Desafios
da Igreja na cidade atual
Por Pe. José Comblin
A maioria dos
problemas gerados pela cidade procedem mais da nova cultura ocidental do que da
estrutura da cidade. As cidades variam muito na história, e os problemas das
cidades atuais são, em primeiro lugar, os problemas nascidos da nova cultura.
Essa cultura se identifica, de certo modo, com a vida urbana atual, sobretudo
nas grandes cidades. Mais do que um problema de oposição campo-cidade,
encontramos um problema de oposição cultura antiga-cultura atual.
Isso foi reconhecido
pelos sociólogos há um século. No entanto, naquele tempo, os autores entendiam por
nova cultura a cultura moderna. Hoje tal cultura foi suplantada pela cultura
pós-moderna, quase inteiramente norte-americana. Os Estados Unidos são, na
atualidade, quase a única fonte de cultura do mundo ocidental — novidade que se
estabeleceu, sobretudo no decorrer dos últimos 30 anos, havendo grande difusão
de iniciação popular dessa cultura sobretudo mediante a TV.
De modo geral, as
reflexões pastorais pecam por excesso de idealismo — ou seja, de irrealismo.
São reflexões feitas para um mundo ideal que não existe, falando de uma Igreja
ideal que também não existe. A Igreja de que falam os documentos eclesiásticos
é construção ideal, traduz a ideologia do clero, a doutrina que lhe permite
valorizar-se e legitimar tudo o que está fazendo, com a ajuda de princípios
espirituais. A Igreja que existe não combina com essa descrição.
Ao propor suas
reflexões pastorais, o clero sente-se movido por motivações abstratas de grande
beleza espiritual. Graças a essas reflexões, o clero pensa que está realmente
trabalhando pelo Reino de Deus. A realidade, no entanto, não atende a tal
propósito. Na hora do agir, os princípios pastorais definidos e renovados com
convicção nas reuniões pastorais simplesmente desaparecem e outros princípios
muito mais concretos, mas geralmente inconscientes, prevalecem.
Exemplifico isso com
uma experiência pessoal. Trabalhei oito anos em uma paróquia com mais três
sacerdotes. Havia, naturalmente, reuniões de planejamento e organização
pastoral. Não tenho lembrança de que nessas reuniões o assunto principal
tivesse sido a preocupação com o evangelho. Examinando o conjunto desses oito
anos, para expressá-lo de modo sintético, todas as conversas se referiam ao
poder da paróquia, do clero, daquilo que chamávamos de Igreja — poder por meio
das escolas e demais instituições que era necessário fazer funcionar; poder
pelo relacionamento com as autoridades públicas e com as pessoas ou famílias
importantes na sociedade. Se alguém tivesse dito abertamente que a nossa
preocupação chamada de pastoral era, na realidade, pura preocupação de poder,
todos teríamos ficado escandalizados e teríamos protestado veementemente. No
entanto, refletindo seriamente sobre isso após alguns anos, cheguei à conclusão
de que essa era a realidade, muito mais trivial do que as belezas teológicas.
Evidentemente a procura do poder era justificada para servir melhor e ajudar a
melhorar a situação; sempre havia motivos sobrenaturais. Todos fazíamos exame
de consciência, confessando-nos semanalmente, mas não descobrimos o óbvio: a preocupação
pelo poder da Igreja.
Pode-se naturalmente
ponderar que nem todas as paróquias são assim. Tenho a impressão de que
reproduzíamos a média: não éramos animadores de uma paróquia ótima, mas também
não éramos animadores de uma paróquia péssima. Por sinal, o arcebispado estava
feliz porque era justamente isso que esperava — não havia a preocupação em
saber se na paróquia se praticava o evangelho. Isso sé dava por descontado. O
mais importante era saber que, graças à paróquia, o poder da Igreja aumentava.
Isso para assinalar
que, quando falamos em Igreja, devemos sempre determinar se estamos falando da
Igreja ideal, da teórica, da dos documentos eclesiásticos e da teologia ou da
Igreja real.
1. Igreja da cristandade
Ao longo de 16
séculos de cristandade, o clero edificou uma Igreja cujas bases procederam de
duas fontes. Por um lado, há o evangelho tal como foi transmitido pela tradição
bíblica e por uma Tradição geralmente escondida de discípulos verdadeiros de
Jesus. Por outro, há um sistema religioso cuja inspiração está no sentimento
religioso espontâneo dos povos em que se difundiu o cristianismo: no Ocidente,
essa mistura vem das antigas religiões do mundo mediterrâneo, acrescidas dos
costumes e tradições do mundo céltico-irlandês e germânico, e, na América, das
tradições indígenas ou africanas. De tudo isso se criou um sistema bastante
homogêneo que foi, durante séculos, a base da unanimidade religiosa na
cristandade.
Durante os séculos de
cristandade, até o século XVIII na Europa e até o século XIX na América, houve
homogeneidade religiosa: a quase unanimidade viveu e praticou o sistema
religioso montado pelo clero. Esse sistema se apresentava como a religião
fundada por Jesus Cristo, ainda que a maior parte dele não procedesse de Jesus
Cristo, mas das religiões anteriores ao cristianismo (nem as revisões da
Reforma mudaram notavelmente o sistema, apesar da negação radical das imagens e
outras tradições).
É muito provável que,
se a Igreja tivesse ensinado apenas o evangelho, teria permanecido como minoria
marginalizada e muitas vezes perseguida — como foi nos primeiros 250 anos no
império romano e durante muitos séculos em várias regiões da Ásia, como no
Japão, por exemplo. Onde e quando não gozava da proteção militar e política das
potências ocidentais dominantes, o cristianismo era minoria exposta à
perseguição.
Houve 16 séculos de
cristandade e somos seus herdeiros. Oxalá fôssemos todos herdeiros conscientes,
mas a maioria permanece inconsciente e identifica simplesmente o cristianismo
com aquilo que se apresenta com esse nome. Ora, no tempo do império romano e
dos seus sucessores, o cristianismo foi vivido dentro de um sistema religioso
que era herança dos povos anteriores a sua conversão.
Há um documento
eloquente que manifesta a maneira como se fez a cristandade. Trata-se da famosa
carta do Papa São Gregório aos monges que enviou à Inglaterra para evangelizar
os povos daquela ilha. Nessa carta, o Papa recomenda que os monges se dirijam
para os lugares de culto, os santuários onde os pagãos veneravam as suas
divindades. Ali os monges deveriam retirar as imagens das divindades pagãs e
pôr no seu lugar imagens dos santos católicos. Dessa maneira, os povos pagãos
continuariam celebrando o mesmo culto, mas agora dirigido aos santos cristãos —
ainda que não estivessem conscientes da mudança. Assim, os povos se
converteriam. De fato, eles se converteram, mas vale perguntar: que, conversão
era essa, em que não intervinha o evangelho de modo algum? Pode-se dizer que os
povos da Inglaterra se converteram ao cristianismo ou que a Igreja se converteu
à religião dos povos ingleses? Quem mudou mais? Não foram os monges cristãos?
Em todo o caso, a conversão esteve baseada numa ambiguidade, e essa ambiguidade
persevera até hoje nos restos de cristandade que ainda subsistem.
Não se trata de
querer julgar o passado. O que deve preocupar-nos é isto: que esse sistema
funcionou durante séculos, entrou em decadência há pelo menos dois ou três
séculos e já está no final da sua curva descendente. Ainda há idosos que
praticam a religião da cristandade, mas já não há jovens. Isso quer dizer que,
no máximo, a antiga cristandade ainda pode sobreviver 50 anos em alguns
conventículos integristas sectários (presentes na Igreja de hoje e que ameaçam
assumir o controle, o que faria da Igreja uma seita isolada do mundo, ainda que
com o projeto de dominá-lo). Em geral, o clero não quer aceitar essa realidade.
Somente a aceitará quando a cristandade tiver desaparecido completamente.
Jamais os responsáveis de uma instituição decadente são capazes de perceber a
sua verdadeira situação. São como os doentes que até a morte negam a sua
doença. Com isso conservam as suas razões de viver.
O que significa o fim
da cristandade? Significa que se dissolve o sistema que, durante 16 séculos,
misturou as religiões antigas, anteriores ao cristianismo, com o evangelho de
Jesus Cristo. Uma vez que se dissolve a associação, reaparecem os dois
elementos: por um lado, o evangelho e, por outro, as religiões dos povos
atuais.
2. A Igreja na atualidade e seus desafios
Diante dessa
situação, há duas maneiras de enxergar os desafios. Pode-se contemplar o
desafio do evangelho, mediante o questionamento de como, onde, quando se pode
anunciá-lo na nova situação cultural, numa sociedade conduzida por um novo
sistema de valores que está substituindo a cristandade. Mas pode-se também
partir de outro desafio: já que a Igreja perdeu espaço na nova cultura, como
pode reconquistar esse espaço, recuperar o prestígio perdido e a audiência que
teve durante tantos séculos? O que a Igreja fez durante séculos, integrando-se
no sistema religioso dos povos, não poderia ser refeito dentro do novo sistema
religioso e da cultura religiosa dos povos atuais? Tratar-se-ia de refazer uma
nova cristandade com base nas religiões atuais. Vamos considerar primeiro esta
última maneira de enxergar o desafio.
Os povos atuais não
são povos sem religião. Nem o ateísmo é sinal de ausência de religião. O
próprio ateísmo pode ser uma religião, porque coloca outro absoluto no lugar do
absoluto da cristandade. Os ateus não querem dar-lhe o nome de Deus porque este
nome foi confiscado pela cristandade. Mas podem dar-lhe outro nome. Claro que
há, houve e haverá minorias de ateus, mas este é um fenômeno minoritário e
marginal que requer um tratamento específico, não dizendo respeito ao grande
desafio da sociedade. Assim como há pessoas sem sensibilidade musical, sem
capacidade de comunicação ou de relacionamento social, há pessoas sem
sentimento religioso. Mas isso é um defeito que atinge pequena minoria e não constitui
problema nem desafio. O ateísmo nunca foi e nunca será um desafio. O desafio
são as novas religiões contemporâneas.
O problema é
identificar essa religião contemporânea que muitas vezes não usa a palavra
religião, justamente porque esta palavra parece referir-se a fenômenos de outro
nível cultural, e que os contemporâneos querem distanciar-se claramente das
culturas tradicionais. Os contemporâneos cultivam uma religião à qual não dão o
nome de religião. Além disso, parece haver também outras motivações na recusa
do nome de religião.
Qual é o valor
absoluto no mundo ocidental atual? Qual é o valor ao qual todos os outros
valores se referem? Com certeza, trata-se do bem-estar. O absoluto é sentir-se
bem, sentir-se em harmonia com o próprio corpo, com a mente, com os outros, com
o mundo em geral. Ter o sentimento de participar emocionalmente da vida do
universo, sentir-se à vontade, sentir-se feliz. Nesse sentido, a felicidade é o
valor absoluto, uma felicidade profundamente corporal. O mais profundo da ruptura
com a modernidade foi e ainda é a afirmação do corpo contra a mente, do reino
do corpo contra o reino das ideias, das abstrações, das teorias. O deus
contemporâneo é corporal. O novo deus é um deus que goza da sua corporeidade e
serve como modelo para todos, porque todos aspiram integrar-se nele.
Essa
felicidade corporal é um valor absoluto que se impõe a todos, fazendo parte do
sistema que se transmite às novas gerações. Apresenta expressões mais
sofisticadas ou explicitadas que são filosofias de tipo mais ou menos
panteísta, em que o holismo é total
e o todo é equivalente
ao Todo. Até hoje não produziu expressões filosóficas marcantes, e
possivelmente a rejeição do mundo das ideias seja um fator capaz de inibir
qualquer sistema semelhante. Porém, há grande difusão de iniciação popular,
abrangendo a quase totalidade da programação da TV, 90% das publicações
populares, das canções e do cinema. Toda essa cultura é americana e difunde um
ideal humano, uma referência absoluta. Na América, ela se mistura com elementos
das religiões tradicionais. Na Europa, a separação é mais forte. Na América Latina, as religiões
tradicionais adaptam-se a ela muito bem, de modo espontâneo e cada vez mais
sistemático.
Esse mundo do
bem-estar físico e mental é povoado de entes favoráveis, como anjos, espíritos
e fadas. A magia ressuscita com mais força do que nunca. Ao lado das ciências,
cujos ideais são herança da modernidade, o que predomina no mundo de hoje são
as forças mágicas, os mistérios, os entes fabulosos, as novas mitologias, o
sobrenatural e o religioso. Os contemporâneos usam a racionalidade da ciência,
mas o seu coração não está na ciência, e sim na magia. Os homens do século XIX
queriam ser adultos, racionais e aparecer como adultos. Os contemporâneos
querem ser jovens que nunca chegam a ser adultos. Rejeitam a condição de
adultos.
Na mente
contemporânea, a mitologia tem muito mais força do que a ciência. Os mestres da
nossa época são Paulo Coelho e Harry Potter. Tudo indica que, nos tempos vindouros,
essas tendências serão cada vez mais acentuadas. O século XXI gosta de viver
num mundo sobrenatural e procura fazer deste mundo uma cópia do sobrenatural,
onde todos são felizes, tudo é fácil e abundante e o corpo humano é
todo-poderoso porque é sempre assistido por forças sobrenaturais.
Antigamente o centro
das religiões tradicionais era o culto: atos dirigidos para as divindades
contempladas fora da pessoa humana. O que se pedia às divindades era a vida e
as condições da vida: a chuva, a eliminação dos inimigos naturais, a
preservação dos cataclismos naturais, a saúde sobretudo. Numa palavra,
pediam-se milagres — e de fato a vida estava repleta de milagres, era vivida
como vitória permanente sobre ameaças constantes graças à ajuda de forças
sobrenaturais.
3. Práticas das religiões pós-modernas
Nas religiões
pós-modernas, as atividades principais são atividades de iniciação por meio das
quais o corpo atinge a sua maior perfeição: práticas de autoajuda, exercícios
físicos ou mentais, recurso às receitas das antigas religiões orientais que são
novas para o Ocidente. Os contemporâneos dedicam várias horas por semana a
essas atividades, das quais recebem um sentimento de bem-estar, paz,
tranquilidade. Trata-se de penetrar pouco a pouco no mundo da felicidade por
meio de etapas sucessivas e perseverantes.
No passado, as
pessoas praticavam exercícios físicos por motivos racionais: a ginástica era
praticada por necessidade compreensível racionalmente. Hoje, não. Buscar a
perfeição da vida corporal é entrar com fé e abandono num mundo de forças
mágicas. É estar relacionado com as energias do universo e com a Totalidade.
Esses exercícios tornaram-se religiosos.
Cada forma de
iniciação tem os seus ministros, cujas receitas devem ser seguidas com
religioso respeito e total submissão, como se fossem liturgias. Aliás, as novas
liturgias usam imensa variedade de objetos: pedras, líquidos, bebidas, comidas,
plantas, animais. Servem-se de gestos rituais, de lugares sagrados e de tempos
sagrados. Tudo isso tem valor sagrado porque é o caminho para chegar à
felicidade.
Essas práticas são
individuais, mas vividas dentro de instituições em que as pessoas se encontram
e se estimulam mutuamente. Formam comunidades de devotos, usando diferentes
métodos de felicidade. Formam-se, dessa maneira, inúmeras comunidades de base.
Nessas comunidades se
cultiva a devoção, o otimismo, o sentimento de bem-estar; todos os sentimentos
negativos estão excluídos; todos têm a obrigação de estar felizes.
Existem inúmeras
receitas para despertar o sentimento de felicidade. As mais vulgares são as
drogas, que, infelizmente, ocupam espaço amplo no cultivo da felicidade. Claro
que as drogas são um método radicalmente inferior, destrutivo da personalidade,
refúgio das pessoas que não se dão ao esforço e ao trabalho de desenvolver
métodos mais elevados de conquista da felicidade.
O
evangelho acostumou-nos à ideia de que religião é compromisso. Mas isso somente
na vida segundo o evangelho. Nas religiões tradicionais, o compromisso não é tão comum.
Quem professa essas religiões busca nelas meios para alcançar mais vida, mais
felicidade, pela participação em forças sobrenaturais. As novas religiões não
são diferentes.
Entre os métodos
coletivos para alcançar a felicidade está a música: as canções e os festivais
de canções, que se realizam pelo menos aos sábados — e nas grandes cidades
todas as noites em inúmeros lugares —, substituem os antigos atos de culto
público. A música atual dos cancioneiros é o meio mais divulgado de criar
felicidade. Os festivais da canção são verdadeiras liturgias para a juventude.
Ali os jovens se encontram com eles mesmos, com os outros e com as energias do
universo, sentindo as próprias pulsações da vida. Não é simplesmente uma
diversão, mas uma participação na vida coletiva e nas energias do mundo. Ali é
que se sente a vida.
Todas as religiões
tradicionais celebravam as suas festas. As festas eram oportunidades para
reunir a assembleia de todo o povo, marcando os tempos fortes da existência.
Dividiam o tempo da existência humana e lhe davam sentido.
Hoje, as festas
dividiram-se em duas categorias. Primeiro há as festas do indivíduo:
aniversários, promoções, ritos de passagem. As festas renovam o sentimento de
importância da pessoa, aumentam a, afirmação de si e, ao mesmo tempo, reforçam
a autoafirmação de cada participante.
Ao lado disso, as
festas coletivas foram substituídas pelas férias. Na civilização atual não há
nada mais importante do que as férias. Elas são muito mais importantes do que o
trabalho, que — exaltado na modernidade — perdeu todo o prestígio. Durante o
ano, todas as pessoas estão preparando as férias. Projetam viagens, encontros,
visitas. Nas férias, viaja-se. Não há “férias sérias” dentro de casa ou na
própria cidade. Férias são sinônimo de deslocamento aos lugares turísticos, às
montanhas, às regiões privilegiadas onde há sol e calor e, sobretudo, à praia —
verdadeiro lugar sagrado dos indivíduos contemporâneos.
O indivíduo
contemporâneo sente realmente que existe quando está de férias. Nas férias,
vive-se! Não é sem razão que a principal indústria de hoje é o turismo, que
tenderá a crescer até que todos possam realmente ter verdadeiras férias.
É verdade que algumas
festas tradicionais se mantêm no calendário: Natal, Ano-Novo, Páscoa, festas
juninas e outras menores. Mas, cada vez mais, essas festas são motivo para
viagens. Celebrar o Natal quer dizer viajar. As pessoas se perguntam: onde é
que vamos celebrar o Natal, ou o Ano-Novo, ou a Semana Santa, ou São João?
Celebrar a Semana Santa quer dizer viajar. As agências de turismo oferecem
pacotes para todos os gostos. Dessa maneira, as festas tradicionais são
absorvidas pelas festas novas, que são as férias.
Também o domingo foi
absorvido pelas férias. Costuma-se passá-lo na praia ou no campo. Dedica-se
esse dia à nova religião.
Todos os exercícios
dessa religião são materiais ou quase. Por conseguinte, precisam ser comprados.
São caros — e cada vez mais caros, porque sempre mais desenvolvidos. Por isso,
no centro dessa nova religião está o dinheiro. Nada se pode fazer sem dinheiro.
A felicidade se conquista mediante o dinheiro. Daí a exaltação ao dinheiro, que
pode trazer tantos bens. No entanto, o dinheiro não vale tanto em si quanto
pelas satisfações que permite comprar. A propaganda mostra as maravilhas que os
bilionários podem comprar — são os diferentes tipos de felicidade.
O dinheiro torna-se
muito valorizado, mas está a serviço de um valor superior, que é a felicidade
corporal.
Basta isso para
situar o mundo da nova religião. Surge a questão: como seria possível refazer
com essa religião o que os monges do tempo do Papa Gregório fizeram?
Aparentemente eles não tiveram muita dificuldade: tiraram as imagens pagãs e
puseram imagens cristãs, sem que ninguém viesse impedir ou protestar. Eles
tinham um poder imenso que os agentes de pastoral não têm mais hoje. O mesmo
método impositivo e autoritário seria impossível na atualidade.
A cristandade antiga
realizou-se pela imposição. A sociedade antiga era autoritária e hierárquica. A
religião não era objeto de opção pessoal, a não ser de modo muito limitado,
como, por exemplo, no caso da escolha entre diversas irmandades. A religião era
parte — e mais do que parte —, era o fundamento da sociedade e, por isso, tinha
de ser homogênea. O papel do clero era exercer a hegemonia dentro da sociedade
e manter rigorosamente a homogeneidade religiosa. Assim fizeram os vigários do
interior durante 16 séculos.
Agora estamos numa
sociedade de mercado. Não há nenhuma imposição oficial em matéria de religião,
o que não significa que todas as religiões sejam aceitas. São aceitas aquelas
que se integram dentro do sistema de mercado, ou seja, desistem do sistema
autoritário e entram nas regras do mercado (daí as dificuldades de integração
do islamismo, que não aceita o mercado).
A regra do mercado é
a competição. Vence a religião ou o grupo religioso que é mais competitivo.
Cada religião deve ganhar adeptos, se quer vencer. Não pode impor. Deve
seduzir, convencer. A religião entra como mercadoria e deve seguir as normas do
mercado.
Para as religiões
tradicionais da época da cristandade, esse sistema representa total
desequilíbrio. Os modos de agir da cristandade são justamente aqueles que
suscitam mais rejeição — o que se nota, de modo particular, no caso do
catolicismo.
A religião da
cristandade invoca sempre a verdade como argumento definitivo. No sistema de
mercado, a verdade não conta. O importante é a utilidade, a capacidade de gerar
satisfação. Não se compra um objeto porque é verdadeiro, mas porque é útil,
agradável e dá satisfação.
4. A religião e o marketing
Existe
toda uma ciência que ajuda a vender. Trata-se da ciência mais importante de
hoje: o marketing. Hoje,
mais do que produzir — o que é bastante fácil —, o importante é vender. A arte
de vender é a que conta, porque um objeto é tido como inútil, se não se
consegue vendê-lo. Por isso, num regime de mercado, não adianta invocar a
verdade, é preciso mostrar a utilidade, a satisfação. Não é preciso convencer,
mas seduzir. É preciso oferecer algo que responda a um desejo e, eventualmente,
despertar o desejo ao qual o objeto que se quer vender será fonte de
satisfação.
Pode-se
aplicar o marketing à
religião? A experiência mostra que sim. Nos Estados Unidos, o marketing é
aplicado com êxito há pelo menos três décadas pelas Igrejas da extrema-direita
— as mais fundamentalistas. Há 25 anos, com a, Igreja Universal do Reino de
Deus, começou no Brasil a época do neopentecostalismo — hoje em pleno
desenvolvimento em todas as classes sociais. As chamadas Igrejas
neopentecostais praticam, com a maior eficácia, o marketing religioso
e, por isso mesmo, são olhadas com inveja pelas outras Igrejas — que começam a
perceber a perda de terreno no mercado por não conhecerem nem aplicarem o marketing.
Essa
situação gera uma tentação quase irresistível de aprender também a arte
do marketing. Essa
evolução é inevitável. A Igreja católica vai entrar cada vez mais na era
do marketing. Por
sinal, ela já entrou, e com muito entusiasmo.
Importa dar atenção a
esse fenômeno, porque o pentecostalismo é o fenômeno religioso mais importante
do mundo desde a Reforma protestante do século XVI. Veio para provocar um
maremoto e abalar as Igrejas tradicionais com mais força do que Lutero ou
Calvino no seu tempo, por ser muito mais radical.
Quando o fundador da
Assembleia de Deus se separou da congregação a que pertencia e resolveu fundar
a sua própria, não imaginava a imensa repercussão do seu gesto. Em cem anos o
seu gesto provocou a migração de centenas de milhões de cristãos das mais
diversas denominações para o movimento pentecostal que iniciou.
O seu gesto foi uma
ruptura radical com a cristandade — com o sistema autoritário no cristianismo.
Iniciou uma forma de cristianismo que atrai não pela imposição da verdade, mas
pela experiência de vida que fornece. A presença imediata e sensível do
Espírito mudava tudo. Doravante os cristãos passam a ter contato imediato com o
Espírito e receber a vida dele. Em primeiro lugar vem a saúde — pois a cura foi
determinante na sedução das multidões. Restituição da saúde, expulsão dos demônios,
bênçãos de todo tipo, proteção nos perigos, prosperidade, paz, reconciliação,
emprego, todos esses bens vitais são recuperados imediatamente graças à força
divina diretamente presente. O pentecostalismo, sem ter de voltar às bases
religiosas tradicionais, doravante sente-se livre dos laços autoritários,
formalistas, hierarquizados da cristandade. Pentecostalismo significa o fim da
cristandade.
No
início e durante varias gerações, o pentecostalismo mostrou-se apegado a
costumes e ritos antigos da cristandade: a Bíblia, a austeridade moral
tradicional, o culto à família. No entanto, com o decorrer dos tempos e a
penetração na nova cultura, o conteúdo mudou. O movimento não conseguiu
defender-se da pressão do novo contexto religioso contemporâneo. Com o neopentecostalismo,
o movimento abandonou os seus elementos cristãos e voltou a ser uma religião
natural, entrou na corrente da religião neomoderna. No neopentecostalismo, o
resto de conteúdo devido ao cristianismo desapareceu o que ficou foi o
equivalente da antiga religião pré-cristã, a religião nova da pós-modernidade.
O neopentecostalismo adotou o marketing religioso
sem escrúpulos porque já tinha eliminado o conteúdo do evangelho. O seu Jesus é
expressão da força viva benfazeja da pós-modernidade. Tem pouco em comum com o
Jesus do evangelho. É uma reinterpretação à luz da pós-modernidade.
O
neopentecostalismo, já sem ligação com as estruturas antigas da cristandade,
aceita a separação da religião pós-moderna e do evangelho. Entra sem remorso na
pura religião pós-moderna. Isso lhe permite dedicar-se sem inibição às regras
do marketing, pois
este convive muito bem com a religião pós-moderna.
Jesus torna-se
naquele que oferece todos os bens desejados pela cultura pós-moderna: a saúde,
o bem-estar corporal, a felicidade, a prosperidade, a riqueza, o êxito na vida.
Tem um público ilimitado nas massas, entre todos aqueles que se sentem
frustrados no mundo pós-moderno, porque não conseguem triunfar no mercado. A
religião oferece métodos de recuperação para todos os frustrados no mercado
pós-moderno.
O neopentecostalismo
deve triunfar no mercado porque não exige compromisso, oferece satisfação
imediata, promete tudo o que faz falta na vida da maioria. No momento do
entusiasmo, as pessoas sabem que devem entregar o seu dinheiro. O dinheiro
destina-se a trazer felicidade, e essa religião oferece a felicidade —
requerendo, em contrapartida, dinheiro.
O
neopentecostalismo é a
melhor adaptação do cristianismo ao mundo religioso da atual civilização
ocidental, atualmente dominante nas grandes cidades. A dificuldade está em
saber se ainda é cristã. Faz sucesso, mas será o sucesso do cristianismo ou o
de uma nova religião pós-moderna, superficialmente cristã, por manter alguns
símbolos cristãos?
O projeto de formar
nova síntese entre a religião da atualidade e o cristianismo parece ser
impossível. O neopentecostalismo parece mostrar a impossibilidade do projeto. A
atração pelo êxito é tal, que, para alcançar o sucesso, os líderes religiosos
estão dispostos a sacrificar o conteúdo do evangelho — na teologia da
prosperidade, por exemplo, que é a negação do evangelho. Em outras palavras,
parece que uma nova cristandade é impossível na atual situação.
Essas considerações
destinam-se àqueles que se sentem seduzidos pelo êxito do neopentecostalismo,
bem como pelas outras formas de adaptação cristã das novas religiões. Não
estarão finalmente destinadas a sacrificar o essencial do cristianismo? Não há
como concluir com exatidão, pois estamos em pleno processo de desenvolvimento
desse fenômeno.
5. Como viver o evangelho na cultura atual?
Passemos ao segundo
elemento da antiga cristandade: o evangelho de Jesus Cristo. Como viver o
evangelho na atual cultura pós-moderna que é a cultura urbana?
O desafio é: como
viver o evangelho fora de um contexto de cristandade?
A primeira condição é
ter consciência da distância que há entre o evangelho e a nova cultura. Quem
está acostumado à cristandade não faz distinção entre ser cristão e ser da sua
cultura. Agora, sim, a distinção há de ser bem consciente. Sem isso não é
possível dar-se conta do que é o evangelho.
Em segundo lugar, é
preciso fazer opção por uma vida alternativa, não integrada ao coração da
cultura atual. Necessariamente o cristão precisa tomar parte nas atividades
sociais, mas sem compromisso incondicional, pelo contrário, com o projeto de
buscar uma sociedade alternativa.
Em terceiro lugar,
pode-se dizer que é quase impossível viver de acordo com o evangelho sozinho.
Antigamente o cristianismo era vivido na família, mas a família deixou de ser
religiosamente homogênea, deixou de ser uma comunidade de fé. Frequentemente cada
um tem a sua própria religião. Então cada cristão precisa de uma comunidade de
fé para alimentar a sua adesão ao evangelho.
Em lugar da paróquia,
o centro da vida cristã será a pequena comunidade: lugar da iniciação, da
formação, dos sacramentos, da educação, do discernimento moral, da preparação
para o agir dentro da sociedade. A paróquia sobreviverá até que desapareçam os
últimos representantes da antiga cristandade. Se não houver pequenas
comunidades cristãs, as novas gerações farão toda a sua adesão às novas
religiões — também na forma de neopentecostalismos católicos.
Nasce o desafio de
manter uma unidade e colaboração entre todas essas comunidades pequenas.
Outrora o que estabelecia a unidade era o clero homogêneo, uniforme, e o
direito canônico, que enunciava todos os poderes da hierarquia e do clero. A
organização hierárquica fazia a unidade. Claro que, hoje, esse tipo autoritário
de organização não consegue se impor — basta ver como milhões de católicos vêm
se emancipando da organização autoritária do clero, buscando por si próprios a
sua maneira de ser cristãos.
Não há necessidade de
insistir que uma organização em forma de pequenas comunidades exige a formação
de centenas de milhares de animadores ou agentes de pastoral. O que existe
atualmente como preparação não consegue cobrir nem a milésima parte das
necessidades. Prefere-se fechar os olhos, entregando a Deus a responsabilidade
de dirigir a Igreja.
Não se trata de ser
contra a autoridade. Muito pelo contrário, desejamos que quem tem autoridade tenha
a coragem de exercer a autoridade, tomando as decisões necessárias em lugar de
adiá-las indefinidamente, por medo ou timidez. Mais do que nunca, a Igreja
precisa de autoridades que tenham a coragem de governar com base no mundo
atual, a partir dos sinais dos tempos, deixando de sonhar na possibilidade de
voltar ao passado. Autoridades que não entregam a Deus o poder que receberam,
rezando para que Deus faça o que elas não se atrevem a fazer.
À frente de cada
Igreja urbana há (ou deveria haver) um bispo que deve enxergar longe, perceber
o que está acontecendo e para onde vai a sua cidade. Uma pessoa que seja sinal,
mostre os caminhos, desperte vocações não para “tapar os buracos”, mas para
abrir caminhos novos. A Igreja, mais do que nunca, precisa de bispos, mas não
de bispos que se contentem com aquilo que foi dito no mais recente Sínodo, em
que se falava das coisas do passado e nada das coisas do futuro.
Se a hierarquia
carecer de visão ou de coragem, a pastoral católica copiará o sistema
neopentecostal, tratando apenas de achar um buraco no sistema para introduzir
os sacramentos tradicionais. O evangelho será substituído pela teologia da
prosperidade!
Se
contemplamos agora a cidade como cidade, vemos nela um caos. Não é tarefa da
Igreja pôr ordem nesse caos. Mas verdadeiros cristãos conseguirão achar espaços
e tempos para dar testemunho do evangelho — com a condição de que sejam
formados, preparados profundamente. Não se trata de preparação técnica, mas de
preparação ao evangelho vivido pessoal e comunitariamente.
Em todo o caso,
devemos perder a ilusão de que reflexões pastorais podem oferecer soluções aos
problemas da cidade. Não temos solução pronta. O que podemos oferecer são
pessoas livres, dedicadas, sacrificadas, com espírito de serviço na aplicação
das suas capacidades humanas. O clero deve deixar de pensar que tem todas as
soluções. O que tem é o evangelho, mas comunicar o evangelho não é a
preocupação dominante da maior parte do clero na atualidade. Talvez seja esse o
maior problema da Igreja na cidade.
Pe. José
Comblin
https://www.vidapastoral.com.br/artigos/eclesiologia/desafios-da-igreja-na-cidade-atual/
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