REFLEXÃO III
29 de março –
Paixão do Senhor
Por
Maicon André Malacarne*
A cruz de Jesus é a hora da
glória!
I.
INTRODUÇÃO
GERAL
“A
condição humana é a paixão de Cristo”, escreveu Clarice Lispector na sua
obra A paixão segundo G. H. Toda
paixão vem acompanhada de sofrimento! Na cruz de Jesus Cristo se encontra a dor
daquele que “amou até o fim” (Jo 13,1), com a dor de toda a humanidade. Cruz e
crucificado, cruzes e crucificados são a gramática desta liturgia, mergulhada
no silêncio, na ausência, no trauma das vítimas.
Quando tudo parece
ter fim, a profecia de Isaías e a carta aos Hebreus, com fios de sofrimento,
ajudam a tecer um feixe de luz: “Ei-lo, o meu servo será bem-sucedido; sua
ascensão será ao mais alto grau” (Is 52,13); “Cristo, nos dias de sua vida
terrestre, dirigiu preces e súplicas, com forte clamor e lágrimas, àquele que
era capaz de salvá-lo da morte. E foi atendido, por causa da sua entrega a
Deus” (Hb 5,7). Se a paixão de Cristo nos fere profundamente, a cruz revela uma
novidade infinitamente maior, pois consiste na “hora da glória”.
II.
COMENTÁRIO
DOS TEXTOS BÍBLICOS
1.
I leitura (Is 52,13-53,12)
Isaías desenha o
quadro do misterioso Servo de Javé, também chamado de Servo sofredor. Trata-se
do quarto poema. A dificuldade de descobrir a identidade desse personagem abre
a possibilidade de lê-lo à luz do sofrimento do povo.
A leitura é aberta
com um oráculo pronunciado por Javé a respeito do Servo: “tão desfigurado ele
estava, que não parecia ser um homem” (53,14). Segue-se uma espécie de
lamentação das pessoas ao seu respeito: “Foi maltratado e submeteu-se, não
abriu a boca; como cordeiro levado ao matadouro ou como ovelha diante dos que a
tosquiam, ele não abriu a boca” (53,7). Por fim, Javé anuncia a glorificação:
“sendo contado como um malfeitor; ele, na verdade, resgatava o pecado de todos
e intercedia em favor dos pecadores” (53,12).
Chama a atenção o
fato de que o Servo se mantém sempre em silêncio, não obstante sua condição
ultrajada. O quadro não aponta a culpa do sofredor, ou seja, não se trata de
retribuição pelos seus pecados. De fato, a teologia da retribuição – que opera
segundo a ideia de que cada um recebe o que merece – entra em crise, porque
nada pode condenar esse Servo. Ele sofre porque sofre, e sofre pelos pecados
que outros cometeram: “ele não praticou o mal nem se encontrou falsidade em
suas palavras” (13,9). O Servo de Javé é uma fotografia da realidade de
sofrimento de tantas pessoas que não encontram em Deus nenhuma neutralidade.
2.
II leitura (Hb 4,14-16; 5,7-9)
A carta aos Hebreus é
uma grande homilia sobre o sacerdócio de Cristo. Com base nessa chave, é feita
uma releitura do sistema de sacrifício da Antiga Aliança à luz do sacrifício de
Jesus Cristo, “capaz de se compadecer das nossas fraquezas” (4,15). Por assumir
toda a condição humana, até a morte de cruz, ele se revela o sumo sacerdote
capaz de se identificar com a vida das pessoas, especialmente das vítimas.
Os sumos sacerdotes
da Antiga Aliança utilizavam o sangue dos sacrifícios como oferta a Deus no
templo. O novo e eterno sacerdote, Jesus Cristo, ofereceu-se a si mesmo! Já não
o sangue das vítimas, mas seu próprio sangue é o sinal da nossa redenção: “na
consumação de sua vida, tornou-se causa de salvação eterna para todos os que
lhe obedecem” (5,9).
“Orações, súplicas,
clamores e lágrimas” (5,7) são uma gramática profunda que apresenta a
humanidade de Jesus Cristo. É possível sempre atualizar essa mesma condição de
sofrimento e de fé em muitas pessoas que, não obstante suas cruzes, se inserem
no seguimento do Senhor, se comprometem a fazer o bem, na esperança e na
coragem de viver dias melhores.
3.
Evangelho (Jo 18,1-19,42)
A criação de Deus
guarda a imagem do jardim, segundo o relato do Gênesis: “Javé Deus plantou um
jardim em Éden, no oriente, e aí colocou o homem que havia modelado” (2,8). A
história, no entanto, não andou muito bem e, desde o início, o mundo criado
viveu as inúmeras contradições e infidelidades ao Criador.
O Evangelho de João
tece um “novo jardim” ou uma “nova criação” na paixão, morte e ressurreição de
Jesus. O grande relato que toma os dois capítulos do Evangelho deste dia começa
e conclui com a imagem do jardim. Há, portanto, uma grande teologia da criação
no mistério de cada palavra. Deus está recriando a humanidade no seu Filho
amado!
Depois da traição de
Judas, seguida da prisão, da apresentação e do interrogatório diante de Anás,
Caifás e Pilatos, Jesus guardou longo silêncio, respondendo a poucas perguntas:
“Eu falei às claras ao mundo”, foi uma das suas falas, acompanhada de uma
bofetada do guarda (18,20-22). A verdade anunciada por Jesus durante toda a sua
vida não era uma teoria, uma doutrina, e sim uma relação com Deus tão profunda,
que o levava a chamá-lo de Pai. O Deus próximo, misericordioso, amoroso era
potente demais para os poderosos e os tribunais, que instrumentalizavam sua
prática e veiculavam outra imagem de Deus, punitivo e justiceiro.
Sobre a verdade, de
fato, há longo diálogo entre Pilatos e Jesus, guardado apenas na tradição
joanina, o qual foi concluído com a sentença de condenação: “Eis o homem”
(19,5), apontando para Jesus, que carregava uma coroa de espinhos e um manto
vermelho. Neste “eis o homem” pode-se ler “eis a humanidade” – ultrajada,
maltratada, negociada como a liberdade de Barrabás, solitária. “Crucifica-o,
crucifica-o” (19,6) eram as vozes que se levantavam. Jesus, carregando pesada
cruz, caminhou em direção ao calvário. A “hora de Jesus”, anunciada pelo
Evangelho de João desde o início, encontrou o ápice na cruz: “Tudo está
consumado” (19,30). A “hora de Jesus” é a hora da glória, a hora em que Deus,
pelo Espírito, “faz novas todas as coisas” (Ap 21,5). Aonde parecia tudo
escurecer e desaparecer, veio um sopro que reorganiza e recria o mundo.
Há uma prece de
Charles de Foucauld, “Oração do abandono”, que nos ajuda a rezar e meditar a
cena do calvário, a entrega de Jesus, e viver nossos sofrimentos: “Meu Pai, em
vós me abandono. Fazei de mim o que quiserdes! O que de mim fizerdes, eu vos
agradeço. Estou pronto para tudo, aceito tudo, contanto que vossa vontade se
faça em mim e em todas as vossas criaturas. Não quero outra coisa, meu Deus.
Entrego a minha vida em vossas mãos”.
III.
PISTAS
PARA REFLEXÃO
A paixão de Jesus
sempre apresenta à humanidade o sofrimento das vítimas. É verdade que não se
pode resolver todas as injustiças do mundo, mas a celebração da Paixão é
convite a assumir o compromisso com alguns gestos de humildade e reconciliação.
O primeiro, talvez, seja reconhecer que nosso estilo de vida pode fazer pesar
ainda mais as cruzes de muitas pessoas e abrir ainda mais suas feridas.
Reconhecer as estruturas de morte e denunciá-las é outro compromisso que nasce
da cruz de Jesus.
A imagem de algumas
mulheres e do discípulo amado, aos pés da cruz, antecipa o verbo da
ressurreição: “estavam de pé” (Jo 19,25). Manter-se de pé é atitude grandiosa,
de disposição em seguir em frente, de encontrar os feixes de luz para iluminar
o caminho. Não foram poucas as vezes em que Jesus “ergueu as pessoas”. Na “hora
da glória”, ele é erguido pelo Pai do domínio da morte. Para permanecerem de
pé, o segredo das mulheres e do discípulo amado foi permanecerem perto da cruz,
perto de Jesus. A tentação das fugas, das máscaras, das desculpas, das
reclamações, da indiferença exige o discernimento de não fugir da realidade da
vida, de enfrentar as contradições com os olhos fixos em Jesus Cristo, que,
naturalmente, conduz cada olhar para o lugar das vítimas do mundo e para a
redenção de todas as coisas.
Maicon André Malacarne*
*é presbítero da diocese de Erexim-RS.
Possui mestrado em Teologia Moral pela Pontifícia Academia Alfonsiana (Roma),
onde atualmente é doutorando na mesma área. É especialista em Juventude no
Mundo Contemporâneo pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – Belo
Horizonte-MG), formado em Filosofia pelo Instituto de Filosofia Berthier (Ifibe
– Passo Fundo-RS) e em Teologia pela Itepa Faculdades (Passo Fundo-RS). É aluno
de doutorado em Teologia Moral da Pontifícia Academia Alfonsiana (Roma).
E-mail: maiconmalacarne@gmail.com
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/29-de-marco-paixao-do-senhor/
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