Como a indústria do futebol tenta educar pela base
para evitar casos crescentes de violência sexual
Psicólogas, assistente social e
empresária que lidam com desafios de conscientizar para mudanças de cultura
machista do país trazem relatos: "Trabalho de formiguinha", conta
profissional do Atlético-MG
Por
Raphael Zarko — Rio de Janeiro
O caso
não é raro no futebol. Outro ídolo da Seleção, Robinho tem condenação na Itália
por nove anos de prisão pelo mesmo crime ao qual Daniel tenta provar sua
inocência na Espanha. No Chile, o Colo Colo anunciou o afastamento do atacante
Jordhy Thompson, de apenas 18 anos, depois de vídeo do jovem com agressões a
uma mulher numa boate circularem pelas redes sociais.
A lista
entre acusações e condenações é crescente mais de uma década após o então
goleiro do Flamengo Bruno ser condenado por participação no sequestro e
assassinato de Eliza Samudio. A violência contra as mulheres é um tema
recorrente que provoca repercussão nas ruas, na imprensa e respinga, claro,
dentro dos clubes.
Robinho
foi condenado a nove anos de prisão na Itália por caso de 2013 de estupro
coletivo. No presente momento, a presidente do Superior Tribunal de Justiça
(STJ) determinou que o atacante de 34 anos Robinho seja convocado para
acompanhar o processo de homologação da sentença italiana
O ge ouviu
quatro profissionais do dia a dia do futebol. A psicóloga do Atlético-MG Camila
Barros, outra psicóloga, Melissa Voltarelli, que trabalhou no Corinthians, São
Caetano, Portuguesa e ainda atende diversos atletas de modalidades olímpicas e
do futebol. O coordenador sócio-educacional do Palmeiras, Fernando Truyts, e a
empresária de jogadores Stephanie Figer.
Como os
jovens atletas reagem ao tema? Eles têm noção da gravidade dos atos? Existe
tabu sobre o assunto? Qual informação os atletas têm sobre os limites para não
virar mais um caso do gênero relacionado a jovens atletas?
- A gente
dá o estímulo para tocar nesses assuntos, mas a gente tem que reforçar. É
aquele trabalho de formiguinha, de todo dia para ir batendo naquela tecla,
sabe? É assim que funciona - analisa Camila Barros, do Atlético-MG.
O
Palmeiras realizou em outubro do ano passado palestra sobre sexualidade na
adolescência no projeto "Além das 4 linhas", que leva discussões como
racismo, diversidade religiosa, bullying, violência doméstica e outros casos
para conscientização e discussão.
No atual
campeão brasileiro, a chegada de um jovem significa realizar uma entrevista
profunda para conhecer o adolescente. É realizado o chamado cadastro social,
com perguntas relacionadas a habitação, saúde, educação para traçar perfil,
indicar as possíveis vulnerabilidades sociais da família para possíveis
intervenções.
Com
celulares à mão em 90% do tempo fora de campo, as informações chegam muito
rapidamente aos jovens. Muitos deles com contratos significativos e, em algumas
categorias, em início de descobertas da noite e da sexualidade.
- O
adolescente que os clubes recebem não é fragmentado. Ele é o adolescente da
sociedade brasileira. Vem com diversas expressões sociais, questões de família
e educacionais - lembra Fernando Truyts, que é assistência social e hoje é coordenador
sócio-educacional do Palmeiras depois de passagens por Santos e Flamengo..
- A gente
sempre se preocupa em trazer informação, ciência para esse adolescente, para
que ele possa tomar as melhores decisões fora de campo. O futebol traz um pouco
essa questão da idolatria quando ele faz o gol, se torna
famoso. Traz falsa sensação, essa falsa ilusão de que ele pode tudo, de que
"eu sou fera". Mas não. Na verdade, ele é um cidadão como todo outro.
Ele tem os seus direitos e tem os seus deveres como qualquer outro cidadão.
No início
de fevereiro, Wagner Ribeiro, que foi empresário de Neymar e ainda trabalha com
Robinho, disse ao podcast "Benja Me Mucho" que não acreditava na
participação do jogador no estupro coletivo na Itália "porque ele não
precisa disso". Quis dizer que o jogador de futebol pode ter a mulher que
quiser. Um discurso muito repetido no futebol.
- Ouço
muito: “ah, jogador não tem limite, acha que pode tudo porque tem dinheiro, tem
fama, toda mulher vai querer estar com ele”. Não, não é, desculpa. Existe um
monte de mulher que não quer ficar com jogador de futebol - relata a psicóloga
Melissa Voltarelli, que hoje atende em clínica particular.
Neta de
um dos principais empresários de jogadores no futebol brasileiro por décadas,
Stephanie Figer - o uruguaio Juan Figer faleceu em 2021 - contrariou o avô para
começar a trabalhar no futebol. Mulher e jovem, ela sofreria com mundo
machista, apostava o velho Figer. Hoje, ela trabalha com diversos jogadores e
usa as redes sociais para fazer alertas e dar conselhos a jovens aspirantes ao
estrelato.
- Eu acho
que o ambiente é muito vaidoso, né? O jogador de fato percebe que ele está
sendo muito valorizado, prestigiado, o ego fica lá em cima. Não tem
como. E isso pode causar uma confusão muito grande na mente dele de não
saber respeitar determinados limites até por conta de que algumas vezes ele
pode paquerar e isso ser recíproco e legal, e outras ele, sei lá, ele pode
estar embriagado, não estar em sã consciência e avançar o sinal de uma pessoa.
Porque mesmo assim ele acha que "é o cara" e não foi muito bem
compreendido naquele momento pela outra parte - comenta Stephanie.
"Viu o que aconteceu com Daniel? Caramba..."
O relato
acima é de um breve contato de Fernando com um pai de atleta. Camila Barros, psicóloga
da base do Galo, conta que a forma de lidar com as notícias varia muito de
acordo com a faixa etária e, evidentemente, com o tipo de personalidade de cada
um dos meninos e adolescentes.
Daniel
Alves, aos 39 anos, foi preso preventivamente no dia 20 de janeiro, após se
apresentar na polícia de Barcelona. Ele é acusado de estupro por uma mulher
numa boate na capital da Catalunha. Ainda não há data para o julgamento
Os pais
de atletas, principalmente em categorias de 13, 14 e 15 anos, quando ainda têm maior
acesso a profissionais de suporte de atletas de base, mostram preocupação para
que os casos não se repitam dentro de casa.
- A gente
tem atletas que falam mais abertamente sobre alguns aspectos, inclusive a
sexualidade, outros menos. Alguns levam da maneira que acham que é como se
fosse exagero da mídia (as notícias), outros entendem que não é legal. “Nossa,
mas vacilou demais", como dizem - descreve a psicóloga do Galo.
A
Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo registrou 240 boletins de
ocorrência de mulheres contra homens entre 2018 e 2020. Registros relacionados
a atletas ou ex-atletas, a maioria de jogadores de futebol, informou o jornal
"Folha de S.Paulo" em reportagem de março de 2021
- As
pessoas vão olhar para as situações de acordo com o filtro delas. Mas nós,
enquanto profissionais e educadores, responsáveis pela formação desses atletas,
a gente sempre tem que trabalhar esses assuntos. (Erasmo) Damiani é um gestor
que tem esse olhar humanizado. Um dos poucos fora da curva nesse universo -
reconhece Camila, citando o atual coordenador de base do Atlético-MG, que foi
campeão olímpico com a Seleção masculina em 2016.
O avanço
na psicologia esportiva e na rede de suporte social aos atletas é muito recente
no Brasil - existe grupo de profissionais do campo de assistentes sociais com
cerca de 60 membros. Ainda há resistência no esporte mais popular do
país. Recentemente, por recomendação do Comissão de Médicos da CBF, o
presidente Ednaldo Rodrigues decidiu instituir protocolo para disponibilizar
profissionais de psicologia a todas as categorias da seleção brasileira - da
base até o profissional.
Psicóloga
com experiência no futsal, judô, tênis e diversas outras modalidades
esportivas, Melissa ainda atende cerca de 10 jogadores de futebol. Ela
identifica carência emocional nos atletas e lembra que muitos acabam se casando
com a primeira namorada porque são as pessoas que os conhecem antes deles se
tornarem famosos. No contato com os pais, percebe a preocupação deles ajudarem
no caminho mais saudável para os filhos no esporte.
Jobson,
ex-jogador do Botafogo, foi ouvido pela Justiça em outubro do ano passado
durante a audiência de instrução e julgamento do processo que ele responde por
estupro de vulnerável e divulgação de pornografia envolvendo adolescentes
- Eu
sempre faço uma pergunta pra eles (atletas): como é que você quer ser lembrado
no futuro? Como é que você quer que as pessoas lembrem de você e da sua
história?
Ela
relaciona a formação de jovens num país com série de mazelas sociais e
educacionais aos casos recorrentes no futebol. E a repetição de padrões de comportamento
num ambiente masculinizado e que, muitas vezes em casa, tem exemplos de
violência do pai contra a mãe.
- Essas
situações acontecem e a gente poder refletir para poder entender onde é que a
gente está errando na formação deles. Às vezes será que a gente também não
está pecando em deixar eles acharem que eles realmente podem fazer tudo? -
pergunta Melissa.
- Eu
sempre digo para os atletas: “Não é não. Não importa o que você esteja
pensando, sentindo e não importa o que esteja vendo, não importa”.
- Quando
veio a pandemia, eu falei: "sabe o distanciamento social, que você tem que
ficar 1,5 m das pessoas? Então, é a distância do respeito" - diz a
psicóloga Melissa Voltarelli.
- Você
vai dar a mão para alguém, você estica sua mão, se a outra pessoa que tiver
quiser te dar a mão, ela vai esticar a mão também. Se você tiver indo em cima
dela para puxar a mão dela, você está errado.
"Psicóloga não é figura decorativa"
Em 1998,
a Lei Pelé (9.615/98) inaugura série de normas para o funcionamento do esporte
brasileiro e inclui preocupações com atletas para além da perfomance de campo.
Alterações em 2017 e 2021 instituíram a assistência psicológica
continuada a atletas - não só na formação, como era antes. Uma
realidade ainda distante quando se exclui os principais clubes de primeira
divisão no futebol brasileiro - num misto de falta de recursos dos clubes com
desconhecimento sobre a importância destes profissionais na formação dos
atletas.
- A nossa
responsabilidade (psicólogos) é gigante. É entender realmente o que você está
construindo quando mexe com a vida de uma pessoa. Por isso que, para mim, é
importante que os clubes entendam que o psicólogo não é uma figura decorativa
no clube. Não é só porque a Lei Pelé pediu e porque a CBF exige para
certificado de clube formador - lembra Melissa.
Cuca,
hoje técnico de futebol, foi condenado a 15 meses na Suíça por participação de
estupro de uma menina de 13 anos em 1987. Na época, ele e mais três jogadores
foram detidos e depois liberados para retornar ao Brasil graças à intervenção
do Governo. A pena expirou em 2004
Na
experiência que tem na outra ponta, a empresária Stephanie Figer opina que,
apesar da maior preocupação dos clubes ser com a perfomance esportiva dos
atletas, toda queda de rendimento, principalmente no caso dos atletas mais
jovens, acende sinal de alerta. Pode ser problema com treinador, na família. E
pode ser caso que não é revelado pelo atleta até vir à tona.
- Tive
caso de jogador em que o irmão foi preso e a cabeça dele foi para Júpiter. Aí o
departamento de psicologia acolheu, deu todo apoio, porque é óbvio que isso vai
ter um impacto no rendimento. Existe apoio às questões pessoais do jogador, mas
isso vai depender muito do clube ficar sabendo - diz Stephanie Figer.
Esposa de Daniel Alves publica carta após visitar
jogador na prisão
"A
gente não pode tapar o sol com a peneira", define Fernando, do Palmeiras.
Como parte do sistema educacional de um país com este déficit, os clubes têm a
missão de auxílio contra casos que possam virar abusos sexuais, estupros e
agressões contra mulheres.
- A gente
orienta o adolescente para que, dentro desses ambientes, ele seja consciente do
que é um estupro, do que é uma importunação sexual, um abuso. A mulher não é
objeto. Ela tem os seus direitos, o corpo dela tem que ser protegido. Trazer
isso para eles é muito importante, ainda mais dentro dessa sociedade
estruturalmente tão machista - diz Fernando, que trabalho ao lado de diversas
mulheres na base do Palmeiras.
- Temos
médica, nutricionista, psicóloga, pedagoga, inspetora. São muitas mulheres
inseridas nesse processo de formação. Eles (atletas) se relacionam com essas
mulheres inseridas nesse contexto formativo deles. E muitas vezes existem
comentários que são considerados brincadeiras por eles que não são brincadeiras -
conta o coordenador do Palmeiras.
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