VIII-REFLEXÃO DOMINICAL II:
29º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Por Francisco Cornélio Freire Rodrigues*
Serviço e doação, sem
ambição
I.
INTRODUÇÃO GERAL
A
liturgia deste domingo recorda o serviço e a doação de si mesmo como síntese da
missão de Jesus e, consequentemente, como exigências indispensáveis para seu
discipulado em todos os tempos. Outrossim, chama a atenção para posturas e
atitudes inaceitáveis na comunidade dos seus seguidores e seguidoras, como a
ambição, as rivalidades e a sede de poder. Isso é evidenciado, sobretudo, no
Evangelho, o qual é preparado pela primeira leitura: a figura do servo
sofredor, que oferece a vida em expiação para tornar justo todo o povo,
prefigura o destino de Jesus, o Filho do Homem que veio para servir e dar a
vida em resgate de muitos. A segunda leitura apresenta Jesus como sumo
sacerdote e perfeito mediador: nele encontramos misericórdia e compaixão, pois
ele conhece nossas fraquezas, uma vez que, por fidelidade ao Pai e amor à
humanidade, foi provado em tudo como nós, exceto no pecado.
II.
COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
I
leitura (Is 53,10-11)
A
primeira leitura é um fragmento do quarto cântico do servo do Senhor (Is
52,13-53,12), um texto que pertence ao “livro da consolação” (Is 40-55). Essa
obra corresponde à segunda parte do grande livro de Isaías e é atribuída a um
profeta e poeta anônimo, chamado pelos estudiosos de “Segundo Isaías” ou
“Dêutero-Isaías”, que exerceu sua missão profética junto aos exilados na
Babilônia, já no final do exílio (anos 550 a 539 a.C.). O livro surgiu com o
objetivo de transmitir consolo e esperança de libertação a um povo cansado e
abatido diante de tanta opressão. A propósito, os cânticos do servo, sobretudo
o terceiro e o quarto, contêm as melhores descrições simbólicas dessa situação,
o que tem levado a maioria dos estudiosos a ver o servo como uma figura
coletiva: é a imagem do povo de Israel exilado, especificamente o resto que
permaneceu fiel à Aliança, não obstante as inúmeras provações.
O texto desta liturgia recorda o sofrimento
do servo, com seus efeitos positivos. O profeta concebe o sofrimento como a
realização da vontade do Senhor (v. 10a), tendo em vista os efeitos salvíficos,
e não como um fim em si mesmo. É óbvio que Deus não se apraz com o sofrimento
de ninguém; mas sabe reverter a situação em benefício da libertação. A pessoa
justa sofre porque sua maneira de viver é a mais eficaz denúncia das estruturas
e sistemas que geram injustiças e morte. A vida oferecida como expiação, sinal
de total adesão à vontade do Senhor, é garantia de descendência duradoura
(10b), o que ratifica a fidelidade de Deus, pois a descendência é uma de suas
mais clássicas promessas (Gn 21,12; 22,17; Dt 4,40). No contexto do exílio,
essas palavras possuem um significado muito importante, tornando-se convite à
resistência. Somente um povo resistente e fiel ao Senhor poderia garantir
descendência. Por isso, oferecendo-se em expiação, o servo cumpre com êxito a
vontade do Senhor e sua própria missão (v. 10c).
O efeito principal da vida de sofrimento do
servo, por fidelidade a Deus, é a justificação do povo (v. 11). A expressão
“inúmeros homens” significa a totalidade do povo de Deus e um aceno
universalista. Sofrer pelos outros, carregando suas culpas, é a expressão
máxima de serviço e doação desinteressados, como Jesus fez e espera que também
o façam seus seguidores. Por isso, o quarto cântico do servo é o que melhor
prefigura a vida e a missão de Jesus.
1.
II leitura (Hb 4,14-16)
A
segunda leitura continua a ser tirada da carta aos Hebreus. O breve trecho
corresponde ao início da segunda parte da obra (Hb 4,14-10,31), cujo tema
central é o sacerdócio de Jesus Cristo. Saliente-se que a carta aos Hebreus é o
único livro do Novo Testamento que apresenta explicitamente Jesus como sumo
sacerdote, e a passagem lida neste domingo pode ser considerada uma síntese de
toda a obra.
O texto começa com uma afirmação, seguida de
uma exortação: Jesus, o Filho de Deus, é o sumo sacerdote que entrou no céu (v.
14a). Ora, no culto da Antiga Aliança, o espaço máximo onde o sacerdote podia
entrar era o Santo dos Santos, considerado a morada de Deus na terra e, por
isso, o espaço mais sagrado do templo; entrava-se nele apenas uma vez por ano.
Está clara, portanto, a perfeição da mediação do sacerdócio de Jesus, pois ele
está definitivamente no mundo de Deus, e não apenas ocasionalmente. A exortação
à perseverança na profissão de fé (v. 14b) indica o contexto de crise e
perseguição nas comunidades destinatárias, com a consequente tendência ao
desânimo.
A pertença de Jesus ao mundo de Deus, no
entanto, não significa desconhecimento nem distância dos problemas que afligem
a humanidade, pois, tendo assumido a condição humana em plenitude, ele passou
pelo sofrimento e pela morte; foi provado como nós em tudo, exceto no pecado
(v. 15). Isso faz dele o exemplo máximo de serviço e doação. Por conseguinte,
devemos nos aproximar de Jesus com toda a confiança, na certeza de que nele
encontramos misericórdia e compaixão (v. 16).
2.
Evangelho (Mc 10,35-45)
O Evangelho continua
ambientado no contexto do caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém.
Mais do que mero deslocamento físico, esse caminho é um itinerário teológico e
catequético, no qual Jesus instrui seus discípulos, com maior clareza, sobre
sua identidade e sobre as exigências que seu seguimento comporta.
Paradoxalmente, é no caminho que os discípulos demonstram maior incompreensão e
resistência ao que Jesus ensina.
O texto é a sequência imediata do terceiro
anúncio da paixão (Mc 10,32-34). Trata-se do absurdo pedido dos discípulos
irmãos, Tiago e João, para ocuparem os primeiros lugares na glória: um à
direita e outro à esquerda de Jesus, numa demonstração clara de ambição e sede
de poder (v. 35-37). Esse é um episódio bastante polêmico e comprometedor para
a imagem dos primeiros discípulos, registrado dessa maneira somente por um
evangelista tão realista como Marcos. Por isso, Lucas preferiu omiti-lo, e
Mateus o modificou, apresentando a mãe dos discípulos como a autora do pedido
(Mt 20,20-23). Chamados de “filhos do trovão” (Mc 3,17), em alusão ao seu
comportamento intolerante e ambicioso, Tiago e João, junto com Pedro, são os
discípulos mais evidenciados nos Evangelhos sinóticos, não pelos méritos, mas
pelas contradições. Além da ambição, o pedido revela a visão equivocada da
messianidade de Jesus. Os discípulos não aceitavam um Messias sofredor;
continuavam a alimentar as expectativas por um Messias glorioso e potente,
conforme as tradições de Israel.
Diante da incompreensão dos discípulos, Jesus
aprofunda a catequese. Primeiro, denuncia a ignorância deles (v. 38a); em
seguida, provoca-os sobre a disposição de compartilhar a vida, sintetizada
pelas imagens do cálice e do batismo (v. 38bc): o batismo alude ao início da
missão (Mc 1,8-11), enquanto o cálice antecipa a paixão (Mc 14,23.36). Isso
quer dizer que ser discípulo(a) de Jesus exige conformar-se à sua vida em tudo,
incluindo a capacidade de dar a vida. A resposta dos discípulos é positiva, mas
não suficiente para garantir o que desejam (v. 39-40). A disposição para
abraçar o seguimento de Jesus e assumir suas consequências não pode estar
atrelada à obtenção de recompensas. O arranjo dos lugares na glória futura é um
dom gratuito do Pai, e não conquista pessoal.
A ambição gera rivalidades, causando a
divisão da comunidade (v. 41). Na medida em que os projetos individuais são
evidenciados, a unidade é quebrada. Por isso, Jesus convoca uma reunião para
mostrar seu projeto com maior clareza ainda, procurando deixar claro o quanto
este é diferente de qualquer projeto humano de poder (v. 42). Tendo
negligenciado os três anúncios da paixão, os discípulos tinham como parâmetro
os modelos vigentes de poder, marcados pelo domínio e pela tirania, o que é
incompatível com o seguimento de Jesus. Por isso, ele apresenta o modelo a ser
seguido pela comunidade dos seus seguidores: o serviço. É necessário passar de
um modelo baseado na imposição para novo paradigma, baseado no serviço, tendo
em vista a igualdade e o bem de todos (v. 43-44).
Portanto, o referencial para a comunidade
cristã não pode ser outro senão o próprio Jesus, o Filho do Homem, que veio
para servir e dar a vida em resgate de muitos (v. 45). Ele próprio é o exemplo
de que a autoridade autêntica deve ser exercida por meio do serviço
incondicional, contemplando a capacidade de dar a própria vida. Qualquer
tentativa ou experiência na comunidade que tenham como parâmetro “os reinos
deste mundo” fazem essa comunidade deixar de ser cristã.
III.
PISTAS PARA REFLEXÃO
Refletir
sobre as três leituras, apresentando a relação temática entre elas. Enfatizar o
serviço como o mais eficaz sinal de identificação com o projeto de Jesus.
Provocar uma reflexão crítica na comunidade, especialmente nos movimentos e
serviços, sobre a maneira de exercer a liderança, mostrando o quanto a ambição,
o espírito de competição, as rivalidades e o autoritarismo desviam a comunidade
do Evangelho de Jesus.
Francisco
Cornélio Freire Rodrigues*
*é presbítero da
diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia
Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia
pelo Instituto Salesiano de Filosofia (Insaf), no Recife, e bacharel em
Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de
Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte
(Mossoró-RN). E-mail: francornelio@gmail.com
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/29o-domingo-do-tempo-comum-17-de-outubro/
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