REFLEXÃO
DOMINICAL II: 23° DOMINGO DO TEMPO COMUM- O DEUS
QUE LIBERTA E FAZ OPÇÃO PELOS POBRES
Por Francisco Cornélio Freire Rodrigues*
I. INTRODUÇÃO GERAL
Neste primeiro domingo do Mês
da Bíblia, a liturgia evidencia o cuidado de Deus com a vida e a força
libertadora da sua Palavra, cuja expressão máxima é Jesus de Nazaré e sua
práxis. Isso mostra que Deus tem um projeto de libertação e vida plena para a
humanidade e, também, que cada pessoa é chamada a participar desse projeto,
abrindo-se à escuta da Palavra e fazendo das opções de Deus as suas,
especialmente no compromisso com os pobres e marginalizados, como fez Jesus.
Todas as leituras deste domingo
recordam esse projeto libertador de Deus. Na primeira, o profeta injeta coragem
e esperança no povo exilado na Babilônia, anunciando o fim do cativeiro e o
retorno à terra, com imagens que descrevem a restauração da vida, tanto do ser
humano quanto da natureza. O Evangelho mostra o cumprimento do anúncio
profético por Jesus – com a cura de um homem surdo que falava com dificuldade
–, atestando a qualidade da sua messianidade. A segunda leitura recorda que não
há contradição entre a imparcialidade de Deus e a opção preferencial pelos
pobres, e esse deve ser o parâmetro do agir cristão. O salmo é uma síntese
poética de cada leitura.
II.
COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Is 35,4-7a)
A primeira parte do grande
livro de Isaías, chamada convencionalmente pelos estudiosos de “Primeiro
Isaías” (Is 1-39), é obra do Isaías clássico, um profeta que exerceu seu
ministério em Jerusalém, antes do exílio, provavelmente entre os anos 740 e 700
a.C. Contudo, essa obra possui duas seções de estilo apocalíptico (Is 24-27;
34-35), chamadas respectivamente de grande e pequeno apocalipse, que remontam
ao final do exílio, pertencendo originalmente à segunda parte do livro,
denominada de “Segundo Isaías” (Is 40-55). Tirada do pequeno apocalipse, a
primeira leitura é um hino de restauração que anuncia a intervenção de Deus em
favor do seu povo exilado na Babilônia.
O anúncio profético contempla,
inicialmente, um convite à coragem e à esperança (v. 4). Isso porque, embora
esteja próxima, a libertação não é imediata. Por isso, é importante que o povo
mantenha viva a fé e o espírito de resistência. A opressão torna as pessoas
deprimidas, mas é certo que Deus vem em seu socorro, para salvar. A salvação,
aqui, consiste no fim do exílio. A vingança anunciada nada tem que ver com
violência ou ira: significa a reivindicação do direito dos pobres e oprimidos.
E é Deus quem faz isso, restabelecendo a justiça, que, neste caso, é a
libertação do seu povo. Obviamente, isso passa pelo desmonte dos instrumentos
de opressão – no caso, o Império Babilônico.
Na sequência, são descritos os
efeitos da intervenção libertadora de Deus com imagens que representam a
restauração total da vida, começando pelo ser humano. A cura de doenças e a
superação de deficiências são sinais de vida nova (v. 5-6a), interpretados mais
tarde como a chegada dos tempos messiânicos. A intervenção de Deus comporta
também a renovação da natureza, com a transformação do deserto em jardim (v.
6b-7a). A mensagem de esperança do profeta encontra seu cumprimento na vida e
obra de Jesus de Nazaré, como mostra o Evangelho. Isso confirma que ele é o
verdadeiro Messias e realizador do projeto libertador de Deus, seu Pai.
2. II leitura (Tg 2,1-5)
Continua a leitura da carta de
Tiago, que foi iniciada no domingo passado e continuará nos próximos três
domingos. Trata-se de um escrito do final do primeiro século, dirigido a
comunidades cristãs de fora da Palestina, chamadas simbolicamente de “as doze
tribos da diáspora” (Tg 1,1). A autodenominação do autor como Tiago é
pseudônima. As características da carta não apontam para nenhum dos quatro
personagens neotestamentários com esse nome, a saber: o filho de Zebedeu (Mc
1,19), o filho de Alfeu (Mc 3,18), o irmão do Senhor (Gl 1,19) e o pai de Judas
Tadeu (Lc 6,16). O local da redação também é desconhecido, sendo mais prováveis
as cidades de Alexandria ou Antioquia.
O trecho lido nesta liturgia –
como, aliás, toda a carta – chama a atenção para a relação entre fé e vida, recordando
a imparcialidade de Deus e a opção preferencial pelos pobres. De praxe, as
sociedades costumam privilegiar as pessoas ricas, favorecendo-as das mais
diversas maneiras. O autor recorda que essa prática é inaceitável na comunidade
cristã, uma vez que a fé em Jesus Cristo não admite acepção de pessoas (v. 1).
Aqui, fazer acepção de pessoas significa privilegiar os ricos, favorecê-los por
causa das aparências e da condição social, como o autor ilustra com um exemplo
bem concreto (2-4). Fazer isso é ignorar a opção preferencial que Deus já fez
pelos pobres (v. 5). Embora pareça contraditório, é assim que funciona a
imparcialidade de Deus: ele ama a todos indistintamente, mas seus cuidados se
voltam especialmente para os pobres e marginalizados, muitas vezes vítimas das
injustiças e da ganância dos ricos. E assim deve ser o agir cristão, como foi o
agir de Jesus de Nazaré.
3. Evangelho (Mc 7,31-37)
Ao ensinar que nenhum elemento
externo pode tornar o ser humano impuro, mas somente o que é gerado no coração
(Mc 7,1-23), Jesus declarou o fim das barreiras que impediam o encontro e a
convivência fraterna com as pessoas de etnias, religiões e culturas diferentes.
Por isso, fez uma campanha missionária em terras pagãs (Mc 7,24-8,10),
cumprindo, também ali, sinais semelhantes aos já cumpridos na Galileia, com
destaque para a cura de um surdo-mudo, episódio correspondente ao Evangelho
deste domingo. Exclusivo de Marcos, o episódio é paradigmático: revela o
cuidado e o zelo de Jesus para com o ser humano, obra-prima da criação, com seu
amor inclusivo.
O primeiro elemento relevante
do texto é o indicativo geográfico: a passagem de Jesus por Tiro e Sidônia e
pela Decápole, terras pagãs, não sujeitas à Lei judaica (v. 31). A Decápole era
uma espécie de confederação de dez cidades de cultura grega localizadas a leste
do mar da Galileia. A atuação de Jesus nessa região indica o universalismo da
sua mensagem. Na sequência, vem apresentado o destinatário imediato dessa
mensagem: um homem surdo, que falava com dificuldade (v. 32). A surdez era
sinônimo de maldição, conforme a mentalidade da época, pois impedia a pessoa de
ouvir a proclamação e a explicação da Palavra de Deus. Ora, sem ouvir a
Palavra, o ser humano estava perdido, sem rumo.
A acolhida de Jesus revela
verdadeira pedagogia do cuidado: ele olha para cada um em particular e age de
acordo com as reais necessidades (v. 33). Os gestos descritos pelo evangelista
são muito significativos: Jesus toca nos ouvidos, cospe e, com a saliva, toca a
língua do homem. Ao tocar, deixa sua marca no outro, transmite sua essência.
Tocando nos ouvidos, doou o dom da escuta do Evangelho; tocando a língua,
capacitou o homem também para o anúncio. Para a mentalidade semita, a saliva
continha o espírito da pessoa; fazendo isso, Jesus transmitiu seu espírito
vivificador àquele homem, restituindo-lhe a dignidade e tornando-o apto para
anunciar seu Evangelho.
Toda a obra restauradora de Jesus é realizada em profunda
comunhão com o Pai; é esse o significado do gesto de olhar para o céu (v. 34a).
Em seguida, ele dá o comando: “Abre-te!” – efatá, em aramaico (v. 34b). Essa ordem é dirigida à
pessoa em sua inteireza, e não apenas aos sentidos com deficiência. Significa
um abrir completo, como deve ser toda pessoa diante do Evangelho. É fruto da
força libertadora da palavra de Jesus, como mostra a sequência do texto (v.
35). O encontro pessoal com ele transforma; quem se deixa tocar por ele e se
abre à escuta da sua palavra, muda radicalmente. É preciso ter ouvidos abertos
e atentos para ouvir e a língua livre para anunciar. Apesar de nunca ser
atendido, Jesus costumava pedir segredo quando cumpria um gesto prodigioso (v.
36), principalmente em Marcos, que tem o segredo messiânico como um dos temas
mais relevantes.
A conclusão do texto atesta a
qualidade da obra de Jesus, associando-a diretamente à criação (v. 37). Com
efeito, fazer bem todas as coisas é a característica do Deus criador, que, ao
final de cada obra criada, contemplava que aquilo era muito bom (Gn 1). Fazer
bem as coisas é, portanto, agir como Deus. Fazer os surdos ouvir e os mudos
falar é a realização das expectativas messiânicas, conforme a mensagem da
primeira leitura. Assim, Jesus renova a criação do seu Pai, comunicando vida em
abundância à humanidade e tendo as pessoas mais necessitadas e excluídas como
primeiras destinatárias.
III. PISTAS
PARA REFLEXÃO
Mostrar a relação entre as três
leituras, destacando o cuidado de Deus com a criação inteira e a plenitude
desse cuidado na obra de Jesus. Recordar que o amor universal de Deus não contradiz
a opção preferencial pelas pessoas mais necessitadas. Enfatizar a importância e
a atualidade do imperativo “abre-te” e, como um convite à vivência do Mês da
Bíblia, ressaltar que é preciso abrir-se à leitura e ao estudo da Palavra de
Deus e deixar-se transformar por ela.
Francisco Cornélio Freire Rodrigues*
*é presbítero da diocese de Mossoró-RN.
Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso
D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano
de Filosofia (Insaf), no Recife, e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio
Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na
Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN).
E-mail: francornelio@gmail.com
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/23-domingo-do-tempo-comum-5-de-setembro/
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