VIII-REFLEXÃO DOMINICAL II:28º DOMINGO
DO TEMPO COMUM –
Viver
com sabedoria, segundo a Palavra
Por Francisco Cornélio Freire Rodrigues*
I.
INTRODUÇÃO GERAL
A liturgia deste domingo constitui
verdadeiro convite à reflexão e ao discernimento acerca do que é essencial e
pode, de fato, dar sentido à existência. Em forma de elogio, o autor da
primeira leitura declara a sabedoria superior a todos os bens da terra;
comparados a ela, o poder e as riquezas são insignificantes. No Evangelho,
Jesus é interpelado por um homem muito rico, obediente aos mandamentos e
sedento de vida eterna, mas incapaz de renunciar ao que o impede de ganhá-la:
as riquezas. Com base no colóquio com aquele homem, Jesus aprofunda a catequese
sobre a necessidade do desapego aos bens para um autêntico discipulado. A segunda
leitura é um elogio à Palavra de Deus: é viva e eficaz, por isso interpelante e
performativa; logo, quem se deixa orientar por ela alcança a verdadeira
sabedoria e torna-se apto ao seguimento radical de Jesus. O salmo segue a mesma
linha, ensinando-nos a pedir ao Senhor o que é essencial: “dai ao nosso coração
sabedoria!” (Sl 89,12).
II.
COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1.
I leitura (Sb 7,7-11)
A primeira leitura é tirada do livro da Sabedoria, cuja autoria
foi atribuída a Salomão, mediante o recurso literário da pseudonímia, a fim de
conferir prestígio e autoridade ao escrito, uma vez que Salomão era o protótipo
de homem sábio em Israel. Cronologicamente, é o último livro do Antigo
Testamento. Foi escrito já no final do século I a.C. por um erudito judeu, da
cidade de Alexandria do Egito, com o objetivo de reforçar a fé e as tradições
de Israel, que estavam ameaçadas devido à influência exercida pela cultura
grega sobre as novas gerações de judeus. Tanto assim que havia até perseguição:
os judeus que não aderiam aos costumes gregos eram publicamente hostilizados.
Daí a importância desse livro, com a função de estimular a fidelidade e a
resistência do povo.
O trecho lido neste domingo
pertence à segunda parte do livro (Sb 6-9), conhecida como o “elogio da
sabedoria” e considerada o coração da obra. Foi inspirado no clássico episódio
do sonho de Gabaon (1Rs 3,5-15), no qual o Senhor concedeu a Salomão a
oportunidade de pedir qualquer coisa, que lhe seria dada; então, em vez de
pedir riqueza e glória, o jovem rei pediu sabedoria para governar seu povo com
justiça. Em estilo autobiográfico, o Pseudo-Salomão reconta essa experiência.
Ele recebeu a prudência e o espírito da sabedoria como frutos da oração e da
súplica (v. 7); trata-se de afirmação muito importante, pois apresenta a
sabedoria como dom de Deus, e não como atividade do intelecto, conforme a
concepção da filosofia grega. A sabedoria é, acima de tudo, a arte de viver
bem; para a mentalidade judaica, isso consiste na observância da Lei e na
capacidade de discernir entre o bem e o mal, escolhendo sempre o bem que conduz
à verdadeira felicidade. Por isso, ela é preferível a tudo; qualquer coisa comparada
a ela é insignificante, como o poder, a riqueza, os metais preciosos e até
mesmo a saúde e a beleza (v. 8-10).
O reconhecimento do valor
inestimável da sabedoria não significa, contudo, desprezo pelos bens e dons a
ela comparados. Quer dizer apenas que ela deve ser preferida a tudo. Ao invés
de opor-se aos bens, ela é sua fonte (v. 11). Por isso, deve ser buscada acima
de tudo, pois sem ela nada tem sentido.
2.
II leitura (Hb 4,12-13)
Continuamos a leitura da carta aos Hebreus,
iniciada no domingo passado. O breve trecho lido nesta liturgia é a conclusão
da primeira parte do livro (1,5-4,13). Trata-se de um elogio à Palavra de Deus.
Logo, possui um significado muito importante, ainda mais quando se considera a
função pastoral da obra: animar comunidades em crise de fé e esperança. Em
contextos assim, nada mais justo do que recordar a potência vivificante da
Palavra de Deus, fundamento e alimento da fé.
Empregando imagens bastante
interpelantes, o autor descreve a Palavra de Deus com cinco características que
revelam sua força performativa: viva e eficaz, cortante e penetrante, e
judicante (v. 12). A Palavra de Deus é viva e eficaz porque comunica vida e
realiza os propósitos para os quais é enviada (Is 55,10-11); por meio dela,
Deus age falando, desde a criação. Sendo mais cortante do que uma espada de
dois gumes, ela penetra no mais íntimo do ser da pessoa a quem é destinada.
Isso quer dizer que confronta todas as dimensões da vida e nada escapa ao seu
alcance. Não permite neutralidade; quem a recebe, deve tomar uma posição a
favor ou contra. Por isso, ela é também juiz: confrontada aos sentimentos e
emoções, denuncia as incoerências e hipocrisia de quem não a acolhe com
sinceridade.
Para o autor, a Palavra é o
próprio agir de Deus na história, cuja expressão máxima é a pessoa de Jesus, o
Filho, que é a Palavra definitiva (Hb 1,1-2). Prestar contas a ela, portanto,
significa confrontar-se com a vida de Jesus de Nazaré (v. 13), a Palavra
encarnada e fonte de sabedoria. Quem acolhe essa Palavra, obviamente, alcança a
verdadeira sabedoria.
3.
Evangelho (Mc 10,17-30)
O Evangelho deste domingo continua inserido
no contexto do caminho de Jesus com os discípulos para Jerusalém. Esse caminho
é, antes de tudo, um itinerário teológico e catequético. Por isso, enquanto
caminha, Jesus é interrompido diversas vezes por várias categorias de
interlocutores, que lhe fazem perguntas relevantes sobre a Lei, o Reino de
Deus, as condições para o discipulado e questões do cotidiano.
Enquanto Jesus caminhava,
alguém correu ao seu encontro (v. 17). A versão de Mateus desse episódio diz
que era um jovem (Mt 19,22). Para Marcos, era apenas alguém. E alguém carente
de sentido para a existência; a postura e a pergunta evidenciam isso, apesar
de, paradoxalmente, tratar-se de um homem muito rico e fiel aos mandamentos (v.
20.22). Ele ajoelhou-se e perguntou o que fazer para ganhar a vida eterna. Até
então, na obra de Marcos, somente um doente de pele tinha se ajoelhado aos pés
de Jesus, suplicando-lhe a cura (Mc 1,40); quer dizer que esse alguém do
episódio deste domingo tinha um mal equivalente à doença que então se
denominava lepra (a pior das enfermidades conhecidas na época): o apego às
riquezas. A pergunta revela que o homem buscava sentido para a existência. A
vida eterna, aqui, mais do que uma vida pós-morte, significa o sentido da vida
presente; quem encontra sentido para a vida aqui eterniza sua existência.
Para a mentalidade judaica, a
observância dos mandamentos já era suficiente para a vida ter sentido. Jesus,
porém, mostra que essa visão está superada; é necessário algo mais: vender
tudo, dar aos pobres e segui-lo (v. 21). Ele não diz isso como imposição, mas
como proposta de amor. Contudo, aquele homem não estava pronto para isso; não
assimilou o olhar amoroso de Jesus nem sua proposta. Por isso, saiu triste do
encontro (v. 22). Assim, o evangelista mostra que é mais fácil a cura da doença
então conhecida como lepra do que o desapego aos bens.
Após o diálogo com o
desconhecido, Jesus se volta para os discípulos (v. 23-24), os mais
necessitados de assimilar sua mensagem. Com eles, o discurso já não se limita à
vida eterna, mas passa ao Reino de Deus e às exigências para entrar nele.
Entrar no Reino é difícil porque exige adesão incondicional. Para os ricos, é
ainda mais difícil, tendo em vista a necessidade maior de renúncias, como Jesus
expressa com um provérbio tão hiperbólico: “É mais fácil um camelo passar pelo
buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!” (v. 25). Diversas
tentativas de interpretação foram sugeridas para suavizar o impacto dessa
afirmação. Chegou-se a afirmar que o “camelo” era um tipo de corda grossa e que
o “buraco da agulha” era uma porta estreita num muro de Jerusalém. Ler dessa
forma é distorcer a mensagem. Jesus gostava de imagens fortes, deixando seus
seguidores perplexos (v. 26). Ademais, a história da salvação é marcada por
diversos acontecimentos aparentemente impossíveis, mas realizados com a graça
de Deus, para quem nada é impossível (v. 27). Logo, não é impossível a entrada
dos ricos no Reino de Deus. Contudo, não será possível se não assimilarem a
lógica da partilha e do desapego.
A incompreensão dos discípulos
se torna evidente na fala oportunista de Pedro (v. 28). De fato, Jesus os
conhecia e sabia o que cada um tinha deixado para o seguir. “Casa, irmãos,
irmãs, mães, filhos e campos” são imagens do que é caro e essencial na vida.
Para seguir Jesus com fidelidade, é necessário desapegar-se do que é mais
importante. Quem o segue, porém, não fica sem o essencial. Por isso, Jesus elenca
as coisas que devem ser deixadas e a seguir as repete, como as mesmas que serão
dadas aos seus seguidores (v. 29-30). Assim, ensina que nada falta a quem deixa
tudo por causa sua e do Evangelho. A verdadeira sabedoria consiste na
assimilação dessa lógica.
III.
PISTAS PARA REFLEXÃO
Explicar
bem as leituras, mostrando a coerência entre elas. Apresentar a preferência
pela sabedoria como prefiguração da adesão radical exigida para o seguimento de
Jesus. Provocar uma reflexão crítica sobre os efeitos produzidos pela Palavra
de Deus na comunidade e na vida de cada um.
Francisco Cornélio Freire Rodrigues*
*é
presbítero da diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela
Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia
pelo Instituto Salesiano de Filosofia (Insaf), no Recife, e bacharel em
Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de
Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte
(Mossoró-RN). E-mail: francornelio@gmail.com
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/28o-domingo-do-tempo-comum-10-de-outubro/
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