A vida
cristã no horizonte da Escatologia e da Esperança
Por
João Rezende Costa
1. “QUANDO VIRÁ O REINADO DE
DEUS?”, EIS A QUESTÃO
“Quando virá o
reinado de Deus?”, foi a pergunta dos fariseus a Jesus (Lc 17,20). Assim
continuam os cristãos a se interrogar, dando as mais diversas respostas,
geralmente não por palavras, mas por vidas vividas.
Já
no seio do Novo Testamento ficamos sabendo que o problema é velho como o
cristianismo e mesmo na Igreja das origens não ficou sem a resposta da
irresponsabilidade, que acha que tudo depois de Jesus continuou na mesma,
justificando-se uma vida que continua na mesma dantes: “Em que ficou a promessa
da sua vinda? De fato, desde que os pais (= os cristãos da primeira geração,
como explica a nota da Bíblia de Jerusalém) morreram, tudo continua como desde
o princípio da criação!” (2Pd 3,4). É o tema dos escarnecedores que levam vida
desenfreada (ibid.). Essa epístola já se coloca diante da identificação da
expectativa da vinda do reinado de Deus com a vinda parusíaca de Jesus, bem
como diante do problema que inquietou a reflexão teológica da Igreja das
origens, isto é, o problema
do retardamento da parúsia, que consequentemente retardava a vinda gloriosa do
reinado de Deus. A epístola contém ensaios de respostas, que vemos mais
amadurecidas em outros escritos do Novo Testamento, sobretudo em Lucas.
A
vertente apocalíptica do tempo de Jesus, representada nos mais diversos grupos
ideológicos, ocupava-se ardorosamente com essa questão acerca do “quando”. Além
do colorido nacionalista-terreno do objeto de muitas de suas esperanças, o
judaísmo fazia-se uma ideia muito própria acerca da realização dos últimos
tempos (o tempo escatológico da consumação definitiva das bênçãos e bens
ligados à vinda do reinado de Deus): eles se realizariam em uma troca completa
e total do velho “eão” pelo novo “eão” como que em uma ordem sucessiva.
O novo eliminaria e substituiria o antigo, como o pode ilustrar o gráfico:
velho
novo
eão
eão
Dessa
representação estiveram cheias também as cabeças dos cristãos das origens, até
que a experiência (amarga) do retardamento da parúsia os reconduzisse a um
redimensionamento sóbrio dos dados da tradição sobre Jesus. O Novo Testamento
chegou pouco a pouco a uma outra postura com respeito à sucessão dos “eões”
apocalípticos, que poderíamos designar como um esquema de irradiação do velho pelo novo “eão”,
no qual o novo “eão” envolveu como fermento de esperança a presente realidade,
dando-lhe novo conteúdo e novo coração, por dentro das figurações do antigo.
Poderíamos representar essa postura graficamente assim:
velho
irradiado pelo novo
eão
eão
Temos aí que o futuro
novo de Deus já se faz presente em escondido no “esquema” deste mundo que passa
(cf. lCor 7,31), plantado como semente de porvir dentro da casa e casca do
“eão” antigo, palco em que o homem é pego por novas energias e salvo em
esperança, em aberto para a aurora da manifestação plena daquilo que ele já é e
possui em escondido. De tal modo que o homem salvo, mas situado ainda no
palco-esquema-figuração do velho “eão”, vive em um entretempo incômodo nem
sempre fácil de se dominar no equilíbrio sem cindir-se em dicotomia de vidas e
duplicidade de personalidades, entre o sóbrio crer no doce mel da salvação e o
amargo fel de experiências humanas contrárias. Assim, as perguntas: “Quando
virá o reinado de Deus?” e “Tudo afinal ficou na mesma?” continuam a se
levantar como espinho na carne. Olhos humanos de ver não atinam com uma
resposta. Tão somente os olhares da fé. A vida do cristão neste mundo nunca
desconhecerá a tensão, arco retesado que não conhece férias.
1.
“O REINADO DE DEUS ESTÁ NO MEIO DE VÓS!”
Lucas
responde com um dito de Jesus, que deve retratar um fulcro acentuado de sua
doutrina, lado a lado com a apocaliptização de muitos outros ditos dele: “A
vinda do reinado de Deus não é observável. Não se poderá dizer: ‘Ei-lo aqui!
Ei-lo ali!’, pois o reinado de Deus está no meio de vós!” (Lc 17,20s).
Inicialmente Jesus rejeita previsões cronológicas e especulações sobre o tempo:
não vai ser um espetáculo a irrupção do reinado de Deus. Nem se poderá indicar
um lugar para o acontecer do reinado de Deus: não é algo de dimensão terrena detectável
à maneira de um reino deste mundo com fronteiras bem determinadas. O lado
positivo da resposta de Jesus apresenta o reinado de Deus como uma realidade do presente:
Está no meio de vós! Está à vossa disposição! Está presente e ativo à
disposição dos ouvintes de Jesus como oferta salvífica de Deus, exigindo deles
a decisão pela fé na boa-notícia (Evangelho) e pela “metanoia” (cf. Mc 1,15).
Na ação de Jesus, o reinado de Deus faz irromper a sua energia, apelando e exigindo
dos homens. Jesus não se perde em descrições apocalípticas detalhadas à maneira
dos contemporâneos, mas desvia a questão para outro nível: interessa-lhe
unicamente que os homens reconheçam os sinais dos tempos (cf. Lc 12,54-56),
pondo-se, na humildade da fé e da “metanoia”, sob o influxo do reinado de Deus
que está vindo, já agora, no presente, a fim de que, ao irromper o lado
glorioso do reinado de Deus, eles possam participar dele. Jesus não divaga em
especulações apocalípticas. Firma os pés no chão sóbrio onde tudo se decide.
Seu apelo à escatologia é profético, e não apocalíptico.
A outra questão
apocalíptica curiosa, Jesus dá uma resposta na mesma linha: “Senhor, é pequeno
o número dos que se salvam?”. Ele respondeu: “Esforçai-vos por entrar pela
porta estreita, pois eu vos digo que muitos procurarão entrar e não
conseguirão” (Lc 13, 23). Não lhe interessa satisfazer a curiosidade, ele como
que desconversa. O seu interesse é outro: Apela ao homem a que retese suas
energias para que possa participar do reinado de Deus. Não pretende ensinar
sobre o número dos eleitos ou justos, mas educar para uma atitude que capacita
para a entrada no reinado de Deus.
Lucas nos informa que
houve traços na pregação de Jesus que apontavam para o esquema de irradiação,
que se firmou depois da Páscoa.
2.
MUNDO, UM LUGAR DO VAZIO DE DEUS?
Pode-se
viver o mundo das realidades terrenas como um deserto da irradiação do reinado
de Deus. O Vaticano II na Gaudium
et Spes, n. 43 denuncia erros referentes a este ponto:
“O Concílio exorta os
cristãos, cidadãos de uma e outra cidade, a procurarem desempenhar fielmente as
suas tarefas terrestres, guiados pelo espírito do Evangelho. Afastam-se da
verdade os que, sabendo que não temos aqui cidade permanente, mas que buscamos
a futura, julgam, por isso, que podem negligenciar os seus deveres terrestres,
sem perceber que estão ainda mais obrigados a cumpri-los por causa da própria
fé, de acordo com a vocação à qual cada um foi chamado. Não erram menos os
que, por outro lado, pensam que podem entregar-se de tal modo às atividades
terrestres como se elas fossem absolutamente alheias à vida religiosa, por
julgarem que esta consiste somente nos atos do culto e no cumprimento de alguns
deveres morais. Este divórcio entre a fé professada e a vida cotidiana deve
ser tido como dos mais graves erros do nosso tempo.”
Denunciam-se aí duas
posições errôneas solidárias: Ambas consistem em banir Deus e a irradiação do
seu reinado. A primeira bane Deus para o além-morte: é a posição do
espiritualismo, exagerado. A segunda confina Deus para o âmbito dos espaços e
tempos sacrais, setorializa a sua presença e o seu interesse pelo mundo. As
duas posições envolvem não crer na irradiação dos “eões” e na escatologização
do presente, e largam o mundo sem Deus e sem esperança. Essas decisões
reproduzem uma espécie da visão apocalíptica judaica referente à sucessão dos
“eões”, onde o velho e o novo ficam inteiramente separados, deixando o mundo
órfão das energias fecundantes do futuro de Deus.
4. A ESPERANÇA ANCORADA NA FÉ
ENÉRGICA NO AMOR
A esperança cristã
funda-se em fatos feitos acontecer na História da Salvação por Deus. Por isso,
além de prospectiva (de olhar voltado para o que ainda virá do reinado de
Deus), é também retrospectiva.
Já descobrimos, pelo
olhar da fé, em quem pusemos nossa confiança: “Sei em quem eu creio” (2Tm
1,12), em quem apoio minha vida minha esperança: É no Deus que cria e conserva
o mundo, o Deus que está aqui e agora na base e raiz da possibilidade de tudo o
que existe, dizendo um sim ao mundo e ao homem, dizendo ao homem que o ama com
o amor mais profundo: o amor que ama antes de existir e para existir; no Deus
que faz e planeja o mundo para o homem e ao homem o entrega como o seu
representante e vice-gerente (cf. Gn 1,26s e Sl 8) no palco do mundo; no Deus
que faz uma aliança com o homem, constituindo-o como o seu parceiro e
responsável por sua presença no mundo: ele não se faz presente no mundo ao
nível das causas segundas como fator intramundano (ele é transcendente!); para
se fazer presente neste nível ele conta com a fé e o amor dos homens, responsáveis
por sua presença, pelo seu modo de ser e agir e pelo seu plano no mundo (“Tu te
tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”). Não é um Deus que
criou no começo como um relojoeiro e que o homem só vai reencontrar no
além-morte para lá das fronteiras deste mundo, após um deserto de
ausência-silêncio-morte de Deus pelos anos da vida afora. É um Deus hoje
presente e exigente de amor responsável pelo seu mundo.
A
esperança cristã se funda na fé na presença de Deus encarnada no mundo
sobretudo em Jesus Cristo, no já agora da reconciliação nele dada, que é o pressuposto
para a permanência esperançosa no ainda-não da redenção prometida. Há uma
escatologia irradiada e irradiando-se no mundo, fermento da nova criação que
torna o mundo cheio de esperança. O olhar estendido da esperança cristã
funda-se em âncoras firmes no chão da vinda já presente do reinado de Deus e
estimula a ação eficaz de amor para que este mundo seja irradiado cada vez mais
pelas suas energias.
A escatologia em
processo de acontecer já agora no mundo, que é afirmada pela fé, é base para a
abertura da vida cristã para uma “teologia política” no empenho de eliminar a
fé e religião de sacristia, do setor sacral, de certas horas, de
espiritualidade intimista privatizante, que vive a dimensão escatológica como
um além que ainda não veio e não apela e não pega as rédeas da História nas
mãos, que não pode mexer no social-político-econômico, lá onde vivem os homens
reais de pé no chão no enredo do pecado do mundo e do velho “eão” e se debatem,
combatem, sofrem e morrem nas garras dos donos do mundo sem Deus. É base para
uma esperança que não tenha medo da “cidade que mata os profetas”.
O cristão pode tentar
viver em um mundo como o triste lugar da ausência de Deus, quando não funda sua
esperança no chão firme da fé nos atos salvíficos já operados por Deus e em
processo de realização no âmago do mundo, atos que mudam por dentro a feição do
mundo, ainda que permaneça ao olhar só humano o “esquema” do velho “eão”. A
esperança cristã é fundada em uma fé que torna o homem parceiro de Deus na
realização de seus desígnios no mundo, está ancorada na fé enérgica no amor (Gl
5,6).
5. MUNDO, LUGAR DA GESTAÇÃO DE
DEUS
A fé cristã, porém,
não afirma que já temos o reinado de Deus em plenitude, mas que ele ainda se
manifestará como tal. Em determinado sentido, Deus ainda é futuro para o homem.
Por isso este não pode encapsular-se no seu mundo e no seu porte presentes:
Toda realização intracósmica está em aberto e deve ficar marcada pela reserva
e expectativa escatológicas. O homem, cristão vive estendido para fora de si
para o futuro de Deus, o futuro que Deus ainda vai operar. Nessa linha de força
é que se situa a corrente de esperança que perpassa a vida cristã. O Deus da
revelação bíblica é o Deus de promessas ainda não realizadas, um Deus em
aberto.
A
teologia bíblica sobre Deus não versa sobre Deus em si, mas sobre o voltar-se
de Deus para nós e para a nossa salvação. Ela não é sistemática nem
especulativa, mas reflete sobre as “Mirabilia
Dei”, os atos realizados por Deus em nosso favor: aí vai lendo quem
é Deus, ou melhor, como Deus quer ser Deus para nós. Essas manifestações de
Deus em atos eficazes de apoio já se deram no passado, dão-se no presente e
ainda se reservam para o futuro. Por isso a gestação de Deus para nós ainda
está em processo e tem facetas de futuro prometido. Ainda não sabemos de todo
quem é Deus, pois ele é conhecido no ato da experiência de seus feitos em nosso
favor, e estes ainda não estão completos. A última aula sobre Deus ainda não
nos foi dada nem nos pode ser dada nos limites deste mundo.
A escatologia é
teologia (= palavra sobre Deus) em sentido eminente, porque reflete sobre o
acontecimento no qual Deus se torna inteiramente Deus. Na mensagem de Jesus,
Deus e sua “basileia” (reinado, senhorio) ventura estão intimamente ligados.
“Basileia” faz parte do ser Deus de Deus. Por isso sua divindade só se revelará
plenamente com a vinda consumada da sua “basileia”. Revelação da sua divindade
e deste seu ser-Deus não podem se separar. O Deus da Bíblia só é Deus à medida
que se mostra como Deus, isto é, como Senhor. Se precisamente isto é, porém,
na expectativa de Israel e do Novo Testamento, coisa do futuro, isso significa
que Deus ainda não é plenamente, mas será. Todavia ele é real como o futuro
domina e determina o presente. A futuridade da “basileia” de Deus implica,
portanto, que em sentido bem determinado o ser do próprio Deus ainda é futuro.
Escatologia como interpretação do anúncio da futura “basileia” soberania de
Deus é, pois, no sentido mais profundo, teologia, falar sobre Deus em sua
divindade.
Deus é o futuro do
homem. O homem de fé espera ainda ações poderosas de Deus sobre si e seu
destino. Nessas ações ele conhecerá (no sentido bíblico de experimentar,
conviver, compenetrar-se) Deus. Nas suas ações, Deus se dá ao homem no nível em
que ele possa participar. Só podemos experimentar Deus na ação de ele exercer
sua “basileia” sobre nós.
No fim do “Símbolo
dos Apóstolos” temos a afirmação do aspecto de presente e de futuro da
escatologia. Há uma escatologia realizando-se na Igreja pela fecundação do
Espírito Santo, onde tudo acontece nos véus da sacramentalidade, em abertura e
progresso para um futuro de promessas de Deus relativas à escatologia consumada
individual e cósmica: Ressurreição da carne, vida eterna e “novo céu e nova
terra”. O “éschaton” já está realizado individualmente em Jesus Ressuscitado, e
dele partem as energias da “nova criação” pela força do Espírito Santo sobre a
Igreja-nós-no-mundo, para que cresçamos na direção do próprio Cristo, que é o
futuro de Deus plenamente realizado e humanizado. Mas ele é as primícias. É o
Irmão primogênito desta nova ordem da criação, à cuja imagem e idade madura
vamos crescendo.
“Eu
creio na ressurreição da carne e na vida eterna” significa: O Deus em quem eu
creio e apoio a minha vida é o Deus que ainda vai agir em meu favor, que ainda
vai ser Deus para mim. Lá onde nenhum amor humano (nem de pai, nem de mãe, nem
de filho, nem de filha, nem de irmão, nem de irmã, nem de esposo, nem de
esposa) pode valer, onde tudo a olhos humanos parece um abismo sem fundo, onde
todo o nosso ser está ameaçado, ou seja, na morte, lá eu espero encontrar a mão
espalmada de Deus, precisamente aí na crista do abismo, amparando e sustentando
todo o meu ser integral, porque o meu Deus é um Deus de vivos e não de mortos e
é firmemente fiel à sua Aliança (cf. Mt 22,32). Aí nesse evento descobrirei a
definição acabada de Deus: “Amar é querer e fazer com que o outro seja eterno”
(Gabriel Marcel), “Deus é Amor”
(1Jo 4,8).
Em vertente
cristológica, Paulo se refere à consumação do reinado de Deus, onde Deus vai
ser tudo em todos no exercício pleno de seu senhorio.
“Cristo ressuscitou
dos mortos, primícias dos que adormeceram… Cada um, porém, na sua ordem: como
primícias, Cristo; depois, aqueles que pertencem a Cristo, por ocasião da sua
vinda. A seguir, haverá o fim, quando ele entregar o reino a Deus Pai, depois
de ter destruído todo Principado, toda Autoridade, todo Poder. Pois, é preciso
que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos debaixo de seus pés.
O último inimigo a ser destruído será a Morte, pois ele tudo colocou debaixo
dos pés dele. Mas, quando ele disser: ‘Tudo está submetido’, evidentemente
excluir-se-á aquele que tudo lhe submeteu. E, quando todas as coisas lhe
tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo lhe
submeteu, para que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15,20-26).
O
mundo é o lugar da gestação do Deus para nós, “pro hominibus”, até este momento do Deus “que é tudo
em todos”, quando o mundo extrapolar de seus limites para a eternidade. Aí toda
a perspectiva individualista some. O Deus-Amor compenetrará toda a realidade
criada, também, de modo misterioso e incompreensível, o cosmos material (cf. Rm
8,20 e a nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém para este versículo).
6. A VIDA CRISTÃ NO HORIZONTE DA
ESCATOLOGIA E DA ESPERANÇA
A
vida cristã passa-se em um entretempo (entre a primeira e a segunda vinda de
Cristo) incômodo e agônico. Vive na crise da gestação. Campo semeado com a
semente do futuro, mas ainda hostil e mau, onde a fé, e a “metanoia” põem o
nosso ser na situação do grão de trigo que morre para que não fique sozinho,
esperando a florada do futuro de Deus. A cruz ainda está plantada nas estradas
da vida, ainda que já irradiada pelas energias da ressurreição de Jesus. Há uma
diferença entre o cristão e Cristo. O futuro de Deus já é pleno para
Cristo e em Cristo, ao passo que nossa salvação é objeto de esperança (cf. Rm
8,24), “uma luz que brilha em lugar escuro, até que raie o dia e surja a
estrela-d’alva em nossos corações” (2Pd 1,19).
São
conhecidas as posições da exegese bíblica sobre “escatologia só futurista ou
coerente” e “escatologia realizada” (cf. Avery Dulles. A Igreja e seus Modelos.
São Paulo: Paulinas, 1978, pp. 118ss). Este autor diz: “Praticamente todos os
cristãos afirmam alguma espécie de escatologia parcialmente realizada” (ibidem, p. 123). É só
parcialmente realizada. Porque reduzir a fé à dimensão do presente, sem manter
a diferença do estado do cristão e o de Cristo Ressuscitado, ganha tons de
tendência à Gnose. A realização plena do “éschaton” já aqui no mundo, pela qual
o homem possuído pelo Espírito (o “pneumático”) chegaria, através da ilustração
(gnose) ou do êxtase, à identificação plena com o Redentor, era doutrina da
Gnose. A teologia de Paulo e dos Sinóticos não apadrinham esta postura,
enquanto frisam a diferença temporal entre Cristo e os cristãos. Eles contam
com um “antes” e um “depois” da parte do Senhor com relação ao crente.
Precisamente essa diferença temporal frisa o ser-Senhor de Cristo e preserva a
fé (marcada por essa dupla referência a Cristo: retrospectiva e prospectiva na
esperança) de cair em uma espécie de atemporalidade mística e em uma
entusiástica falta de conteúdo. Por um equilíbrio entre o aspecto “histórico” e
o “apocalíptico” do querigma, os cristãos devem escapar a um céu ilusório do
desejo de identidade e serem lançados à provisoriedade terreno-escatológica.
Ser cristão significa ser “ek mérous”/“em parte” (cf. 1Cor 13,9) e não
consumação pneumática; significa mobilidade da existência em fé, esperança e
amor, e não ter-chegado-à-meta. Uma teologia gnosticizante de consumação nos limites
do mundo corre o risco de cair em uma piedosa indiferença para com a criatura
bem como de colorir o mundo não redimido, e dá asas a todos os que querem
impedir todo e qualquer futuro. E, em perspectiva eclesiológica, elimina até a
possibilidade de uma “Igreja sempre precisada de purificação”. Eliminaria a
medida da crítica e da reserva, provenientes do enfoque escatológico, sobre as
realidades cristãs terrenas. O cristão não se sujeitaria à crítica do futuro do
senhorio de Deus. Nem o cristão nem a Igreja podem eliminar o entretempo
incômodo e agônico.
Portanto, viver no
horizonte da escatologia e da esperança, é viver na humildade dos inícios,
deixando-se criticar e reformar-se pela perspectiva da meta que é o próprio
Deus que vem e que virá na sua “basileia”.
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