REFLEXÃO
DOMINICAL II
É preciso perdoar de modo ilimitado
Por Pe.
Francisco Cornélio Freire Rodrigues
I.
Introdução geral
A
liturgia da Palavra deste domingo propõe o perdão como tema central,
apresentando clara continuidade com a do domingo passado, que tratou da
correção fraterna, atitude que exige a capacidade de perdoar reciprocamente.
Junto com o amor, o perdão constitui o núcleo central do ensinamento de Jesus,
por isso é elemento essencial para a vida da comunidade cristã e de cada pessoa
em particular. Esse tema é tratado, de modo mais explícito, na primeira leitura
e no Evangelho.
O texto
do Eclesiástico repudia o rancor e a vingança e ensina que o pedido de perdão a
Deus só é credível se estiver acompanhado pela disposição e pela prática
concreta do perdão ao próximo. Com isso, o autor praticamente antecipa o
Evangelho – não apenas o trecho lido neste dia, mas também outras passagens de
Mateus, como o discurso da montanha (Mt 5-7), especialmente o trecho
correspondente à oração do pai-nosso (Mt 6,9-13). A segunda leitura também se
alinha a esse tema, ao recordar que ninguém vive para si mesmo, mas para o
Senhor. Logo, são indispensáveis a tolerância, o respeito e a aceitação das
diferenças entre os membros da comunidade, para que a fraternidade seja vivida.
E isso só é possível com disposição para amar e perdoar sem limites, na certeza
de que todos pertencem ao Senhor.
II.
Comentários dos textos bíblicos
1.
I leitura: Eclo 27,33-28,9
O livro
do Eclesiástico, também chamado de Sirácida, do qual é tirada a primeira
leitura, foi escrito em hebraico por volta do ano 185 a.C., em Jerusalém, por
um sábio judeu chamado Jesus Ben Sirac, com o objetivo de preservar as
tradições culturais de Israel, ameaçadas na época pela dominação grega e pela
imposição da respectiva cultura. Quase 50 anos depois, foi traduzido para o
grego por um neto do autor, em Alexandria do Egito, para torná-lo acessível
também às novas gerações. Composto de 51 capítulos, pertence à categoria dos
livros sapienciais da Bíblia. Como é típico da literatura sapiencial, traz
reflexões de caráter prático sobre a vida e sobre a Lei, incluindo as relações
do ser humano consigo mesmo, com Deus e com o próximo.
O
trecho lido neste domingo constitui verdadeira evolução na maneira de conceber
o perdão no Antigo Testamento, mostrando a estreita relação existente entre o
perdão humano e o perdão de Deus. O autor começa fazendo um alerta: rancor,
raiva e desejo de vingança são pecados graves e, por isso, são sentimentos
incompatíveis com uma pessoa que crê (27,33-28,1). Em seguida, mostra ser
completamente incoerente pedir perdão a Deus sem que haja disposição para
perdoar as ofensas do próximo (28,2-4). É claro que o perdão de Deus não está
condicionado ao perdão humano, e o autor sabe disso. No entanto, é necessário
haver coerência entre o que se pede e o que se pratica. Na Lei, já havia uma
doutrina sobre o perdão ao próximo (Lv 19,17-18; Ex 23,4-5), e certamente o
autor se inspira nela, dando, porém, enorme salto qualitativo e aproximando-se
do ensinamento de Jesus: “perdoai-nos as nossas ofensas como perdoamos a quem
nos ofendeu” (Mt 6,12), o que está muito relacionado ao Evangelho do dia.
Além
das implicações na relação com Deus, o autor vê a condição humana com seus
limites, sobretudo no que diz respeito à morte, como uma das razões para não
cultivar rancor ou ódio contra o próximo (28,5-7). E esse dado também é muito
significativo. Ora, o fato de sermos todos iguais e destinados a um mesmo fim é
motivo para procurarmos viver em harmonia com Deus e com o próximo. É para isso
que apontam os Mandamentos, toda a Lei (28,8-9) e, sobretudo, o ensinamento de
Jesus, ao propor a prática ilimitada do perdão.
2.
II leitura: Rm 14,7-9
Desde a
retomada do Tempo Comum, após a conclusão do tempo pascal, a segunda leitura
vem sendo tirada da carta de Paulo aos Romanos. O texto lido neste dia, que
marca a conclusão dessa sequência, faz parte da seção exortativa da carta (Rm
12,1-15,13), que trata de questões relacionadas à vida cotidiana da comunidade
e ao comportamento dos cristãos. No capítulo 14, ao qual pertence a leitura
deste domingo, Paulo trata especificamente das relações dos cristãos entre si,
recomendando o respeito e a tolerância diante das diferenças de comportamento e
mentalidade.
Formada
por cristãos oriundos de tradições culturais diferentes, a comunidade de Roma
vivia tensões que ameaçavam sua unidade, em razão da falta de tolerância e
compreensão recíprocas. Diante disso, Paulo chama-lhes a atenção, mostrando que
ninguém vive para si mesmo (v. 7) e, por isso, não deve haver isolamento ou
fechamento egoísta na comunidade. Não obstante as diferenças individuais e
culturais, todos na comunidade devem convergir para o Senhor (v. 8), e é isso o
que importa. Quem tem essa convicção não se deixa levar por questões
secundárias; as diferentes maneiras de expressar e viver a fé na mesma
comunidade devem ser respeitadas e toleradas, pois o que une a todos é a
pertença comum ao Senhor. Quem vive para o Senhor não guarda rancor nem julga o
próximo; respeita as diferenças, perdoa e ama de maneira ilimitada, porque sabe
que Cristo morreu e ressuscitou por todos e, por isso, é o Senhor dos vivos e
dos mortos (v. 9).
3.
Evangelho: Mt 18,21-35
O Evangelho
do dia é a continuação e conclusão do “discurso comunitário” do Evangelho de
Mateus, cuja introdução e contextualização fizemos, embora brevemente, no
comentário do domingo passado. Naquela ocasião, lemos o trecho que trata da
correção fraterna e da oração. O trecho agora lido traz importante catequese
sobre o perdão, elemento central na mensagem de Jesus e, por conseguinte,
essencial para a vida da comunidade cristã; não à toa, é o tema conclusivo do
discurso que trata especificamente das relações entres os membros da
comunidade. O texto é composto de um pequeno diálogo entre Jesus e Pedro (vv.
21-22) e de uma parábola explicativa (vv. 23-35).
O
perdão não é um tema novo na Bíblia, como atesta a primeira leitura. A novidade
do Evangelho consiste na intensidade da proposta de Jesus. Com efeito, nos
círculos rabínicos da época, recomendava-se que o perdão deveria ser dado até
três vezes a uma mesma pessoa. A pergunta de Pedro (v. 21) já reflete uma
superação dessa mentalidade pelos discípulos de Jesus: o número sete evoca
perfeição e plenitude, além de ser mais do que o dobro daquilo que os rabinos
recomendavam. Talvez Pedro esperasse até um elogio de Jesus por isso. Mesmo
dando um passo a mais em relação ao que vigorava na época, a mentalidade de Pedro
continuava limitada quantitativamente. A resposta de Jesus ensina a romper com
todos os limites imagináveis: setenta vezes sete (v. 22). Embora contável
(70×7=490), esse número indica infinitude, pois as relações na comunidade
cristã não podem ser condicionadas a cálculos. Significa que não há limites
para o perdão. Com a resposta de Jesus, Mateus faz também uma denúncia contra
possíveis práticas de vingança, contrapondo o ensinamento de Jesus à postura de
Lamec, um dos descendentes de Caim, o qual jurou vingar-se até 77 vezes (Gn
4,24). Assim, o perdão é também o meio mais eficaz de combate à violência. Por
isso, sua prática ilimitada é indispensável na comunidade cristã.
Para
concluir, Jesus conta uma parábola explicativa, a do “servo malvado” (vv. 21-35),
com dois objetivos: o primeiro é mostrar a abundância do perdão ilimitado de
Deus; o segundo é mostrar quão incoerente é pedir o perdão do Pai quando não há
disposição de perdoar ao próximo também de modo ilimitado. A enorme fortuna
perdoada pelo patrão (vv. 24-27) ilustra a infinita misericórdia de Deus. A
maldade do servo, ao não perdoar uma dívida pequena a um companheiro (vv.
28-31), denuncia a hipocrisia humana. A parte conclusiva (vv. 32-35), longe de
comparar Deus a um patrão vingativo, quer apenas enfatizar que a falta de
perdão entre os membros da comunidade traz consequências irreparáveis. Essa
parábola explica e reforça não apenas o diálogo precedente entre Jesus e Pedro,
mas também outras passagens evangélicas, especialmente a do discurso da montanha (Mt
6,12.14-15). Deus perdoa sempre, e o seu perdão independe de méritos humanos,
mas é necessário haver esforço entre os seres humanos para refletir, o máximo
possível, o comportamento de Deus em seu agir.
III.
Pistas para reflexão
Trata-se
de celebração propícia para ampla catequese sobre perdão, tolerância e respeito
às diferenças. É oportuno preparar bem o ato penitencial, assim como a homilia.
Convém enfatizar a relação entre as leituras e mostrar a centralidade que o
perdão ocupa no ensinamento de Jesus. A prática do perdão, junto com o amor, é
a principal característica da pertença de uma comunidade ao Senhor; recordar
que só vive para ele quem é capaz de perdoar, como ensina Paulo na segunda
leitura. Estimular a prática do perdão em todas as instâncias, começando pelas
famílias, e incentivar a continuar a celebrar o mês da Bíblia.
Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues
é presbítero da Diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em
Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum
(Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – Insaf
(Recife) e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum
(Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio
Grande do Norte (Mossoró-RN).
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/24o-domingo-do-tempo-comum-13-de-setembro/
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