SANTO
AGOSTINHO E AS RAÍZES DA SINODALIDADE
Um dos intérpretes mais audazes e
perspicazes de Agostinho, Peter Brown, no epílogo da sua monumental
biografia do Hiponense, perguntava-se: “O que significou para os colegas
africanos o fato de descobrir que entre eles tinham um gênio?”. Mas Agostinho era
realmente esse gênio isolado no seu scriptorium?
A reportagem é de Stefania Falasca,
publicada no jornal Avvenire,
11-09-2017. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
Brown desejava um estudo ad hoc sobre
as relações de Agostinho com
os seus colegas africanos, que lhe pareciam quase esmagados pela sua figura
imponente. Justamente a partir dessas reflexões, surge agora uma nova
contribuição original, fruto de uma pesquisa de doutorado em teologia do
estudioso de Belluno
Davide Fiocco.
Através de uma detalhada análise
histórico-filológica que considera como fonte principal as Epistulae na
sua íntegra e na peculiaridade do seu contexto original, Agostinho emerge
em comparação com os colegas na obra de escuta e na resolução de contendas
entre clérigos, mas também na comparação com admiradores e adversários, com os
maiorais e outros personagens da época.
É o testemunho de uma vivência de
relações e debates, sínodos e controvérsias. Agostinho não era
um gênio isolado, mas plenamente partícipe da vida da sua comunidade e inserido
no colégio das Igrejas africanas.
De fato, as Epístolas narram
ao vivo a obra do bispo de Hipona e,
ao mesmo tempo, a vitalidade e a sinodalidade das Igrejas da África nas três
primeiras décadas do século V.
Emerge uma vivência colegial, que
revela como os bispos africanos, porção de todo o episcopado mundial,
percebiam-se solidamente como guardiões e garantes da vida eclesial, plenamente
legitimados a agir em seu nome, em uma expressão plena de colegialidade.
Além dos acontecimentos históricos, o
léxico também permitiu traçar novamente a consciência colegial que unia os
bispos africanos. Fiocco achou
particularmente significativa a exortação que Alípio e Agostinho dirigiram
a um candidato para encorajá-lo a aceitar o cuidado de uma diocese na qual
justamente a colegialidade vivida é expressada como “spiritalis amoris vinculum”,
de onde vem o título da obra publicada pela editora TiPi de Belluno (Spiritalis amoris vinculum.
Testimonianze di collegialità episcopale nell’epistolario agostiniano,
800 páginas).
A análise do epistolário agostiniano
confirma, portanto, que aquilo que o Concílio canonizou na perífrase “colegialidade
episcopal” era efetivamente vivido na Igreja antiga, particularmente nas
relações do episcopado africano.
Na conclusão da volumosa pesquisa
doutoral sobre a vida eclesial da África antiga,
obtida a partir das cartas do seu representante mais ilustre, perguntamo-nos se
ela também não pode iluminar a vida eclesial contemporânea. Se, nos anos
anteriores ao Concílio,
o ressourcement,
o retorno às fontes patrísticas, deu uma contribuição decisiva ao debate que
acompanhou a elaboração da Lumen
gentium, o testemunho de colegialidade oferecido pelas antigas
Igrejas africanas ainda pode falar à atualidade eclesial, e a vitalidade
daquela antiga Igreja pode ser um estímulo para a Igreja do século XXI,
precisamente em relação à colegialidade, “palavra-chave” da eclesiologia
do Vaticano II.
Hoje, a sua expressão mais solene
encontra-se no Sínodo dos
bispos, que, como se
sabe, foi anunciado por Paulo VI enquanto se abria a última
sessão do Concílio.
A literatura registrou diversas perplexidades em relação à efetiva
representatividade do Sínodo em
relação ao colégio episcopal e em relação à natureza consultiva de iure et de facto dessa
cúpula, mas, como ressaltou o Papa Francisco no
dia 18 de outubro de 2015 – justamente na data dos 50 anos da instituição –,
“em uma Igreja sinodal, o Sínodo
dos bispos é apenas a manifestação mais evidente de um
dinamismo de comunhão que inspira todas as decisões eclesiais”.
O papa solicitava, naquela ocasião,
que se “refletisse para realizar ainda mais, através desses órgãos, as
instâncias intermediárias da colegialidade, talvez integrando e atualizando
alguns aspectos do antigo ordenamento eclesiástico”. E, significativamente,
afirmava: “O desejo do Concílio de
que tais órgãos possam contribuir para aumentar o espírito de colegialidade
episcopal não se realizou plenamente. Estamos na metade do caminho, em uma
parte do caminho. Em uma Igreja sinodal, como já afirmei, ‘não convém que o
papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas
que sobressaem nos seus territórios. Neste sentido, sinto a necessidade de
proceder a uma salutar descentralização’”.
O discurso do papa encontra razão
na Lumen gentium, onde é reconhecido às conferências
episcopais o âmbito do qual se pode esperar “uma contribuição múltipla e
fecunda, para que o espírito colegial passe a aplicações concretas” (LG 23).
Além disso, no início do seu pontificado, João Paulo II também
descrevera as conferências episcopais nacionais “como uma das formas em que a
colegialidade episcopal se expressa”. Mas, pouco depois, na vigília do Sínodo
extraordinário de 1985,
começou-se a se perceber, no debate eclesial, uma certa insatisfação: disse-se
que essas estruturas intermediárias enquadram-se entre as instituições de
direito eclesiástico e que, portanto, não são “parte da estrutura ineliminável
da Igreja, como desejada por Cristo”.
Temia-se o fantasma do nacionalismo e
do galicismo para
concluir que eles “têm apenas uma função prática concreta”, e as consequências
dessa incerteza teológica pareceram se fixar na exortação apostólica Pastores gregis,
na qual se afirma que as conferências episcopais “com as suas comissões e
escritórios existem para ajudar os bispos e não para substituí-los, e ainda
menos para constituir uma estrutura intermediária entre a Sé Apostólica e
os bispos individuais”.
Por outro lado, a vivência da antiga
Igreja africana permite reconhecer nas “instâncias intermediárias da
colegialidade” uma expressão verdadeira e real da colegialidade dos bispos,
teologicamente fundamentada.
Viu-se que, para os antigos bispos
africanos, os problemas eclesiais deviam ser resolvidos principalmente dentro
da Igreja local, depois no seio das reuniões episcopais provinciais e, em
última instância, no Concílio plenário
africano. A eles, bastava recordar Cipriano e
a sua firme tomada de posição assumida diante do Papa Cornélio, ao qual
ele lembrava que as polêmicas deviam ser resolvidas onde surgiram.
Em essência, portanto, para o
estudioso patrólogo de Belluno,
“o tecido das relações eclesiais vividas na antiga África cristã,
reconstruídas pelo testemunho de Agostinho,
parecem dar fundamento teológico à descentralização da colegialidade episcopal
desejada pelo atual Bispo de Roma,
permitindo reconhecer às modernas conferências episcopais – regionais,
nacionais e supranacionais – uma capacidade de representar o coetus episcopal,
como ele se concretiza em uma região ou em um continente, sem nada tirar da
unidade e da catolicidade da Igreja cantadas no Salmo 44: una e santa,
mas ‘revestida de uma veste variegada’”.
É claro, não se pode
transplantar sic et
simpliciter os modelos da antiguidade da África cristã do
século IV para a vida da Igreja contemporânea. Porém, hoje, a patrologia,
recusando-se a ser reduzida a “um inútil arqueologismo”, quer ser “um estudo
criativo que ajuda a conhecer melhor os nossos tempos e a preparar o futuro”:
assim indicara, em 1989, a Congregação
para a Educação Católica na Instrução sobre o estudo dos
Padres da Igreja na formação sacerdotal (n. 60).
Daí o propósito do autor do livro de
lançar uma ponte entre as instâncias eclesiológicas contemporâneas e a vida da
Igreja antiga, assim como ela é atestada pelo mais representativo e genial
autor latino da era patrística, na convicção de que o estudo das fontes antigas
é a contínua redescoberta de uma fonte viva, a Tradição da Igreja, que também é
sempre “tam antiqua et
tam nova”.
https://www.ihu.unisinos.br/186-noticias/noticias-2017/571584-agostinho-e-as-raizes-da-sinodalidade
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