sábado, 5 de outubro de 2024

XIX-REFLEXÕES DE UM PAI, AVÔ E PSICÓLOGO...06 de Outubro de 2024 Lindolivo Soares Moura(*)

 

 

 

XIX-REFLEXÕES DE UM PAI, AVÔ E PSICÓLOGO...06 de Outubro de 2024

Lindolivo Soares Moura(*)

Oi minha linda, como vai você? Feliz, alegre e de bem com a vida como deve ser? Digo "deve" porque todos nós, ao menos em princípio, precisamos acreditar que para isso fomos criados; caso contrário a vida não parece fazer nenhum sentido, concorda comigo? É verdade que por vezes, ou mesmo em determinadas fases de nossa vida, nem sempre as coisas acontecem como esperamos ou imaginamos que deveria ser; mas isso não deve ser razão suficiente para que o princípio seja invertido. Regra é regra, exceção é exceção, princípio é princípio. E a experiência tem mostrado que por mais provações, sofrimentos e desafios que a vida nos imponha, ela é e será sempre um verdadeiro show, um maravilhoso espetáculo. Quando o instinto de morte prevalece sobre o instinto de vida, é sinal de que há algo de errado "roubando" a cena; nesse caso é preciso fazer terapia. Claro que uma determinada etapa da vida pode ser mais delicada e complexa que as outras; a adolescência, por exemplo, pode trazer incômodos e desconfortos bastante específicos, como veremos daqui a pouco, para com os quais é preciso serenidade e sabedoria para lidar. Já ouviu falar da "Guernica" de Picasso, famoso pintor espanhol? Assim como a "Monalisa", do italiano Leonardo da Vinci, é uma obra realmente diferenciada. Nela as partes do corpo - pernas, braços, tronco e cabeça - estão todas totalmente fora de lugar. Lembrei-me dela porque não consigo evitar a comparação: grande parte dos adolescentes - provavelmente a maioria - quando se olham no espelho se veem como na Guernica: as partes nunca parecem estar no lugar em que deveriam, e quando estão parecem não ter nunca o tamanho e as dimensões que deveriam ter. Mesmo não sendo exclusividade da adolescência essa percepção distorcida - chamada "dismorfofobia" ou Transtorno Dismórfico Corporal - costuma produzir ansiedade e frustração excessivas, sobretudo nessa fase. Por isso a "dica" de hoje reflete um pouco sobre isso, com um tema salpicado de humor e irreverência: ESPELHO, ESPELHO MEU: EXISTE ALGUÉM MAIS DESCONJUNTADA E DESENGONÇADA DO QUE EU? Preparada? Vamos lá, então.

Um dia qualquer de sua adolescência - que os norte-americanos chamam de "teenager" em virtude da terminação "teen" dos números treze a dezenove em inglês - você acorda exausta e encrespada em razão da festa de quinze anos de sua amiga, que varou madrugada adentro na noite anterior. Mal se olha no espelho e quase cai desmaiada: diferentes mechas de uma cabeleira rebelde e toda esvoaçada apontam cada uma para um ponto cardeal; seu nariz simplesmente parece ter decidido crescer sem fazer consulta alguma ao restante do corpo, tal como deve ter acontecido com Pinóquio; suas orelhas mais parecem os orelhões do elefantinho Dumbo se preparando para alçar voo; seus braços e pernas, de tão desajeitados, fazem com que você se sinta um boneco de pano pedaço por pedaço costurada; e se uma espinhazinha que só você consegue enxergar, começa a dar sinal de que pode aumentar, pronto: o quadro fica completo! Você passa o dia inteiro calada e trancafiada no quarto dando mil desculpas para não ter que abrir a porta. No dia seguinte sua única vontade é permanecer debaixo das cobertas e só "dar as caras" já no final da noite, hora de voltar para o quarto e cair novamente na cama. Repetidas e insistentes batidas na porta, entretanto, não deixam margem para dúvidas: faltar à aula sem estar doente, nem pensar! E lá vai você reclamando e resmungando tomar seu banho, passar pelo menos mais meia hora diante do espelho se contemplando, e finalmente se aprontar. No café não há quem não perceba alguma coisa estranha pairando no ar: você responde monossilabicamente a tudo que lhe é perguntado, seu humor mais parece uma montanha russa de tanto ir de cima a baixo, e em dois ou três minutos lá está você pedindo permissão para retornar ao quarto com a esfarrapada desculpa de que já está atrasada. "Eita adolescência!", repetem silenciosamente de si para si mesmos os que já passaram por semelhante experiência; "eita aborrecência!", comentam baixinho os mais engraçadinhos da casa. O drama não para por aí; na escola a história continua: sequer tocou o sinal para a entrada e você já se encontra dentro da sala a fim de escolher criteriosamente seu lugar: a última carteira; bem lá no fundo, no cantinho, na esperança de que ninguém venha se sentar perto de você e menos ainda insistir em conversar. Na primeira oportunidade você procura deixar claro para Deus e todo mundo: "hoje estou cansada, professor, não dormi bem; qualquer pergunta, faça-a por favor aos demais alunos da sala". Isso se repete no dia seguinte, e no outro, e no outro... Onde quer que você se encontre - menos no seu quarto, evidentemente - esse é sempre o último lugar onde você gostaria de estar. Desconfortável e confusa você busca ajuda do espelho, esperando alguma frase "de efeito" que de repente venha a elevar o seu astral. O espelho porém não vê nada de errado com você, e se algo vê, considera ser esse algo tão insignificante que sequer vale a pena comentar. O que na verdade está acontecendo é o seguinte: você vê e percebe a imagem no espelho com as mesmissímas emoções e os mesmíssimos sentimentos negativos com que vê e percebe a si mesma, e por isso acaba concluindo que tampouco o espelho compreende você. Ou seja: no fundo você apenas "monologa" consigo mesma, tendo porém que se mirar no espelho porque essa é a única forma de poder ver o que, sem a ajuda dele, de nenhuma outra forma você conseguiria enxergar. A imagem do espelho sempre "vê" e "percebe" você exatamente como você mesma se vê e se percebe. Por isso não perca seu precioso tempo culpando e recriminando o espelho por ele ser um chato e não conseguir compreender você: somente sua própria mudança de percepção a respeito de si mesma pode mudar a percepção do espelho. E se a imagem do espelho não se mostrar sua amiga, desista: com certeza, na sua percepção, ninguém mais se mostrará.

Falando agora um pouco mais científica e psicologicamente,  minha linda: "dismorfofobia", essa espécie de palavrão tão pouco conhecida, é uma condição psicológica em que a pessoa acaba tendo uma preocupação obsessiva com defeitos ou imperfeições em sua aparência, geralmente mínimos ou simplesmente inexistentes. Quem sofre desse transtorno acaba se enxergando de forma alterada, distorcida, acreditando que aspectos específicos de sua aparência - ou em certos casos, o corpo como um todo - são extremamente feios ou anormais, o que pode acabar acarretando muita dor emocional e um sofrimento psíquico insuportável. Um quadro desse tipo, por sua vez, tende a facilitar a adoção de comportamentos obsessivos- compulsivos, tais como verificar constantemente a própria aparência no espelho, tentar a todo instante esconder os supostos "defeitos" seja lá de que maneira for, ou até mesmo pressionar pais e cuidadores no sentido de realizar cirurgias plásticas  absolutamente desnecessárias numa fase ainda tão precoce. Exatamente por isso existe certa precaução e certa reserva dos psicólogos e terapeutas no sentido de evitar diagnosticar esse quadro como "transtorno" - "Transtorno Dismórfico Corporal" - quando ele ocorre na adolescência,  deixando para fazê-lo apenas mais tarde caso o problema evolua para a fase adulta. O fato é que, com status de "transtorno" ou não, o que está em jogo nesse caso é a bendita ansiedade, a "doença número um do século XXI", que costuma afetar e muito a autoestima e a qualidade de vida das pessoas, sobretudo na fase da adolescência. O grande segredo de tudo está em compreender que essa fase é temporária e passageira, semelhante a uma exposição de obras de arte que depois de certo tempo precisa ser desmontada e ceder seu lugar a uma outra com novos e diferentes atrativos. No futuro provavelmente você vai rir - ou pelo menos fingir que foi divertido - de tudo isso. Portanto não leve a fase "Guernica" tão a sério; ela está aí para nos lembrar que ninguém é perfeito, e que por vezes até os momentos aparentemente mais tortuosos e desconcertantes da vida podem virar arte. Quando não, pelo menos uma boa história para compartilhar, rir e gargalhar mais tarde com nossos filhos e netos - como hoje estou fazendo com você  - quando também eles estiverem passando pela mesma fase e cruzando essa mesma "ponte" chamada "adolescência". Um beijo nesse coração de ouro; no seu, da Bia, do Ben, do Fran e do Alê. AMO MUITO, DE  ALMA E CORAÇÃO, TODOS E CADA UM DE VOCÊS!

(*) Lindolivo Soares Moura é Psicólogo e Professor Universitário no Consultório de Psicologia- Universidade Federal do Espírito Santo- Vila Velha, Espírito Santo, Brasil.

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