IX-SAGRADAS ESCRITURAS
Bíblia,
fonte de espiritualidade
É muito relevante que, em diversas passagens
bíblicas, o próprio conteúdo das escrituras é tomado como fonte e
direcionamento para a vida espiritual e os acontecimentos. Jesus, ao se
encontrar com os discípulos de Emaús, explicou para eles as Escrituras. Isso
quer dizer que, além de recordá-los do que os textos diziam, mostrou que
possuíam um sentido mais profundo para aqueles que conseguiam enxergá-los
espiritualmente.
O próprio Pedro, ao se dirigir ao Sinédrio,
utiliza o texto Sagrado (Sl 117,22) para explicar o sentido dos acontecimentos:
“a pedra que os construtores rejeitaram se tornou pedra angular” (At 4,11).
Deste modo, acontecimentos históricos,
narrativas, orações e diálogos se entrelaçam compondo um grande tecido, ao
mesmo tempo simbólico e real, figurativo e literal. A Palavra de Deus passa a
ser “viva e eficaz, mais penetrante que uma espada de dois gumes” (Hb 4,12). É
o Verbo Divino, é uma Pessoa. Seu objetivo? Santificação e salvação.
Como
já vimos em outro artigo,
o propósito das Sagradas Escrituras é mostrar o caminho da restauração do
homem, isto é, sua santificação. Na quase totalidade das passagens dos
Evangelhos, o sentido moral, aquele que conduz a uma mudança de vida e busca
das virtudes, é bem evidente.
O homem não pode viver apegado ao dinheiro
(Mt 6,24), a vida espiritual é necessária (Mt 4,4), é preciso perdoar sempre
(Mt 18,21-22), o interior é muito mais importante do que o exterior (Mc 7,15),
etc. Mas, em outros livros bíblicos, principalmente do Antigo Testamento, os
sentidos espirituais não são tão evidentes, mesmo o sentido moral.
A Bíblia é um grande
compêndio da vida espiritual
Isso quer dizer que a Bíblia é um grande
compêndio da vida espiritual, com orientações sobre todas as fases do
desenvolvimento da espiritualidade. Claro, como já analisamos, esse conteúdo é
submerso na alegoria e simbologia e só é revelado, por ação do Espírito Santo,
à medida que o fiel se santifica, tornando-se um outro Cristo. Desta forma, a
Bíblia alimenta a espiritualidade que, por sua vez, promove novos entendimentos
da própria Palavra de Deus, tornando o processo vivo e dinâmico.
Os
santos padres dos primeiros séculos entenderam como ninguém esta dinâmica e
desenvolveram explicações não só para os diversos trechos das Escrituras mas,
como vimos no artigo anterior , para livros inteiros da Bíblia. No
exemplo citado, o Livro de Rute é a história da Alma dócil à vontade de Deus e
que busca se unir com o seu senhor, o Cristo.
Isso é o que se passa com os chamados Livros
Sapienciais: Provérbios, Eclesiastes e Cântico dos Cânticos. Eles são lidos e
entendidos como três fases diferentes e consecutivas da vida espiritual.
O Livro dos Provérbios e a Vida Purgativa
O
início da vida espiritual é também chamado de primeira via (caminho) ou via purgativa. É o momento de se purgar (limpar,
purificar) dos pecados, dos vícios, dos sentimentos e atitudes que nos afastam
de Deus. Na linguagem de São Paulo, é o momento de acabar com o homem velho
para que o homem novo, aquele restaurado pelo batismo em Cristo possa se
desenvolver.
Que guia melhor para esse processo de
conversão pessoal que o Livro dos Provérbios? Utilizando-se de sentenças
diretas, com foco orientativo e moral, esse livro promove uma verdadeira
correção de vida “para conhecer a sabedoria e a instrução, para compreender as
palavras sensatas, para adquirir as lições do bom senso, da justiça, da equidade
e da retidão; para dar aos simples o discernimento, ao adolescente a ciência e
a reflexão” (Pr 1, 2-4).
Fica
a sugestão: se você nunca leu o Livro dos Provérbios, leia e medite cada
sentença. O início da vida espiritual não é o momento de se ocupar com sentidos
espirituais profundos, é a hora de corrigir os comportamentos e adquirir
as virtudes através
dos ensinamentos morais. E, que fique claro, o “início” da vida espiritual não
é medido cronologicamente. Se você ainda luta para se desvencilhar dos pecados
mortais diariamente, vive um eterno “cai e levanta”, tentando adquirir firmeza
nos Sacramentos, não importa quantas décadas você está próximo da Igreja Católica.
Isso é o início da vida espiritual.
O Eclesiastes e a Vida Iluminativa
Logo após o Livro dos Provérbios, encontramos
o Eclesiastes. Outro livro sapiencial ou poético que pode ser entendido como
sequência espiritual do livro anterior.
O
Eclesiastes está ligado à segunda fase da Vida Espiritual, também chamada
de Via Iluminativa. É o momento do verdadeiro discipulado de
Cristo. Se, na Via Purgativa, o principal foco é viver plenamente os
mandamentos de Deus e adquirir as virtudes básicas da paciência e da
temperança, a Via Iluminativa é o momento de se assumir e colocar em prática os
conselhos evangélicos. Aqueles que Jesus deu aprofundando a lei e os profetas
através dos quatro evangelistas e que lembramos alguns deles no quinto
parágrafo deste artigo.
Mas, se formos falar da essência do
Eclesiastes, poderíamos resumi-lo em “tudo [que não se refere a Deus ou a vida
espiritual] é vaidade” (Ecl 1,2). Ele possui uma linguagem poética mais
profunda que os Provérbios. Afinal, não é um livro para se ensinar o que fazer,
mas como se posicionar perante o mundo. Não é como “fazer”, mas como “ser”.
Também
por isso essa segunda parte da vida espiritual é chamada de Iluminativa. A luz
precisa entrar e revelar todas as coisas… revelar os caminhos a seguir, revelar
o que estava escondido e precisa ser corrigido. O Livro dos Eclesiastes é
perfeito para aqueles que estão neste momento de se aprofundar no seguimento a
Cristo! Vencida a luta constante e sem tréguas contra o pecado mortal,
apaziguadas as paixões e tendências aos vícios,
vem a grande, constante e ininterrupta permanência em Cristo (Jo 15,4). Saímos
do campo da negação, entramos na afirmação. E todos sabem que construir demora
muito mais que demolir.
O auge do amor no Cântico dos Cânticos
O terceiro livro poético ou sapiencial é o
Cântico dos Cânticos. Seus simbolismos e a profundidade de seus sentidos
espirituais escandalizaram e continuam escandalizando a todos aqueles que só
conseguem fazer uma leitura superficial e literal da Bíblia.
Mas,
não se trata de um livro erótico ou com sugestões indecentes. Ele é a
explicação das fases que envolvem a terceira e mais alta fase da Vida
Espiritual: a Via Unitiva. Limpo dos pecados e paixões, orientado sobre a
verdadeira permanência em Cristo, chegou o momento de se unir em plenitude com
o Cristo (Jo 17,21).
.:A Bíblia deve ser lida e interpretada conforme o Espírito que a
inspirou
É nítida a preferência dos
grandes místicos católicos pelo Cântico dos Cânticos. Santa Teresa d’Ávila, São
João da Cruz, São Francisco de Salles e tantos outros só encontraram as
palavras certas para explicar e se referir à plena união de santidade com Deus nas linhas deste livro.
Não se engane, não é uma leitura para
principiantes. Sua densidade só pode ser comparada ao Apocalipse de São João.
Mas, para vermos a profundidade dos seus sentidos espirituais, vamos citar um
exemplo de uma das linguagens que causam escândalo e incompreensão: O noivo,
apaixonado, chama sua amada de “minha irmã, minha noiva!” (Ct 4, 9-10).
As Sagadas Escrituras são um caminho escolhido por Deus para
falar aos homens
Como vimos, essas passagens bíblicas são
geralmente interpretadas com 4 respostas rápidas e absurdas: 1. é um erro de
tradução; 2. o autor escreveu isso, mas não quis dizer isso; 3. naquela época
era assim mesmo e irmão casava com irmã e 4. o livro foi escrito por homens e
os homens às vezes erram e se confundem. Isso, para não citar os que ainda
distorcem muito mais a Palavra de Deus e prontamente interpretam: a Bíblia está
autorizando o casamento consanguíneo…
Lembremos
que as Sagradas Escrituras falam de realidades espirituais e tratam, sempre, da
santificação e salvação do homem. Para os verdadeiros intérpretes da Palavra,
os que vivem sob a ação do Espírito Santo e não sob teologias e teorias “da moda”, o Cântico
dos Cânticos trata da última e mais proeminente fase da vida espiritual, aquela
que os místicos carmelitas chamaram de Matrimônio Espiritual.
O
noivo, esposo, amante, dos Cânticos é o próprio Cristo, a quem devemos nos unir
(Jo 17,21) e permanecer unidos (Jo 15,4). A amada é a alma de cada ser humano,
por quem Cristo deu até a sua última gota de sangue para salvar através de sua
Paixão, Morte e Ressurreição. Assim, ela é irmã pois, pela Encarnação, Cristo se tornou um de nós e nos fez filhos de Deus,
como “primogênito entre uma multidão de irmãos” (Rm 8,29). Mas, também é amada,
também precisa se tornar esposa como já citamos várias vezes.
Espero que, a partir de agora, faça uma
experiência diferente e cada vez mais profunda com a Palavra de Deus. Afinal,
Ele quer falar conosco, quer ser íntimo, quer nos apoiar e conduzir. Um dos
caminhos que Ele mesmo escolheu para realizar todas essas coisas são as
Sagradas Escrituras.
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