ou que há algo sexual envolto na narrativa, mas sim o quão profundo é no ser humano se utilizar como medida para a escolha entre o bem e o mal. Tentativa falha, pois sabe-se que para tomar qualquer decisão, o ente sofre influências externas e internas, o que pode colaborar para conduzi-lo ao erro ou ao acerto.

Um tanto quanto questionada é a interpretação errônea feita durante séculos sobre esta passagem do Antigo Testamento, onde, de certa forma, retira do ser humano a responsabilidade de suas escolhas, dando a ele um subterfúgio para a expiação de sua culpa. Porém, atualmente, se sabe que o ser é responsável pelos seus atos a não ser que ele tenha algum desequilíbrio psíquico que o torne incapaz de tomar qualquer decisão. Portanto, o ser humano tem a oportunidade de tomar consciência de sua finitude e reconhecer, com muita humildade[13], suas limitações, não procurando culpabilizar outrem por seus atos. Dado o exposto, é importante fazer correta interpretação dos escritos de acordo com o seu tempo pois, textos quando interpretados fora de seu contexto, tornam-se apenas pretextos justificativos.

Portanto, Adão e Eva ao comer do fruto da árvore da qual Deus havia proibido, são responsabilizados pelo ato cometido[14]. Isso demonstra que o grande erro não foi ter comido o fruto, mas sim ter se colocado como medida única de todas as coisas, elevando seu interesse próprio acima do bem maior, como uma norma suprema, não obedecendo a lei eterna[15] da qual a moralidade é fundamentada. Na práxis, isso acontece atualmente quando o ser humano se toma como medida normativa para seus atos, não levando em consideração a vida do seu semelhante, resultando na dizimação de povos e na prática de injustiças impiedosas.

Contudo, se levanta o paradoxo da vontade[16], onde se percebe que mesmo desejando fazer o bem, o ser, por vezes, falha na tentativa e acaba cometendo o mal não querido. Santo Agostinho em seu livro De Libero Arbitrio[17] faz um tratado sobre a origem do mal e, durante o diálogo com Evódio[18], procura elucidar esse mistério humano. O diálogo tende fundamentar como o ser humano, em sua liberdade, opta em cometer o mal e deixa de fazer o bem.

https://www.nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/origem-do-mal

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