REFLEXÃO
DOMINICAL III
O novo povo de Deus
Por Pe. Johan Konings, sj
I.
Introdução geral
Deus quis um povo
para si, um povo santo, um povo “sacerdotal”, para santificar o mundo todo em
seu nome. Um povo que fizesse sua vontade, realizasse seu reino: “um reino de
sacerdotes e uma nação santa” (Ex 19,6; 1ª leitura). Essa vocação do povo, por
ocasião da proclamação da Lei no monte Sinai, prefigura aquela vocação mais
plena que, no monte da Galileia, Jesus dirigiu a doze humildes galileus. Eles
são como que representantes das doze tribos de Israel, e ele os manda para a
colheita messiânica, para ceifar com a palavra do evangelho, anunciando a vinda
do Reino. Eles são o começo do verdadeiro Israel, o novo povo de Deus. Os
sinais disso são os prodígios que os acompanham na sua missão: curam enfermos,
limpam leprosos, ressuscitam mortos, expulsam demônios… (Mt 10,8, evangelho).
II.
Comentário dos textos bíblicos
- I leitura: Ex 19,2-6ª
A 1ª leitura narra
que Deus escolhe um povo para si. Este texto, que expressa a eleição de Israel
como povo de Deus, é o início do relato da Aliança do Sinai (Ex 19,1–24,11).
Nas palavras pronunciadas por Javé, Israel é chamado de reino sacerdotal e povo
santo. Javé, a quem pertencem todas as nações (v. 5: “minha é toda a terra”),
faz de Israel a sua porção escolhida (seu quinhão, sua “herança”). Não porque
Deus precise tomar posse dessa parte (tudo lhe pertence), mas para que essa
parte escolhida dê a conhecer e celebre a sua santidade (sua transcendência e
perfeição) no meio de todas as nações da terra. É essa a função “sacerdotal” do
povo.
A formulação atual do
texto reflete a época, depois do exílio (por volta de 500 a.C.), quando os
sacerdotes estão empenhados em reconstituir o povo de Israel em torno do culto
e do Templo. Ensinados pela experiência histórica, eles têm consciência
de que a vocação do povo não é de exercer o domínio sobre os outros povos, mas
de testemunhar a transcendência de seu Deus e o amor fiel com que ele protege o
seu povo, que acaba de sair da opressão. De fato, assim como no texto do Êxodo
os israelitas acabam de sair da “casa da servidão” no Egito, os contemporâneos
dos autores “sacerdotais” que formularam o texto em sua forma atual acabam de
sair da opressão no exílio babilônico.
Neste sentido, o
texto que fala da libertação que aconteceu setecentos anos antes (v. 4: “Vistes
o que fiz aos egípcios e como vos levei sobre asas de águia e vos trouxe a
mim”) representa o hoje do povo depois do exílio. O povo de Deus será para o
mundo o que os sacerdotes são para as tribos de Israel: celebrantes de seu nome
e santidade. O povo é escolhido não para seu próprio proveito, mas para
consagrar todas as nações a Javé. É essa a finalidade da Lei e de suas
instituições religiosas. Isso se chama: Aliança. Como na história do Israel
antigo, o mundo reconhecerá no povo renovado a mão carinhosa e santa de seu
Deus.
- Evangelho: Mt 9,36-10,8
O evangelho de hoje
narra a missão dos doze apóstolos por Jesus. Anteriormente, Jesus havia
mostrado por palavras e ações portentosas a irrupção do reino de Deus (Mt 5-9).
Agora, sensibilizado pela necessidade do “rebanho sem pastor” (9,35), Jesus
manda seus discípulos como operários à colheita do tempo final, a colheita
messiânica (9,36-38). Por enquanto, a missão se restringe à região de Israel
(10,5), sem entrar nos povoados e cidades dos gentios espalhados na terra da
Palestina e na diáspora. Depois da Ressurreição, porém, a missão se estenderá
ao mundo inteiro (28,19). Os discípulos devem anunciar a chegada do Reino por palavras
e sinais (curas, prodígios), assim como Jesus o fez, pois desde que Jesus
iniciou a sua obra no meio da humanidade, o mundo está sob o signo do reino de
Deus.
Mateus inseriu esse
episódio, significativamente, depois dos dois conjuntos iniciais da atividade
de Jesus, sua pregação (Mt 5-7) e sua atividade milagrosa (Mt 8-9). A missão
que os apóstolos recebem é, exatamente, a de pregar e de curar: fazer a mesma
coisa que fez o Messias. Eles são seus colaboradores e continuadores na ceifa
messiânica. Jesus quer pôr fim à situação desoladora de um povo que é como
ovelhas sem pastor (9,36). Conforme a linguagem de Ezequiel, nos últimos
tempos, Deus mesmo, através de seu Messias, reunirá as ovelhas dispersas e se
tornará o Bom Pastor (Ez 34). É nesta missão que os apóstolos vão participar,
realizando, assim, a plenitude do povo eleito, que, como aprendemos na 1ª
leitura, é a comunidade que deve manifestar a santidade e a bondade de Deus no
meio do mundo.
- II leitura: Rm 5,6-11
A
2ª leitura não está diretamente ligada ao tema principal da liturgia de hoje,
mas, ainda assim, oferece um pensamento que enriquece o tema principal.
Continuando a lectio
continua da carta de Paulo aos Romanos, como nos domingos
anteriores, o texto de Rm 5,6-11 vem oportunamente sublinhar um subentendido
fundamental das duas outras leituras: a “compaixão”, a misericórdia, o amor
gratuito de Deus. Ele nos amou enquanto éramos inimigos (prova maior da
gratuidade do amor!) e deu seu Filho por nós.
Se, porém, se quiser
escolher um texto alternativo que acompanhe melhor as duas outras leituras, ou
embuti-lo na homilia, apresenta-se o texto da 1ª carta de Pedro que descreve a
comunidade cristã como nação santa, sacerdócio real (1Pd 2,5-10). O conjunto da
carta mostra, então, como o autor concebia, naquele tempo da segunda geração
cristã, a vocação desse novo povo de Deus e novo Templo, construído com pedras
vivas: a vida santa da comunidade testemunhal no meio de um mundo desorientado,
mas ao mesmo tempo em busca de valores superiores e disposto a perguntar aos
cristãos acerca das “razões de sua esperança” (1Pd 3,15).
III.
Dicas para reflexão: O novo povo de Deus
O
evangelho narra a vocação e missão dos doze apóstolos de Jesus. No Antigo
Testamento, Deus escolheu as doze tribos
de Israel para ser seu “povo sacerdotal”, povo que devia celebrar e mostrar aos
outros povos a santidade de Javé, sua Lei e seu reinado (1ª leitura). Ora, o
evangelho conta que Jesus encontrou a massa popular abatida e exausta. Pede a
seus discípulos, em número não especificado, que rezem para que Deus envie
“trabalhadores” para a “colheita messiânica”, ou seja, para reconstituir, a
partir dessa massa dispersa, o povo de Deus. De acordo com a estrutura do
antigo povo das doze tribos, Jesus chama doze “trabalhadores” para dar início à colheita
que deve constituir o novo
povo de Deus. Esses doze trabalhadores, Jesus os manda
anunciar o Reino e curar as doenças. E, pensando no “aqui e agora”, manda-os
primeiro às ovelhas desgarradas de Israel, para, depois de sua ressurreição, enviá-los
a todas as nações (Mt 28,16-20).
Nosso povo também
está abatido, oprimido. Observamos a decadência social, e até física, das
populações das periferias e do interior, a desorientação dos jovens, a
violência crescente, o desinteresse pelo empenho político por uma sociedade
justa e fraterna… Tudo isso não nos deve desanimar: é um desafio. A tarefa de
congregar o povo na justiça e na fraternidade continua. A consciência
comunitária e a missão evangelizadora poderão transformar a situação, como
acontece, por exemplo, nas comunidades que se articulam preferencialmente com
aqueles que sempre são passados para trás, os pobres, os marginalizados, para
viver realmente o evangelho.
Jesus envia os doze a
anunciar e a curar. As curas são sinais de que no âmbito da missão de Jesus se
realiza aquilo que Deus deseja, o bem de seus filhos. Em nossa missão
evangelizadora, a palavra deve vir acompanhada da prática transformadora. É
preciso apresentar “amostras do Reino”. As palavras falam, os exemplos atraem.
A
vocação que Cristo dirige aos “trabalhadores” não é algo meramente individual,
só para nossa santificação pessoal. Chamando doze trabalhadores, o número das tribos de
Israel, Jesus manifesta a intenção de constituir um povo para
Deus. Se Jesus toma como referência as doze tribos de Israel, símbolo de sua
própria tradição religiosa e cultural, isso é uma lição para nós. Povo para
Deus não se constrói destruindo sua identidade. Será que nós respeitamos, ou
melhor, devolvemos à multidão popular (índios, negros…) a sua identidade? E
enviamos a eles “trabalhadores” que representem as feições próprias deles?
Deus
e Jesus quiseram a ajuda de um povo. O reino de Deus não pode ser realizado
sem o povo, ainda que seja fraco e até inconfiável (como revela o caso de Judas
no tempo de Jesus e a fragilidade do povo que se entrega às ilusões do
consumismo hoje). O paternalismo pastoral (fazer para, mas
não com…) não leva
a nada. Para serem “povo”, é preciso que as pessoas participem ativamente, pelo
anúncio e pela ação transformadora, da realização do reino de Deus.
Pe. Johan
Konings, sj
Nascido na Bélgica, reside há muitos
anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É autor em teologia e mestre em Filosofia
e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de
Lovaina. Atualmente é professor de Exegese Bíblica na FAJE, em Belo Horizonte.
Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo
Testamento (tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica
bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia;
A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos
fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A
Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e
Lucas e da “Fonte Q”. E-mail: konings@faculdadejesuita.edu.br
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/18-de-junho-11o-domingo-do-tempo-comum/
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