sábado, 23 de abril de 2022

O SENTIDO DA CONDENAÇÃO E MORTE DE JESUS (II)

Por Paulo César Nodari

A morte de cruz caracteriza desprezo e humilhação

 

A fidelidade de Jesus ao Reino de Deus leva-o à superação de toda tentação de usar o poder do Espírito Santo como apropriação. Segundo Lucas, Jesus toma resolutamente a decisão de ir para Jerusalém. É decisão firme e resoluta (cf. Lc 9,51-52). Para Lucas, cada passo é definitivo e não há regresso. Jesus endureceu o rosto para Jerusalém. É o grande momento da decisão e da fidelidade. Jesus sabia do possível confronto em Jerusalém. Sabia que, por algum pecado ou ofensa religiosa, o profeta seria lapidado. Jesus podia ter esperado a lapidação, mas não a morte por crucificação. Nesse sentido, como consequência, tem-se que Jesus nem sequer é morto com a dignidade de profeta. Morre crucificado. A crucificação era sinal de castigo aos escravos e tinha a intenção de aterrorizar a população e servir, assim, como ato público de exemplo de castigo (cf. PAGOLA, 2011, p. 465). Em outras palavras, Jesus não morre com sentido religioso, pois a cruz lhe tira o sentido religioso da morte. A morte de cruz de Jesus tem caráter de humilhação. A cruz tira o mérito de Jesus como profeta.


Na cruz, Jesus, pelo amor incondicional, prova sua realeza e poder

A cruz não é só o sofrimento do Filho. É a dor do Pai que sofre a morte do Filho em seu amor. O óbvio começa a ser visto. O Filho sofreu a crucificação e morreu. Mas quem sofreu por último sua morte e sua perda foi também o Pai. Na perda do Filho, o Pai perdeu sua paternidade, todo o sentido do seu existir como Pai e como Deus. “A dor do Filho é a ‘dor’ do Pai. Este não é somente aquele que recebe o ato de entrega de Jesus; é ao mesmo tempo aquele que oferece e, em certo sentido, se oferece ao oferecer o Filho ao mundo” (ROCCHETTA, 2002, p. 300). Atingido pela morte, na dor e na perda, o Pai, na presença do Espírito, também conhece e experimenta a morte do Filho amado, segundo a espantosa afirmação da tradição cristã: “Deus morreu”. O sofrimento de Jesus deve ser visto no sofrimento do amor de quem se abre à mortalidade e à dor dos outros. É o sofrimento que engrandece aquele que sofre. Alarga seus ombros e seu regaço, carregando sobre si a mortalidade do outro e sua dor (cf. SUSIN, 1997, p. 111-151). “A morte de Jesus é o ato supremo da sua liberdade e do seu amor. Vive a obediência total em união com o Pai. O Filho do Homem foi levantado para atrair todos a si e ao Pai” (GRUPO FONTE, 2013, p. 154). O amor de Jesus pela criatura humana faz com que ele assuma incondicionalmente a realidade decaída e corrompida da criatura que se afastou do amor para resgatá-la em sua essência e entregá-la ao amor do Pai (cf. GRUPO FONTE, 2012, p. 140). Mesmo diante da dor extrema, Jesus não se desvia do desígnio do Reino de Deus. Vive a entrega à vontade do Pai com plena liberdade e gratuidade. “A cruz testemunha o imenso e eterno amor que flui do coração do Pai” (GRUPO FONTE, 2012, p. 140). O que o Pai quer não é que matem o Filho, mas que o Filho viva o seu amor até as últimas consequências. Jesus morreu como viveu, ou seja, morreu amando até o fim:

Deus não pode evitar a crucifixão, porque para isso deveria destruir a liberdade dos seres humanos e negar-se a si mesmo como Amor. O Pai não quer o sofrimento e o sangue, mas não se detém nem sequer diante da tragédia da cruz e aceita o sacrifício de seu Filho querido unicamente por amor insondável para conosco. Assim é Deus (PAGOLA, 2011, p. 345).

 

A cruz revela o poder e as forças do mal

Na cruz, perpassa a infidelidade da humanidade ao projeto de Deus. A morte de Jesus realiza a radical experiência humana do abandono. Na cruz, Jesus experimenta o fracasso de seu projeto. Ele sente o abandono, até mesmo daqueles que o acompanharam durante toda a vida. É o escândalo e a humilhação máxima a alguém. Na cruz, Jesus sofre e morre. Para verdadeira compreensão do sofrimento de Jesus, é preciso, no entanto, elaborar algumas considerações a seu respeito: não é um sofrimento como pena, como pagamento de uma culpa por ele merecida ou que estaria a ele reservada, pois poderia atingir o cerne da vida de Deus; não é um sofrimento como castigo pedagógico com vistas ao futuro; não é um sofrimento apenas como constitutivo da finitude humana, uma vez que se poderia cair no perigo do destino trágico; não é apenas como consequência das condições históricas e sociais de injustiça, pois se poderia cair no sofrimento a nós destinado simplesmente pelos outros; não é apenas como o sofrimento do inocente, pois haveria o perigo do exagero na dose do sofrimento, tornando-o monstruosidade, e da inconsequente divinização do sofrimento:

Sem dúvida, a primeira coisa que todos nós descobrimos no Crucificado do Gólgota, torturado injustamente até a morte pelas autoridades religiosas e pelo poder político, é a força destruidora do mal, a crueldade do ódio e o fanatismo da justiça. Mas precisamente ali, nessa vítima inocente, nós, seguidores de Jesus, vemos Deus identificado com todas as vítimas de todos os tempos (PAGOLA, 2011, p. 342).

 

O sofrimento de Jesus é expiatório

No sofrimento expiatório há a passagem da causa para alguém. Aqui geralmente este alguém é Deus. Esse é o sofrimento que salva, que santifica. É o sofrimento que gera a vida. É o sofrimento desde o outro e para o outro. É o sofrimento que não destrói. Engrandece e constrói. Não há amor sem dor. Ao invés de destruir-nos, resgata-nos. Esse sofrimento é o que nos reconcilia com Deus. Logo, o sofrimento é, em si, desumano, destruidor, angustiante, mas, integrado no amor, é extremamente divinizador. O sofrimento pelo outro, desde o outro e para o outro, é o sofrimento do amor. “O sofrimento e a dor, inerente à vida, fazem intuir que o dia da paixão e morte de Jesus, na cruz, revela o que há de mais profundo no ser humano e de mais belo no coração de Deus” (GRUPO FONTE, 2013, p. 154). Jesus é o Servo Sofredor por excelência. Vive sua liberdade como esvaziamento (Fl 2,6-8), ou seja, esvaziou-se da sua propriedade. Esvaziamento significa dizer que o que é meu passa a ser de outrem, fazer a experiência do ser acolhedor, ser hospitaleiro, entregar tudo, esvaziar-se da propriedade pessoal em vista da presença do outro. “Este ‘fim’, este extremo cumprimento do amar foi alcançado agora, no momento da morte. Jesus foi verdadeiramente até o fim, até o limite e para além do limite. Ele realizou a totalidade do amor, deu-se a si mesmo” (RATZINGER, 2011, p. 202). Na cruz realiza-se a entrega total de Jesus ao projeto do Pai e conduz-se a humanidade a Deus. Na cruz, configura-se nova forma de poder e realeza:

Desse modo é possível uma nova forma de obediência, uma obediência que ultrapassa todo o cumprimento humano dos Mandamentos. O Filho torna-Se Homem e, no seu corpo, reconduz a Deus a humanidade inteira. Só o Verbo feito carne, cujo amor se cumpre na cruz, é a obediência perfeita. Nele, não se tornou definitiva apenas a crítica aos sacrifícios do templo, mas cumpriu-se também o desejo que ainda restava: a sua obediência ‘corpórea’ é o novo sacrifício para dentro do qual ele nos atrai a todos nós e no qual, ao mesmo tempo, a nossa desobediência fica anulada por meio do seu amor (RATZINGER, 2002, p. 212).


Da cruz como destruição à reconstrução da condição humana

A cruz representa destruição e morte violenta. Cruz significa desprezo, castigo e fim de tudo. Porém se, por um lado, a cruz de Jesus é escândalo como sequência histórica da vida de sua vida, é também e, sobretudo, cruz redentora. A cruz em si não é salvadora nem, tampouco, redentora. “A cruz pela cruz não passa de uma maldição. Salvadora é a vida de Jesus” (RUBIO, 1994, p. 87). Em outras palavras, a cruz passou a ser salvadora por causa da vida de Jesus. “A cruz é salvadora porque constitui o resumo e a radicalização máxima da entrega de Jesus, vivida durante toda a sua vida” (RUBIO, 1994, p. 88). Tem-se a revelação de um Deus humilde e paciente, que respeita até as últimas consequências a liberdade humana. Deus não se revela como Deus imutável e majestoso, alheio ao sofrimento humano. Ele se revela como o Deus solidário ao sofrimento humano e às suas angústias. Vê-se, pois, um Deus identificado com todas as vítimas de todos os tempos (cf. PAGOLA, 2012, p. 341). Nesse sentido: “Com a cruz, ou termina nossa fé em Deus ou nos abrimos a uma compreensão nova e surpreendente de um Deus que, encarnado em nosso sofrimento, nos ama de maneira incrível” (PAGOLA, 2012, p. 343). Deus não responde ao mal com o mal. Do mal provém a redenção. A cruz, que significava destruição, torna-se reconstrução da condição humana (GRUPO FONTE, 2013, p. 154). “O mistério da cruz não está simplesmente diante de nós, mas envolve-nos, dando um novo valor à nossa vida” (RATZINGER, 2011, p. 213). Na cruz a morte é vencida, ou seja, a morte é transformada em vida.

A mensagem de Jesus crucificado é muito clara. Deus, que poderia ter aniquilado todas as formas de mal, preferiu entrar nele com a carne do seu Filho, em Jesus, proclamando o perdão e o retorno, e assumindo em si as consequências do mal, para redimi-lo na própria carne crucificada. É a lei da cruz, o princípio segundo o qual o mal não é eliminado, mas transformado em bem pelo exemplo e pela força da morte de Cristo. Deste modo, a cruz se torna a suprema lei do amor, e quem quiser seguir o caminho de regeneração inaugurado por Jesus deve entrar no mal do mundo para dali tirar o bem da fé, da esperança, da caridade, do amor pelos inimigos. A lei da cruz é formidável. Ela tem uma eficácia soberana no reino do espírito e é aplicável a todas as vicissitudes humanas. É o mistério do Reino de Deus, é o mistério do Evangelho. Não é uma lei aceitável pela simples inteligência natural humana. Ela não pode ser demonstrada, caso prescindirmos da pessoa de Cristo. A inteligência natural humana a recusa, não é capaz de entendê-la sem o auxílio da fé (MARTINI, 1998, p. 231).


Jesus é o Cordeiro sacrifical único e eterno

O projeto de Jesus se completa na sua morte, sinal de amor até o fim. Jesus assume a cruz com liberdade e revela seu amor incondicional por nós. Ele é o “Cordeiro que tira o pecado do mundo” (Ap 5,12; Jo 1,29). Pelo seu sangue é selada a nova aliança. Nessa perspectiva, a morte de Jesus faz parte do grande projeto de Deus. “Por acaso não vou beber o cálice que o Pai me deu?” (Jo 18,11). É o grande mistério de, em Cristo, reconciliar todas as criaturas e libertar os seres humanos da escravidão e do pecado. Jesus, em seu amor redentor, assumiu-nos na condição de pecadores, tornando-se solidário a nós. “Deus não poupou seu próprio Filho, mas o entregou a todos nós” (Rm 8,23), a fim de que fôssemos reconciliados com ele pela morte de seu Filho (Rm 5,10). Este é o exemplo de supremo amor de Deus para conosco. Jesus é o “novo Adão”. Por meio dele todos se tornarão justos. Vista na perspectiva da ressurreição, a morte de Jesus é o novo êxodo, o início da nova Páscoa. O último dia de Jesus é o primeiro a partir do qual o mundo foi redimido. Da cruz de Cristo nasce novo mundo, baseado na vitória sobre o pecado, a qual possibilita ao ser humano chamar a Deus de Pai, e sobre a morte, pois este é o caminho para a ressurreição; na libertação da lei, pois esta foi submetida pelo amor, e na ruptura do reinado de Satanás, pois Cristo o venceu. Enfim, a morte de Jesus é o selo da nova aliança. É o sacrifício pascal único da nova aliança. Depois dele, já não são necessários sacrifícios expiatórios, pois Jesus é o verdadeiro Cordeiro pascal. Todos os sacrifícios anteriores chegam à sua plenitude com a morte de Jesus na cruz (Hb 7,26). Na última ceia, Jesus disse que seu corpo seria entregue pelos pecados dos homens, seu sangue seria derramado para o perdão dos pecados e nele surgiria nova aliança (Lc 22,19s; Mc 14,26s). Jesus é a vítima do sacrifício que, com seu sangue, recoloca o ser humano em comunhão com Deus. Portanto, no sangue de Jesus na cruz é selada a nova aliança. Assim como no Antigo Testamento a aliança era concluída com um banquete e com a aspersão do sangue de animais sacrificados, a nova aliança, em Jesus Cristo, é firmada no sangue e realizada na ceia pascal, na qual ele mesmo se oferece como Cordeiro sacrifical único e eterno. O Crucificado desmascara as mentiras, as covardias e as artimanhas do poder opressor. [1] “A partir do silêncio da cruz, ele é o juiz firme e manso do aburguesamento de nossa fé, de nossa acomodação ao bem-estar e de nossa indiferença diante dos que sofrem” (PAGOLA, 2012, p. 347). Assim sendo, a cruz se torna o início da vida nova. “A cruz se torna a prova plena, incompreensível e irrefutável, do amor de Deus Pai pela humanidade” (GRUPO FONTE, 2013, p. 154).


BIBLIOGRAFIA


GRUPO FONTE. Manancial de vida. Exercícios espirituais. Porto Alegre: Pacartes, 2013.

______. O caminho de Jesus. Exercícios espirituais. Porto Alegre: Pacartes, 2012.

MARTINI, Carlo Maria. Reencontrando a si mesmo: há um momento em que devemos parar e procurar. São Paulo: Paulinas, 1998.

PAGOLA, José Antonio. Jesus: aproximação histórica. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

______. O caminho aberto por Jesus. Petrópolis: Vozes, 2012.

RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a ressurreição. São Paulo: Planeta, 2011.

______. Jesus de Nazaré: primeira parte: do batismo no Jordão à transfiguração. São Paulo: Planeta, 2007.

ROCCHETTA, Carlo. Teologia da ternura: um “evangelho” a descobrir. São Paulo: Paulus, 2002.

RUBIO, Alfonso Garcia. O encontro com Jesus Cristo vivo. São Paulo: Paulinas, 1994.

SUSIN, Luiz Carlos. Jesus: Filho de Deus e filho de Maria: ensaio de cristologia narrativa. São Paulo: Paulinas, 1997.


 [1]Simplesmente repete a sentença anterior, com suave mudança de perspectiva, achei que poderia ser suprimido. Verificar.

 

Paulo César Nodari

Padre da Diocese de Caxias do Sul-RS, onde é vigário paroquial da Paróquia São Pelegrino; doutor em Filosofia pela PUC-RS; mestre na mesma área pela UFMG e graduado em Filosofia (UCS) e Teologia (PUC-RS). Atualmente é professor na Universidade de Caxias do Sul.
E-mail: paulocesarnodari@hotmail.com

https://www.vidapastoral.com.br/artigos/cristologia/o-sentido-da-condenacao-e-morte-de-jesus/

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