De
volta ao tema da evangelização
O ressentimento que nasce do
cancelamento cultural sofrido pelos cristãos e a proliferação de ideologias que
parecem ameaçar a fé e/ou a própria dignidade da pessoa humana tornam essa
reflexão ainda mais importante
Existem
muitos temas recorrentes na doutrina católica, aos quais devemos voltar
periodicamente. A evangelização é um desses temas. O Concílio Vaticano II
produziu um documento especificamente dedicado a esse tema, a Evangelii Nuntiandi (EN),
onde a evangelização é definida como “a missão própria da Igreja, uma vez que a
Igreja existe para evangelizar” (EN 14). O ressentimento que nasce do
cancelamento cultural sofrido pelos cristãos e a proliferação de ideologias que
parecem ameaçar a fé e/ou a própria dignidade da pessoa humana tornam essa
reflexão ainda mais importante.
Talvez
nosso problema, quanto à evangelização, é pensá-la como uma tarefa específica
de alguns “missionários” e não como uma dimensão de nosso cotidiano – uma vez
que passa não só pelo anúncio formal, mas também pelo testemunho que damos com
nossas vidas. Compreender o testemunho não quer dizer acrescentar uma obrigação
a mais a nossa vida, mas sim darmo-nos conta do fascínio que nos encanta (ou,
ao menos, deveria nos encantar).
O
encontro com Cristo que atrai
Na
homilia da missa de abertura da Conferência do CELAM em Aparecida (2007), Bento
XVI declarou: “A Igreja não faz proselitismo. Ela
cresce muito mais por ‘atração’: como Cristo ‘atrai todos a si’ com a força do
seu amor, que culminou no sacrifício da Cruz”. A mesma ideia foi depois
repetida várias vezes pelo Papa Francisco: “A Igreja cresce não por
proselitismo mas por atração […] a fé transmite-se por atração, ou seja, por
testemunho” (Meditação, 3/mai/2018, cf. também Evangelii gaudium, EG
14).
Em
outra passagem famosa, que também é frequentemente citada por Francisco, Bento
XVI diz que “ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande
ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um
novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (Deus caritas est, DCE 1). A evangelização é o anuncio
ao mundo do encontro com essa Pessoa, mas frequentemente nos envolvemos mais
com as decisões éticas e as grandes ideias – que não estão “fora” do evento
cristão, mas não são seu fundamento, nem podem ser absolutizadas, sob o risco
de se impor aos demais uma visão particular do mundo e não o próprio Deus feito
homem.
Presos
às nossas ideias e armadilhas morais (pois é isto que são nossas éticas
humanas, quando apenas revestidas de uma roupagem religiosa) podemos até atrair
aos demais, mas apontamos apenas para nós mesmos, não para Cristo. E esse é um
tempo de atrações fáceis… Vivemos na “sociedade do espetáculo”, cheia de ídolos
e influenciadores que nos atraem até mesmo por sua superficialidade: apresentam
um modelo de realização que parece acontecer sem esforço, um novo mundo
paradisíaco, com o qual podemos sonhar ou no qual podemos simplesmente
esquecermo-nos de nós mesmos. Até na Igreja, os mestres da fé, que orientam num
caminho ascético e existencial, muitas vezes estão sendo substituídos por
influenciadores que vendem ideias bonitas – até justas – mas não propõem um
verdadeiro processo de conversão a Deus.
Mas
voltemos aos aspectos positivos do anúncio cristãos…
A
vida que é realmente saborosa de se viver
O
que, nesse encontro, atrai tanto o ser humano? Fomos feitos para Deus e nosso
coração só repousa em Deus, segundo a célebre passagem das Confissões de Santo
Agostinho (Livro I, Capítulo 1). Mas essa afirmação pode parecer ainda um pouco
distante. Talvez possamos entende-la melhor lendo o poema O convertido,
escrito por G.K. Chesterton quando, já adulto, foi batizado. Em seus últimos
versos diz: “E todas essas coisas são para mim menos que pó / Porque meu nome é
Lázaro e estou vivo”.
Todas
as coisas parecem, para Chesterton, “menos que pó”. Imaginaríamos uma
comparação na qual ele diria ter encontrado agora o verdadeiro tesouro. Mas ele
é, simultaneamente, mais singelo e mais radical: tudo é como pó porque ele é
como Lázaro, o que estava morto, e agora está vivo. Mais do que nunca, somos
parte de um mundo onde os seres humanos anseiam por viver. As redes de
informação, as imagens que vem de todos os cantos, o conhecimento de uma
infinidade de experiências individuais, nos apontam possibilidades
aparentemente infinitas, enquanto a dura realidade mostra vidas amesquinhadas,
reprimidas pelas expectativas e cobranças de outros, limitadas pela falta de
recursos, humilhadas pela truculência e a injustiça dos poderosos. Nunca antes
se viram tamanhas possibilidades e, ao mesmo tempo, se teve tanta consciência
das próprias impossibilidades.
Voltemos
a Chesterton: a vida que parecia murchar na mesmice de sempre ou chafurdar na
desesperança, agora adquire o esplendor e o brilho que lhe faz afirmar “estou
vivo”. Esse é o grande anúncio dos cristãos, desde as escuras catacumbas
romanas até a virtualidade dos podcasts e das redes sociais. Não apenas estão
biologicamente vivos, estão vivos porque descobriram algo que dá um verdadeiro
sentido e gosto a suas vidas. Existe uma correspondência entre os anseios de
nosso coração e o encontro com Cristo – e essa correspondência se manifesta
como o encontro de uma vida que vale a pena ser vivida.
Por
isso, o que muitas vezes imaginamos como testemunho cristão não corresponde ao
testemunho que realmente devemos dar, aquele que corresponde ao anseio dos
corações. Queremos testemunhar nossa coerência moral, mas o que o mundo espera
que testemunhemos é que estamos vivos, que nossa vida tem aquele gosto, aquela
realização, que todos os avanços tanto materiais quanto espirituais da
sociedade moderna não conseguem garantir. A grande pergunta que somos chamados
a responder todos os dias é “você é verdadeiramente feliz? sua vida realmente
tem sentido?”. Importante entender que essa “felicidade” não quer dizer que
tudo esteja dando certo, não se trata de um “jogo do contente”, mas sim uma
felicidade que nasce da percepção de que o amor e o carinho de Deus recobre
toda a nossa vida, mesmo nos momentos de dor, que nossa humanidade está se
realizando apesar de todas as limitações.
Em
conclusão
Por
isso, não é exatamente que “queiramos ser evangelizadores”, como se esse fosse
um projeto nosso – ainda que, devido à complexidade tanto da sociedade quanto
da instituição eclesial, tenhamos que fazer projetos de evangelização. O
problema é que, se somos verdadeiros conosco mesmo, não conseguimos não ser
evangelizadores, pois o encontro com Cristo não sai do coração e da memória – é
o critério de discernimento que tende a orientar todos os momentos.
https://pt.aleteia.org/2023/07/02/de-volta-ao-tema-da-evangelizacao/
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