sábado, 16 de abril de 2022

O SENTIDO DA CONDENAÇÃO E MORTE DE JESUS (I)


Por Paulo César Nodari

O projeto de Jesus se completa na sua morte, sinal de amor até o fim. Mesmo diante da dor extrema, Jesus não se desvia do desígnio do Reino de Deus. Ele assume a cruz com liberdade e revela seu amor incondicional por nós. Pelo seu sangue é selada a nova aliança e são desmascaradas as artimanhas da mentira e do poder opressor que se opõe ao Reino de Deus. A cruz, que significava destruição, torna-se reconstrução da condição humana.

1. INTRODUÇÃO

Para compreender o tema em sua amplitude“condenação e morte de Jesus”, é preciso ter, diante dos olhos, alguns aspectos que por ora se podem denominar introdutórios, os quais, nesta reflexão, não têm o sentido de ser preliminares, mas, antes, exigência para a compreensão mais abrangente das razões da “condenação e morte de Jesus”.

Jesus é o dom gratuito do Pai

Sendo de condição divina, Jesus Cristo fez-se totalmente humano, esvaziou-se da condição divina para viver conosco (Fl 2,6-8). Deus revela-se como Deus muito humano. Nada do que é humano é indiferente a Deus. A grande Revelação de Deus é a humanidade. A humanidade de Jesus marca definitivamente a abertura e o acesso à vida de Deus. Agora, o encontro com Deus se dá não necessariamente no Templo, mas em Jesus Cristo. “Ninguém vai ao Pai senão por mim”, diz Jesus (Jo 14,6). Deus se faz carne e vem habitar entre nós. Jesus Cristo se faz humano e servidor, manifestação da graça de Deus. O Pai vem ao encontro da humanidade pelo seu Filho e convoca todos para o seguimento de seu Filho, Jesus Cristo, a partir do anúncio e concretização do Reino de Deus. Por meio de sua pessoa e seu testemunho, Jesus é a irrupção do Reino de Deus em palavras e ações, nas dimensões do dom e tarefa, na perspectiva do “já” e “ainda-não”. O presente inaugura a plenitude de salvação futura, e o futuro penetra e esclarece o presente como tempo de decisão para alcançá-lo por meio da libertação dos males que oprimem os seres humanos.

Jesus vem em nome do Pai para fazer a vontade do Pai

Em Jesus Cristo se dá a irrupção do Reino de Deus. É o divino que invade a história. Jesus não prega a si mesmo, mas algo distinto de si mesmo, o Reino de Deus. Jesus foi fiel servidor do Reino. Ele é “servo de Deus”. Toda a sua vida deve ser compreendida à luz do Reino e este, por sua vez, só pode ser compreendido à luz da entrega total de Jesus. Em Jesus, portanto, revela-se um Deus descentralizado. Ou seja, tem-se a manifestação de um Deus que vive para fora, isto é, totalmente para o outro. Jesus apresenta-se como radicalmente livre das leis opressoras da época e aponta para o caminho da liberdade, tendo o Reino de Deus como o centro de sua pregação e de sua vida. “O tema do ‘Reino de Deus’ penetra toda a pregação de Jesus. Só podemos compreendê-lo a partir da totalidade da sua pregação” (RATZINGER, 2007, p. 70). É o ponto-chave de compreensão de toda a vida do Filho, dando sentido à missão histórica de Jesus e concretizando-a. Ele assume, na força e presença do Espírito Santo, a radicalidade da pregação do Reino de Deus, pois ele não veio pregar a si mesmo, mas o Reino de Deus, sendo-lhe dadas pelo Espírito Santo energia e autoridade na pregação. No entanto, a sua autoridade não está de acordo com os moldes das autoridades humanas, pois gera conflitos não somente com seus inimigos e adversários, mas também com seus conterrâneos. É autoridade que vem à tona por conta própria, ou seja, impõe-se por si própria. Impõe-se pela verdade. Se a presença do Espírito Santo faz Jesus ser fiel ao Reino de Deus, então, para conhecer Jesus, é preciso fazer a experiência que ele faz do Espírito Santo, pois nele o Espírito Santo desceu, permaneceu, habitou, repousou em plenitude e encontrou-se à vontade como se estivesse em sua própria casa.

Jesus foi fiel à sua opção pelo Reino até o fim

Em Jesus Cristo, Deus se revela plenamente. Assim, não se pode compreender Jesus sem a perspectiva do Reino de Deus, nem o Reino de Deus sem Jesus Cristo. O Reino de Deus revela não só a pessoa de Jesus, que é a personificação do Reino, mas revela também em Jesus a face de Deus. O Deus de Jesus Cristo é o Deus do Reino. O projeto de vida de Jesus é o anúncio do Reino, dom de Deus que vem ao nosso encontro, porque somos pecadores e imperfeitos. “O tempo já se cumpriu, e o Reino de Deus está próximo. Convertam-se e acreditem na Boa Notícia” (Mt 1,15). Jesus resgata a linha mestra dos profetas e estabelece o núcleo em torno da justiça e da vida. “O Espírito Santo está sobre mim, porque ele me consagrou com unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19).

Jesus atua como servo (Fl 2,7). Ele testemunha e proclama com fidelidade o Reino. Mostra-o presente por meio de sinais, prodígios e milagres, que não revelam um Jesus “milagreiro”. Eles são sinais concretos que revelam a chegada do Reino de Deus. Evangeliza os pobres e se faz pobre com eles. Jesus quer garantir a vida aos que são incapazes de garanti-la por si mesmos e põem toda a força em Deus. Assim, o Reino de Deus é dos pobres não por privilégio, mas porque é o modo próprio de “ser de Deus”. Toda ação de Jesus é a promoção da solidariedade entre os homens e mulheres, denunciando as estruturas de morte e anunciando a vida que está nele. Jesus anuncia a prática do amor como dimensão protagonizante do Reino de Deus. O serviço de Jesus ao Reino se dá no amor que leva à vida e à comunhão de tudo e de todos em Deus. Sendo assim, por meio de seu sangue, assumido e derramado com liberdade na cruz, Jesus selou a definitiva aliança de amor.

O Filho do homem veio para dar a sua vida em resgate de muitos

Jesus não morrera, mas fora morto, tornando-se, assim, mártir, isto é, testemunha fiel da sua missão como resposta ao desejo de Deus. Jesus dá sua vida, gasta sua vida pelo Reino de Deus, porque é o Filho amado, o Predileto, o Eleito, o Primogênito, o Unigênito, o Enviado, o Administrador plenipotenciário do Pai. Tudo foi entregue às mãos do Filho pelo Pai. O Pai entrega ao Filho a missão do Reino. O Pai confia plenamente no Filho. Tem fé no Filho. Nele o Pai tem todo o seu benquerer. Assim, se o Pai tem fé no Filho, então a fé filial advém da fé paternal. O Filho torna-se companheiro, filho, adulto, amigo. O Filho adere à fé do Pai. Ele aprende a obediência por meio de seus sofrimentos, obediência esta não disciplinar, mas profética. O Pai dá ao Filho a grandeza de revelar o seu amor por toda a humanidade. Então, diz Jesus: “Quem vê o Filho, vê o Pai. Ninguém conhece o Pai senão o Filho e aqueles a quem o Filho der a conhecer” (Jo 14,1-6). O Filho é o revelador do Pai e o Pai é o revelador do Filho. “Meu Pai é vosso Pai e meu Deus é vosso Deus.” Assim, o caminho para o encontro com Deus é seu Filho, isto é, sua condição humana. Já não é preciso, por conseguinte, sair da condição humana para encontrar Deus. Para conhecer Deus, precisa-se conhecer o Filho. Portanto, se Deus se revela no Filho, então Deus, em Jesus Cristo, primeiro se revela como irmão e somente depois se revela como Pai. O encontro com o Pai se dá, pois, no Filho.

2. A CONDENAÇÃO E MORTE DE JESUS

A oração de Jesus

Na oração de Jesus no monte das Oliveiras, Jesus fala com o Pai. Percebe-se na oração de Jesus, primeiro, a experiência primitiva do medo, depois a turvação diante do poder da morte e, também, o pavor perante o abismo do nada, que o faz tremer, ou melhor, suar gotas de sangue (cf. Lc 22,44). Aquele que é vida sente advir sobre si todo o poder de destruição. Em Jesus vê-se o duelo entre luz e trevas, vida e morte. Manifesta-se não apenas uma angústia, mas o verdadeiro drama da escolha que caracteriza a vida humana. “Precisamente porque é o Filho, vê com extrema clareza toda a amplitude da maré imunda do mal, todo o poder da mentira e da soberba, toda a astúcia e atrocidade do mal, que se apresenta como a máscara da vida, mas serve continuamente à destruição do ser, à deturpação e ao aniquilamento da vida” (RATZINGER, 2011, p. 145). A cruz da obediência livre e fiel marca a passagem da vontade do Filho à vontade do Pai:

Assim, a oração “não se faça a minha vontade, mas a tua” (Lc 22,44) é verdadeiramente uma oração do Filho ao Pai, na qual a vontade humana natural foi totalmente arrastada para dentro do eu do Filho, cuja essência se exprime precisamente no “não Eu, mas no Tu”, no abandono total do Eu ao Tu de Deus Pai. Mas este “Eu” acolheu em Si a oposição da humanidade e transformou-a, de tal modo que, agora, na obediência do Filho, estamos presentes todos nós, somos todos arrastados para dentro da condição de filhos. (RATZINGER, 2011, p. 150).

 

A condenação de Jesus

Jesus é condenado, fundamentalmente, porque atingiu o centro da vida do Templo. A aristocracia do Templo exerce uma liderança sobressalente na condenação de Jesus. O sumo sacerdote que se destaca é Caifás. Os sumos sacerdotes mantinham-se no poder à medida que faziam a vontade de Roma e buscavam manter a ordem. Jesus, com seu gesto no Templo, tumultua a ordem estabelecida. Ele se torna um perigo. “Sua atuação contra o templo é uma ameaça à ordem pública suficientemente preocupante para entregá-lo ao prefeito romano” (PAGOLA, 2011, p. 454). Jesus atreveu-se a desafiar publicamente o sistema do Templo. A ordem pública está em perigo. Não há perigo ao poder do império romano, pois o Reino anunciado por Jesus não é de violência e não dispõe de legião alguma. E, por sua vez, a essência do Reino de Deus é o testemunho da verdade e não o poder. A verdade do Reino de Deus desmascara a promiscuidade entre poder e mentira, a busca de poder e prestígio em nome de Deus que havia na época. O Reino de Deus, pelo contrário, alicerça-se na verdade. Com Jesus, aparece a verdade como essência do Reino de Deus. “O mundo é ‘verdadeiro’ na medida em que reflete Deus, o sentido da criação, a Razão eterna donde brotou. E torna-se tanto mais verdadeiro quanto mais se aproxima de Deus. O homem torna-se verdadeiro, torna-se ele mesmo quando se conforma a Deus” (RATZINGER, 2011, p. 176). Para Jesus, “dar testemunho da verdade” significa realçar a vontade de Deus diante dos interesses do mundo e das potências do mundo:

A razão de fundo é clara. O reino de Deus defendido por Jesus põe em questão ao mesmo tempo toda aquela armação de Roma e do sistema do templo. As autoridades judaicas, fiéis ao Deus do templo, veem-se obrigadas a reagir: Jesus estorva. Invoca Deus para defender a vida dos últimos. Caifás e os seus servos o invocam para defender os interesses do templo. Condenam Jesus em nome de seu Deus, mas, ao fazê-lo, estão condenando o Deus do reino, o único Deus vivo em quem Jesus crê. O mesmo acontece com o Império de Roma. Jesus não vê naquele sistema defendido por Pilatos um mundo organizado segundo o coração de Deus. Ele defende os mais esquecidos do Império; Pilatos protege os interesses de Roma. O Deus de Jesus pensa nos últimos; os deuses do Império protegem a pax romana. Não se pode, ao mesmo tempo, ser amigo de Jesus e de César; não se pode servir a Deus do reino e aos deuses estatais de Roma. As autoridades judaicas e o prefeito romano movimentaram-se para assegurar a ordem e a segurança. No entanto, não é só uma questão de política pragmática. No fundo, Jesus é crucificado porque sua atuação e sua mensagem sacodem pela raiz esse sistema organizado a serviço dos poderosos do Império romano e da religião do templo. É Pilatos quem pronuncia a sentença: “Irás para a cruz”. Mas essa pena de morte está assinada por todos aqueles que, por razões diversas, resistiram ao seu chamado de “entrar no reino de Deus” (PAGOLA, 2011, p. 463).

 

Os atos que antecedem a crucificação

O centro da mensagem de Jesus é o Reino de Deus. Jesus apresenta a nova realeza. E o centro desta é a verdade. “A instauração dessa realeza como verdadeira libertação do homem é o que interessa” (RATZINGER, 2011, p. 178). Todavia, antes da sentença final, há ainda um interlúdio dramático, dividido em três atos. O primeiro ato é a apresentação que Pilatos faz de Jesus como candidato à anistia pascal. A questão toda é que só receberia a anistia quem fosse condenado por uma situação fatal. E em Jesus Pilatos não encontra nada de que o possa acusar a fim de ele ser condenado. Pilatos não consegue quebrar a lógica e o nexo entre poder e mentira. É incapaz de dizer não ao projeto perverso de opressão do povo pobre e dos que são condenados injusta e inocentemente. O segundo ato é a flagelação de Jesus. A flagelação era a punição alicerçada no código penal romano, infligida como castigo concomitante à condenação à morte (cf. RATZINGER, 2011, p. 180). É um ato que aparece durante o interrogatório, como prerrogativa do prefeito em virtude de seu poder, concedido pelo imperador. E o terceiro ato é a coroação de espinhos. Esta representava, na verdade, a zombaria contra quem quisesse ser rei. Os soldados se comprazem com isso, porque despejam toda a sua raiva contra os poderosos na vítima expiatória. Em Jesus condenado se apresenta o “Ecce homo” (RATZINGER, 2011, p. 182). A condenação com a finalidade de não causar rebuliço na ordem está acima da justiça:

Ecce homo”: espontaneamente essa expressão adquire uma profundidade que ultrapassa aquele momento. Em Jesus, aparece o ser humano como tal. Nele se manifesta a miséria de todos os prejudicados e arruinados. Na sua miséria, reflete-se a desumanidade do poder humano, que desse modo esmaga o impotente. Nele se reflete aquilo que chamamos “pecado”: aquilo em que se torna o homem quando vira as costas a Deus e, autonomamente, toma em sua mão o governo do mundo.

Mas é verdade também o outro aspecto: não se pode tirar de Jesus sua dignidade íntima. Nele continua presente o Deus escondido. Também o homem açoitado e humilhado permanece imagem de Deus. Desde quando Jesus se deixou açoitar, precisamente os feridos e os açoitados são imagem do Deus que quis sofrer por nós. Assim, Jesus, no meio da sua paixão, é imagem de esperança: Deus está do lado dos que sofrem (RATZINGER, 2011, p. 182).

(Continua no próximo Domingo...)

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