Por Paulo César Nodari
O projeto de Jesus se completa na sua morte, sinal de amor até o
fim. Mesmo diante da dor extrema, Jesus não se desvia do desígnio do Reino de
Deus. Ele assume a cruz com liberdade e revela seu amor incondicional por nós.
Pelo seu sangue é selada a nova aliança e são desmascaradas as artimanhas da
mentira e do poder opressor que se opõe ao Reino de Deus. A cruz, que
significava destruição, torna-se reconstrução da condição humana.
1. INTRODUÇÃO
Para compreender o tema em sua amplitude, “condenação
e morte de Jesus”, é preciso ter, diante dos olhos, alguns aspectos que por ora
se podem denominar introdutórios, os quais, nesta reflexão, não têm o sentido
de ser preliminares, mas, antes, exigência para a compreensão mais abrangente
das razões da “condenação e morte de Jesus”.
Jesus é o dom gratuito do Pai
Sendo de condição divina, Jesus Cristo fez-se totalmente humano,
esvaziou-se da condição divina para viver conosco (Fl 2,6-8). Deus revela-se
como Deus muito humano. Nada do que é humano é indiferente a Deus. A grande
Revelação de Deus é a humanidade. A humanidade de Jesus marca definitivamente a
abertura e o acesso à vida de Deus. Agora, o encontro com Deus se dá não
necessariamente no Templo, mas em Jesus Cristo. “Ninguém vai ao Pai senão por
mim”, diz Jesus (Jo 14,6). Deus se faz carne e vem habitar entre nós. Jesus
Cristo se faz humano e servidor, manifestação da graça de Deus. O Pai vem ao
encontro da humanidade pelo seu Filho e convoca todos para o seguimento de seu
Filho, Jesus Cristo, a partir do anúncio e concretização do Reino de Deus. Por
meio de sua pessoa e seu testemunho, Jesus é a irrupção do Reino de Deus em
palavras e ações, nas dimensões do dom e tarefa, na perspectiva do “já” e
“ainda-não”. O presente inaugura a plenitude de salvação futura, e o futuro
penetra e esclarece o presente como tempo de decisão para alcançá-lo por meio
da libertação dos males que oprimem os seres humanos.
Jesus vem em nome do Pai para fazer a vontade do Pai
Em Jesus Cristo se dá a irrupção do Reino de Deus. É o divino
que invade a história. Jesus não prega a si mesmo, mas algo distinto de si
mesmo, o Reino de Deus. Jesus foi fiel servidor do Reino. Ele é “servo de
Deus”. Toda a sua vida deve ser compreendida à luz do Reino e este, por sua
vez, só pode ser compreendido à luz da entrega total de Jesus. Em Jesus,
portanto, revela-se um Deus descentralizado. Ou seja, tem-se a manifestação de
um Deus que vive para fora, isto é, totalmente para o outro. Jesus apresenta-se
como radicalmente livre das leis opressoras da época e aponta para o caminho da
liberdade, tendo o Reino de Deus como o centro de sua pregação e de sua vida.
“O tema do ‘Reino de Deus’ penetra toda a pregação de Jesus. Só podemos
compreendê-lo a partir da totalidade da sua pregação” (RATZINGER, 2007, p. 70).
É o ponto-chave de compreensão de toda a vida do Filho, dando sentido à missão
histórica de Jesus e concretizando-a. Ele assume, na força e presença do
Espírito Santo, a radicalidade da pregação do Reino de Deus, pois ele não veio
pregar a si mesmo, mas o Reino de Deus, sendo-lhe dadas pelo Espírito Santo
energia e autoridade na pregação. No entanto, a sua autoridade não está de
acordo com os moldes das autoridades humanas, pois gera conflitos não somente
com seus inimigos e adversários, mas também com seus conterrâneos. É autoridade
que vem à tona por conta própria, ou seja, impõe-se por si própria. Impõe-se
pela verdade. Se a presença do Espírito Santo faz Jesus ser fiel ao Reino de
Deus, então, para conhecer Jesus, é preciso fazer a experiência que ele faz do
Espírito Santo, pois nele o Espírito Santo desceu, permaneceu, habitou,
repousou em plenitude e encontrou-se à vontade como se estivesse em sua própria
casa.
Jesus foi fiel à sua opção pelo Reino até o fim
Em Jesus Cristo, Deus se revela plenamente. Assim, não se pode
compreender Jesus sem a perspectiva do Reino de Deus, nem o Reino de Deus sem
Jesus Cristo. O Reino de Deus revela não só a pessoa de Jesus, que é a
personificação do Reino, mas revela também em Jesus a face de Deus. O Deus de
Jesus Cristo é o Deus do Reino. O projeto de vida de Jesus é o anúncio do
Reino, dom de Deus que vem ao nosso encontro, porque somos pecadores e
imperfeitos. “O tempo já se cumpriu, e o Reino de Deus está próximo.
Convertam-se e acreditem na Boa Notícia” (Mt 1,15). Jesus resgata a linha
mestra dos profetas e estabelece o núcleo em torno da justiça e da vida. “O
Espírito Santo está sobre mim, porque ele me consagrou com unção, para anunciar
a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e
aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos e para proclamar
um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19).
Jesus atua como servo (Fl 2,7). Ele testemunha e proclama com
fidelidade o Reino. Mostra-o presente por meio de sinais, prodígios e milagres,
que não revelam um Jesus “milagreiro”. Eles são sinais concretos que revelam a
chegada do Reino de Deus. Evangeliza os pobres e se faz pobre com eles. Jesus
quer garantir a vida aos que são incapazes de garanti-la por si mesmos e põem
toda a força em Deus. Assim, o Reino de Deus é dos pobres não por privilégio,
mas porque é o modo próprio de “ser de Deus”. Toda ação de Jesus é a promoção
da solidariedade entre os homens e mulheres, denunciando as estruturas de morte
e anunciando a vida que está nele. Jesus anuncia a prática do amor como
dimensão protagonizante do Reino de Deus. O serviço de Jesus ao Reino se dá no
amor que leva à vida e à comunhão de tudo e de todos em Deus. Sendo assim, por
meio de seu sangue, assumido e derramado com liberdade na cruz, Jesus selou a
definitiva aliança de amor.
O Filho do homem veio para dar a sua vida em resgate de muitos
Jesus não morrera, mas fora morto, tornando-se, assim, mártir,
isto é, testemunha fiel da sua missão como resposta ao desejo de Deus. Jesus dá
sua vida, gasta sua vida pelo Reino de Deus, porque é o Filho amado, o
Predileto, o Eleito, o Primogênito, o Unigênito, o Enviado, o Administrador
plenipotenciário do Pai. Tudo foi entregue às mãos do Filho pelo Pai. O Pai
entrega ao Filho a missão do Reino. O Pai confia plenamente no Filho. Tem fé no
Filho. Nele o Pai tem todo o seu benquerer. Assim, se o Pai tem fé no Filho,
então a fé filial advém da fé paternal. O Filho torna-se companheiro, filho,
adulto, amigo. O Filho adere à fé do Pai. Ele aprende a obediência por meio de
seus sofrimentos, obediência esta não disciplinar, mas profética. O Pai dá ao
Filho a grandeza de revelar o seu amor por toda a humanidade. Então, diz Jesus:
“Quem vê o Filho, vê o Pai. Ninguém conhece o Pai senão o Filho e aqueles a
quem o Filho der a conhecer” (Jo 14,1-6). O Filho é o revelador do Pai e o Pai
é o revelador do Filho. “Meu Pai é vosso Pai e meu Deus é vosso Deus.” Assim, o
caminho para o encontro com Deus é seu Filho, isto é, sua condição humana. Já
não é preciso, por conseguinte, sair da condição humana para encontrar Deus.
Para conhecer Deus, precisa-se conhecer o Filho. Portanto, se Deus se revela no
Filho, então Deus, em Jesus Cristo, primeiro se revela como irmão e somente
depois se revela como Pai. O encontro com o Pai se dá, pois, no Filho.
2. A CONDENAÇÃO E MORTE DE JESUS
A oração de Jesus
Na oração de Jesus no monte das Oliveiras, Jesus fala com o Pai.
Percebe-se na oração de Jesus, primeiro, a experiência primitiva do medo,
depois a turvação diante do poder da morte e, também, o pavor perante o abismo
do nada, que o faz tremer, ou melhor, suar gotas de sangue (cf. Lc 22,44).
Aquele que é vida sente advir sobre si todo o poder de destruição. Em Jesus
vê-se o duelo entre luz e trevas, vida e morte. Manifesta-se não apenas uma
angústia, mas o verdadeiro drama da escolha que caracteriza a vida humana.
“Precisamente porque é o Filho, vê com extrema clareza toda a amplitude da maré
imunda do mal, todo o poder da mentira e da soberba, toda a astúcia e
atrocidade do mal, que se apresenta como a máscara da vida, mas serve
continuamente à destruição do ser, à deturpação e ao aniquilamento da vida”
(RATZINGER, 2011, p. 145). A cruz da obediência livre e fiel marca a passagem
da vontade do Filho à vontade do Pai:
Assim, a oração “não se faça a minha vontade, mas a tua” (Lc
22,44) é verdadeiramente uma oração do Filho ao Pai, na qual a vontade humana
natural foi totalmente arrastada para dentro do eu do Filho, cuja essência se
exprime precisamente no “não Eu, mas no Tu”, no abandono total do Eu ao Tu de
Deus Pai. Mas este “Eu” acolheu em Si a oposição da humanidade e transformou-a,
de tal modo que, agora, na obediência do Filho, estamos presentes todos nós,
somos todos arrastados para dentro da condição de filhos. (RATZINGER, 2011, p.
150).
A condenação de Jesus
Jesus é condenado, fundamentalmente, porque atingiu o centro da
vida do Templo. A aristocracia do Templo exerce uma liderança sobressalente na
condenação de Jesus. O sumo sacerdote que se destaca é Caifás. Os sumos
sacerdotes mantinham-se no poder à medida que faziam a vontade de Roma e
buscavam manter a ordem. Jesus, com seu gesto no Templo, tumultua a ordem
estabelecida. Ele se torna um perigo. “Sua atuação contra o templo é uma ameaça
à ordem pública suficientemente preocupante para entregá-lo ao prefeito romano”
(PAGOLA, 2011, p. 454). Jesus atreveu-se a desafiar publicamente o sistema do
Templo. A ordem pública está em perigo. Não há perigo ao poder do império
romano, pois o Reino anunciado por Jesus não é de violência e não dispõe de
legião alguma. E, por sua vez, a essência do Reino de Deus é o testemunho da verdade
e não o poder. A verdade do Reino de Deus desmascara a promiscuidade entre
poder e mentira, a busca de poder e prestígio em nome de Deus que havia na
época. O Reino de Deus, pelo contrário, alicerça-se na verdade. Com Jesus,
aparece a verdade como essência do Reino de Deus. “O mundo é ‘verdadeiro’ na
medida em que reflete Deus, o sentido da criação, a Razão eterna donde brotou.
E torna-se tanto mais verdadeiro quanto mais se aproxima de Deus. O homem
torna-se verdadeiro, torna-se ele mesmo quando se conforma a Deus” (RATZINGER,
2011, p. 176). Para Jesus, “dar testemunho da verdade” significa realçar a
vontade de Deus diante dos interesses do mundo e das potências do mundo:
A razão de fundo é clara. O reino de Deus defendido por Jesus põe
em questão ao mesmo tempo toda aquela armação de Roma e do sistema do templo.
As autoridades judaicas, fiéis ao Deus do templo, veem-se obrigadas a reagir:
Jesus estorva. Invoca Deus para defender a vida dos últimos. Caifás e os seus
servos o invocam para defender os interesses do templo. Condenam Jesus em nome
de seu Deus, mas, ao fazê-lo, estão condenando o Deus do reino, o único Deus
vivo em quem Jesus crê. O mesmo acontece com o Império de Roma. Jesus não vê
naquele sistema defendido por Pilatos um mundo organizado segundo o coração de
Deus. Ele defende os mais esquecidos do Império; Pilatos protege os interesses
de Roma. O Deus de Jesus pensa nos últimos; os deuses do Império protegem
a pax
romana.
Não se pode, ao mesmo tempo, ser amigo de Jesus e de César; não se pode servir
a Deus do reino e aos deuses estatais de Roma. As autoridades judaicas e o
prefeito romano movimentaram-se para assegurar a ordem e a segurança. No
entanto, não é só uma questão de política pragmática. No fundo, Jesus é
crucificado porque sua atuação e sua mensagem sacodem pela raiz esse sistema
organizado a serviço dos poderosos do Império romano e da religião do templo. É
Pilatos quem pronuncia a sentença: “Irás para a cruz”. Mas essa pena de morte
está assinada por todos aqueles que, por razões diversas, resistiram ao seu
chamado de “entrar no reino de Deus” (PAGOLA, 2011, p. 463).
Os atos que antecedem a crucificação
O centro da mensagem de Jesus é o Reino de Deus. Jesus apresenta
a nova realeza. E o centro desta é a verdade. “A instauração dessa realeza como
verdadeira libertação do homem é o que interessa” (RATZINGER, 2011, p. 178).
Todavia, antes da sentença final, há ainda um interlúdio dramático, dividido em
três atos. O primeiro ato é a apresentação que Pilatos faz de Jesus como
candidato à anistia pascal. A questão toda é que só receberia a anistia quem
fosse condenado por uma situação fatal. E em Jesus Pilatos não encontra nada de
que o possa acusar a fim de ele ser condenado. Pilatos não consegue quebrar a
lógica e o nexo entre poder e mentira. É incapaz de dizer não ao projeto
perverso de opressão do povo pobre e dos que são condenados injusta e
inocentemente. O segundo ato é a flagelação de Jesus. A flagelação era a
punição alicerçada no código penal romano, infligida como castigo concomitante
à condenação à morte (cf. RATZINGER, 2011, p. 180). É um ato que aparece
durante o interrogatório, como prerrogativa do prefeito em virtude de seu
poder, concedido pelo imperador. E o terceiro ato é a coroação de espinhos.
Esta representava, na verdade, a zombaria contra quem quisesse ser rei. Os
soldados se comprazem com isso, porque despejam toda a sua raiva contra os
poderosos na vítima expiatória. Em Jesus condenado se apresenta o “Ecce homo”
(RATZINGER, 2011, p. 182). A condenação com a finalidade de não causar rebuliço
na ordem está acima da justiça:
“Ecce
homo”:
espontaneamente essa expressão adquire uma profundidade que ultrapassa aquele
momento. Em Jesus, aparece o ser humano como tal. Nele se manifesta a miséria
de todos os prejudicados e arruinados. Na sua miséria, reflete-se a
desumanidade do poder humano, que desse modo esmaga o impotente. Nele se
reflete aquilo que chamamos “pecado”: aquilo em que se torna o homem quando
vira as costas a Deus e, autonomamente, toma em sua mão o governo do mundo.
Mas é verdade também o outro aspecto: não se pode tirar de Jesus
sua dignidade íntima. Nele continua presente o Deus escondido. Também o homem
açoitado e humilhado permanece imagem de Deus. Desde quando Jesus se deixou
açoitar, precisamente os feridos e os açoitados são imagem do Deus que quis
sofrer por nós. Assim, Jesus, no meio da sua paixão, é imagem de esperança:
Deus está do lado dos que sofrem (RATZINGER, 2011, p. 182).
(Continua no próximo Domingo...)
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