"CÉUS, INFERNOS E PURGATÓRIOS:
REPENSANDO NOSSO FIM"
(Parte I)
Lindolivo Soares Moura(*)
"Então Deus
contemplou tudo que fizera; e
eis que tudo
era muito bom"(Gn.1,34)
Se todo discurso é uma tentativa de
falar sobre, e atribuir sentido à realidade, toda teologia, como se depreende
da própria etimologia, pode ser considerada um "ensaio" na incontida
ânsia do ser humano em interagir e se comunicar com Deus. "Gaiola feita de
palavras", advertia Rubem Alves, da qual segundo ele esse mesmo Deus
precisa ser libertado. A advertência kantiana - Immanuel Kant, filósofo
prussiano - de que sobre o "noumenoun" não se fala, e muito menos se
conhece - só o "fe-noumenoun" ou as características fenomênicas são
conhecíveis - nunca foi suficiente para demover o ser humano dessa persistência
em manter contato e dialogar com o divino. "O coração tem razões que a
própria razão desconhece", nos lembra Pascal, e se os objetos e seres
metafísicos são de fato inacessíveis aos
olhos da razão, como quer kant, não o são com certeza para os anseios e as inquietudes
do coração. Pelo sim e pelo não, "se Deus não existisse, seria preciso
inventá-lo", como afirmava Voltaire. O próprio Pascal afirmava que Ele -
Deus - é uma espécie de "aposta", enquanto para Unamuno, filósofo
árabe, "acreditar em Deus não é senão desejar que ele exista".
A rigor só existe uma única linguagem
através da qual podemos "falar sobre", e nos "comunicar"
com Deus: o discurso ou linguajar antropomórfico. "Antropo" = homem,
humano, "morfo" = forma, formato
ou aparência; ou seja, só podemos falar de Deus e nos comunicar com Ele à maneira
como fazemos uns para com os outros, entre nós seres humanos. Qualquer outro
caminho ou tentativa de fazê-lo resultará em mero exercício da imaginação e
puro devaneio da paixão. "Nenhuma fé é racional - afirma lou marinoff -
toda fé é apaixonada", tanto para o bem como para o mal, acrescentaríamos
nós.
Nada contra, naturalmente, o recurso à
imaginação. Um dos grandes estudiosos e teólogos do cristianismo, Leonardo
Boff, chega a afirmar que é a fantástica capacidade de simbolização, antes
mesmo que o admirável exercício da razão, o grande diferencial do ser humano
quando comparado aos demais seres vivos, também estes sencientes e responsivos,
como nos lembra Peter Singer, filósofo australiano radicado nos Estados unidos
e professor de Ética Prática.
Simbolizar, no sentido primeiro e
primário de "transcender" - os fatos, os acontecimentos, enfim a vida
e o viver - é sem dúvida um exercício tanto da razão como possivelmente mais
ainda da imaginação. Insere-se na ordem dos arquétipos e do arquetípico tão caros
a Jung, provavelmente o psicanalista mais místico que se conhece. O problema
relacionado à imaginação, entretanto, é que enquanto a razão ao exercitar-se
impõe uma espécie de "controle" sobre si mesma, a paixão e com ela a
imaginação ao fazê-lo nem sempre se deixam orientar pela razão. Ocorre que a
curto prazo a paixão, assim como a fantasia e a imaginação, vencem a razão, e o
que não é nada bom, quase sempre para o mal. Somente a médio e longo prazo é
que a razão tende a superar a paixão e os eventuais "fantasmas" da
fantasia e da imaginação, e o que é melhor, quase sempre para o bem. Pelo menos
é isso o que ensina o já citado Orientador Filosófico norte-americano Lou
Marinoff.
Nossa hipótese, aqui relacionada aos
mais variados discursos sobre Deus - e por extensão aos mais diversos eventos
apocalípticos e escatológicos a Ele relacionados - é a de que muitos desses
discursos, senão a maioria deles, "pecam" por excesso de imaginação e
escassez de racionalidade. No presente caso, optamos por abordar apenas uma
dessas "criações": o inferno. Conceitos e concepções do tipo estão
dentre aqueles que Depak Chopra - "a estrela da nova
espiritualidade", segundo o periódico britânico "The Guardian" -
chama de "assassinos da mente". A expressão pode parecer forte, para
alguns até inaceitável, mas talvez seja a mais adequada para expressar o tipo
de dano e de sequelas que conceitos e "pre-conceitos" como
"culpa", "pecado", "condenação",
"inferno", "perfeição" e outros do gênero costumam deixar
na mente, no consciente, e sobretudo no inconsciente pessoal e coletivo das
pessoas. Confessionários e consultórios de psicologia estão aí para atestar o
fato.
Não sem razão outro grande mestre da
espiritualidade contemporânea, o líder zem budista tibetano Dalai Lama, ensina
que o inferno está na mente, no psiquismo de cada pessoa, assim como de resto o
próprio céu. Como se céu e inferno ocupassem o mesmo espaço, apenas em momentos
e situações diferentes.Tudo depende, em última instância, do tipo de
"nutrientes" - ideias, crenças, conceitos, pensamentos, "verdades" e convicções - com que a
mente é alimentada. Fantasia e imaginação têm papel importante na elaboração
dessa espécie de cardápio ou "culinária mental", mas é preciso
reconhecer que elas podem por vezes produzir receitas e ingredientes altamente
tóxicos, capazes de comprometer seriamente nossa saúde psíquica. O conceito de
inferno é apenas um desses ingredientes a fazer parte da receita. Sempre me
chamou a atenção o fato de que o Budismo de Gautama, o Buda, ainda que não negue,
tampouco afirme e menos ainda pressuponha a existência de céus, infernos e
purgatórios. Sua "teologia" é notoriamente mais moderada e razoável
que as de outras denominações.
Difícil mesmo é saber se a versão
cristã do inferno, assim como a de seu vizinho mais próximo, o purgatório,
tenha ocorrido por falta ou excesso de imaginação. Na dúvida, parece mais
lógico admitir que apenas uma mente com elevado grau na capacidade de fantasiar seria capaz de tal feito. E se como
querem alguns, apenas uma mente diabólica poderia estar por trás de uma criação
do tipo, parece forçoso admitir que além de maquiavélico o demônio seria também
altamente criativo. Criativo e inteligente, diga-se de passagem, porque teria
sabido explorar como ninguém as fraquezas e debilidades dos humanos. Primeiro,
ao se camuflar tão bem de serpente que conseguiu impedir seu reconhecimento por
parte de nossos primeiros pais; segundo, fazendo uso de uma lábia tão
convincente e persuasiva a ponto de convencer um e outro, homem e mulher, a cair
nessa lábia sem perceber que na verdade estavam caindo na mais mortífera das
tentações; e por fim, ao convencer o próprio Criador de que sua criação teria
sido um verdadeiro e terrível fracasso, e que para com os definitivamente
fracassados não havia mesmo solução.
Assim, ficava de comum acordo decidido
e estabelecido que os melhorzinhos, punidos levemente e expulsos do éden que seriam,
retornariam num futuro próximo àquela espécie de paraíso, enquanto os
severamente castigados e inapelavelmente condenados seriam transferidos para um
lugar que ele mesmo, o diabo, já havia premeditadamente concebido e criado: o
inferno. Sim, o local da mais absoluta e eterna danação. De tudo isso resulta
claro que aquilo que passara a ser chamado de "inferno" não estava
inicialmente nos planos do Criador. Não diz a Escritura considerada sagrada que
ao contemplar sua obra vira Deus que "era tudo muito bom"? Como
poderia portanto o inferno estar no meio, dela fazendo parte, como que por um
descuido do Criador? Ainda que Deus pudesse ter aprovado e até gostado da
ideia, como alternativa de solução, é pouco provável que com ela tenha se
envolvido, e menos ainda participado de sua execução.
Esta não pretende ser de nenhuma forma
uma versão alternativa para o relato da criação, menos ainda para as eventuais
versões que se aventuram em descrever a origem do inferno, tal como a de Dante
Alighieri na Divina Comédia, por exemplo (difícil acreditar que num tempo em
que perseguição, fogueira e inquisição, estivessem tão em alta, alguém se
arriscasse e ousasse chamar de "comédia" uma tal criação). Tampouco é
nossa intenção brincar e menos ainda zombar de ensinamentos e crenças que
povoam o imaginário de pessoas de fé e reta intenção. Mas assim como o
parabólico, o metafórico e o alegórico, também o lúdico acompanhado da boa-fé
pode ser com certeza uma forma adequada de ilustração e instrução.
Descrito como um dentre os mil maiores
realizadores do século XX, e uma das dez personalidades que mais contribuíram
para mudar a história da Índia, o sábio oriental de cognome OSHO afirma:
"um homem sábio, um grande mestre, está sempre sorrindo e rindo, não é um
homem sério, como se pensa". Mas é também dele a seguinte admoestação:
"ninguém pode evitar ser mal interpretado; não há o que fazer a respeito
disso. Uma vez que se tenha dito algo, o que a outra pessoa vai fazer com isso
depende apenas dela". Não obstante tal risco, o desejo e a disposição em
compartilhar continuarão sendo sempre, ao nosso ver, uma dentre as grandes
virtudes que enobrecem o coração. Culpa e medo sempre espreitaram e
agitaram a mente e o imaginário do ser
humano. Céus, infernos e purgatórios, são apenas uma dentre as tantas ofertas
de aquietamento e solução. A mais absurda e trágica tu delas, é bem verdade,
sobretudo aquela relacionada à absoluta e eterna danação, e exatamente por isso
inaceitável e dificilmente sustentável aos olhos do bom senso e da lucidez da
razão.
Observação:
esta primeira parte conclui-se e termina com a segunda, de mesmo título,
a ser oportunamente publicada.
L.S.M.
(*)Possui graduação em teologia
pelo Instituto teológico pio XI (1983), graduação em Psicologia pela
Universidade Federal do Espírito Santo (1997), graduação em Filosofia pela
Faculdade Salesiana de Filosofia, ciências e letras (1986) e mestrado em
Filosofia pela Pontificia Universidade Gregoriana ,Roma - Itália(1988) . Foi
por 11 anos consecutivos professor de filosofia jurídica e psicologia Jurídica
do Centro Universitário de Vila Velha, ES.Durante esses 11 anos foi Coordenador
Pedagógico por 05 anos e de Ensino por 1 ano e meio do mesmo Curso de Direito.
Atualmente é terapeuta de grupo, individual, vocacional, Consultório Clínico
Psicológico particular. Formou-se recentemente em Psicodrama (02 anos) pelo
Instituto Pegasus de Vitória, ES. Atualmente, cursa a pós graduação TCC -
Terapia Cognitivo Comportamental.
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