SANTO AGOSTINHO
O
SERMÃO SOBRE A RESSURREIÇÃO DE CRISTO
A ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo lê-se estes dias,
como é costume, segundo cada um dos livros do santo Evangelho. Na leitura do
Evangelho segundo São Marcos ouvimos Jesus Cristo censurando os discípulos,
primeiros membros seus, companheiros seus, porque não criam estar vivo aquele
mesmo por cuja morte choravam.
Pais da fé, mas ainda não fiéis; mestres – e a terra inteira
haveria de crer no que pregariam, pelo que, aliás, morreriam – mas ainda não criam.
Não acreditavam ter ressuscitado aquele que haviam visto ressuscitando os
mortos. Com razão, censurados: ficavam patenteados a si mesmos, para saberem o
que seriam por si mesmos os que muito seriam graças a ele.
E foi deste modo que Pedro se mostrou quem era: quando iminente
a Paixão do Senhor, muito presumiu; chegada a Paixão, titubeou. Mas caiu em si,
condoeu-se, chorou, convertendo-se a seu Criador.
Eis quem eram os que ainda não criam, apesar de já verem.
Grande, pois, foi a honra a nós concedida por aquele que permitiu crêssemos no
que não vemos! Nós cremos pelas palavras deles, ao passo que eles não criam em
seus próprios olhos.
A ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo é a vida nova dos
que crêem em Jesus, e este é o mistério da sua Paixão e Ressurreição, que muito
devíeis conhecer e celebrar. Porque não sem motivo desceu a Vida até a morte. Não foi sem motivo que a fonte
da vida, de onde se bebe para viver, bebeu desse cálice que não lhe convinha.
Por que a Cristo não convinha a morte.
De onde veio a morte?
Vamos investigar a origem da morte. O pai da morte é o pecado.
Se nunca houvesse pecado ninguém morreria. O primeiro homem recebeu a lei de
Deus, isto é, um preceito de Deus, com a condição de que se o observasse
viveria e se o violasse morreria. Não crendo que morreria, fez o que o faria
morrer; e verificou a verdade do que dissera quem lhe dera a lei. Desde então,
a morte. Desde então, ainda, a segunda morte, após a primeira, isto é, após a
morte temporal a eterna morte. Sujeito a essa condição de morte, a essas leis
do inferno, nasce todo homem; mas por causa desse mesmo homem, Deus se fez
homem, para que não perecesse o homem. Não veio, pois, ligado às leis da morte,
e por isso diz o Salmo: “Livre
entre os mortos” (Sl 87).
Concebeu-o, sem concupiscência, uma Virgem; como Virgem deu-lhe
à luz, Virgem permaneceu. Ele viveu sem culpa, não morreu por motivo de culpa,
comungava conosco no castigo mas não na culpa. O castigo da culpa é a morte.
Nosso Senhor Jesus Cristo veio morrer, mas não veio pecar; comungando conosco
no castigo sem a culpa, aboliu tanto a culpa como o castigo. Que castigo
aboliu? O que nos cabia após esta vida. Foi assim crucificado para mostrar na
cruz o fim do nosso homem velho; e ressuscitou, para mostrar em sua vida, como
é a nossa vida nova. Ensina-o o Apóstolo: “Foi
entregue por causa dos nossos pecados, ressurgiu por causa da nossa
justificação” (Rm 4,25).
Como sinal disto, fora dada outrora a circuncisão aos
patriarcas: no oitavo dia todo indivíduo do sexo masculino devia ser
circuncidado. A circuncisão fazia-se com cutelos de pedra: porque Cristo era a
pedra. Nessa circuncisão significava-se a espoliação da vida carnal a ser
realizada no oitavo dia pela Ressurreição de Cristo. Pois o sétimo dia da
semana é o sábado; no sábado o Senhor jazia no sepulcro, sétimo dia da semana.
Ressuscitou no oitavo. A sua Ressurreição nos renova. Eis por que,
ressuscitando no oitavo dia, nos circuncidou.
É nessa esperança que vivemos. Ouçamos o Apóstolo dizer. “Se ressuscitasses com Cristo…” (Cl
3,1) Como
ressuscitamos, se ainda morremos? Que quer dizer o Apóstolo: “Se ressuscitasses
com Cristo?” Acaso ressuscitariam os que não tivessem antes morrido? Mas falava aos
vivos, aos que ainda não morreram … os quais, contudo, ressuscitaram: que quer
dizer?
Vede o que ele afirma: “Se
ressuscitasses com Cristo, procurai as coisas que são do alto, onde Cristo está
assentado à direita de Deus, saboreai o que é do alto, não o que está sobre a
terra. Porque estais mortos!”. É o próprio Apóstolo quem está
falando, não eu. Ora, ele diz a verdade, e, portanto, digo-a também eu… E por
que também a digo? “Acreditei
e por causa disto falei” (Sl 115). Se vivemos bem, é que
morremos e ressuscitamos. Quem, porém, ainda não morreu, também não
ressuscitou, vive mal ainda; e se vive mal, não vive: morra para que não morra.
Que quer dizer: morra para que não morra? Converta-se, para não ser condenado.
“Se ressuscitasses com Cristo”, repito as palavras
do Apóstolo, “procurai
o que é do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus, saboreai o que é
do alto, não o que é da terra. Pois morrestes e a vossa vida está escondida com
Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a vossa vida, aparecer, então também
aparecereis com ele na glória”. São palavras do Apóstolo. A quem
ainda não morreu, digo-lhe que morra; a quem ainda vive mal, digo-lhe que se
converta. Se vivia mal, mas já não vive assim, morreu; se vive bem,
ressuscitou.
Mas, que é viver bem? Saborear o que está no alto, não o que
está sobre a terra. Até quando és terra e à terra tornarás? Até quando lambes a
terra? Lambes
a terra, amando-a, e te tornas inimigo daquele de quem diz o Salmo: “os inimigos dele lamberão a terra”
(Sl 79,9).
Que éreis vós? Filhos de homens. Que sois vós? Filhos de Deus.
Ó filhos dos homens, até quando tereis o coração pesado? Por que amais a vaidade
e buscais a mentira? Que mentira buscais? O mundo. Quereis ser felizes, sei
disto. Dai-me um homem que seja ladrão, criminoso, fornicador, malfeitor,
sacrílego, manchado por todos os vícios, soterrado por todas as torpezas e
maldades, mas não queira ser feliz. Sei
que todos vós quereis viver felizes, mas o que faz o homem viver feliz, isso
não quereis procurar. Tu, aqui, buscas o ouro, pensando
que com o ouro serás feliz; mas o ouro não te faz feliz.
Por que buscas a ilusão? E com tudo o que aqui procuras, quando
procuras mundanamente, quando o fazes amando a terra, quando o fazes lambendo a
terra, sempre visas isto: ser feliz. Ora, coisa alguma da terra te faz feliz.
Por que não cessas de buscar a mentira? Como, pois, haverás de ser feliz? “Ó filhos dos homens, até quando
sereis pesados de coração, vós que onerais com as coisas da terra o vosso
coração?” (Sl 4,3). Até quando foram os homens pesados de
coração? Foram-no antes da vinda de Cristo, antes que ressuscitasse o Cristo.
Até quando tereis o coração pesado? E por que amais a vaidade e procurais a
mentira? Querendo tornar-vos felizes, procurais as coisas que vos tornam
míseros! Engana-vos o que descaiais, é ilusão o que buscais.
Queres ser feliz? Mostro-te, se te agrada, como o serás. Continuemos ali adiante
(no versículo do Salmo): “Até
quando sereis pesados de coração? Por que amais a vaidade e buscais a mentira?”
“Sabei” – o quê? – “que
o Senhor engrandeceu o seu Santo” (Sl 4,3).
O Cristo veio até nossas misérias, sentiu a fome, a sede, a
fadiga, dormiu, realizou coisas admiráveis, padeceu duras coisas, foi
flagelado, coroado de espinhos, coberto de escarros, esbofeteado, pregado no
lenho, traspassado pela lança, posto no sepulcro; mas no terceiro dia
ressurgiu, acabando-se o sofrimento, morrendo a morte. Eia, tende lá os vossos
olhos na ressurreição de Cristo; porque tanto quis o Pai engrandecer o seu
Santo, que o ressuscitou dos mortos e lhe deu a honra de se assentar no Céu à
sua direita. Mostrou-te o que deves saborear se queres ser feliz, pois aqui não
o poderás ser. Nesta vida não podes ser feliz, ninguém o pode.
Boa coisa a que desejas, mas não nesta terra se encontra o que
desejas. Que desejas? A vida bem-aventurada. Mas aqui não reside ela. Se
procurasses ouro num lugar onde não houvesse, alguém, sabendo da sua não
existência, haveria de te dizer: “Por
que estás a cavar? Que pedes à terra? Fazes uma fossa na qual hás de apenas
descer, na qual nada encontrarás!”. Que responderias a tal conselheiro? “Procuro ouro”. Ele
te diria: “Não nego que
exista o que desejas, mas não existe onde o procuras”. Assim
também, quando dizes: “Quero
ser feliz”. Boa coisa queres, mas aqui não se encontra. Se
aqui a tivesse tido o Cristo, igualmente a teria eu. Vê o que ele encontrou
nesta região da tua morte: vindo de outros paramos, que achou aqui senão o que
existe em abundância? Sofrimentos, dores, morte. Comeu contigo do que havia na
cela de tua miséria. Aqui bebeu vinagre, aqui teve fel. Eis o que encontrou em
tua morada. Contudo, convidou-te à sua grande mesa, à mesa do Céu, à mesa dos
anjos, onde ele é o pão. Descendo até cá, e tantos males recebendo de tua cela,
não só não rejeitou a tua mesa, mas prometeu-te a sua.
E que nos diz ele?
“Crede, crede que chegareis aos bens da minha mesa, pois não
recusei os males da vossa”.
Tirou-te o mal e não te dará o seu bem? Sim, da-lo-á.
Prometeu-nos sua vida, mas é ainda mais incrível o que fez: ofereceu-nos a sua
morte. Como se dissesse: “À
minha mesa vos convido. Nela ninguém morre, nela está a vida verdadeiramente
feliz, nela o alimento não se corrompe, mas refaz e não se acaba. Eia para
onde vos convido, para a morada dos anjos, para a amizade do Pai e do Espírito
Santo, para a ceia eterna, para a fraternidade comigo; enfim, a mim mesmo, à
minha vida eu vos conclamo! Não quereis crer que vos darei a minha vida?
Retende, como penhor a minha morte”.
Agora, pois, enquanto vivemos nesta carne corruptível, morramos
com Cristo pela conversão dos costumes, vivamos com Cristo pelo amor da
justiça.
Não haveremos de receber a vida bem-aventurada senão quando
chegarmos àquele que veio até nós, e quando começarmos a viver com aquele que
por nós morreu.
https://comunidadeoasis.org.br/sermao-de-santo-agostinho-sobre-a-ressurreicao-de-cristo/
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