A humanidade nova
Por Fr. Gilberto Gorgulho, op
Introdução
A leitura do
Apocalipse de João é fundamental para encarnar a relação entre fé e política, e
para realizar o testemunho cristão, no meio do mundo em conflito, como práxis
de libertação. Pois o Apocalipse mostra que a política, muito mais do que
discernimento do poder, é discernimento e realização da práxis de libertação e
resgate da vida de um povo livre. O apocalipse, ou a manifestação do julgamento
de Deus no processo histórico, é revelação, testemunho e profecia (cf. Ap
1,1-3).
A revelação do
julgamento de Deus, na morte e ressurreição de Jesus de Nazaré, constitui o
testemunho fundamental da história humana. A ação dos discípulos consiste em
continuar e atualizar esse testemunho libertador. A novidade da revelação está
em anunciar que é preciso “profetizar ainda…” (Ap 10,11). A ação cristã no meio
do mundo em conflito é expressão dessa profecia que coloca o povo de Deus em
marcha para a realização plena da Vida da Nova Humanidade.
O livro do Apocalipse
é, por isso, predileto das comunidades populares. Aí elas encontram o ânimo
para a luta. Descobrem o critério para interpretar a dominação e a perseguição.
Encontram, sobretudo, o caminho para enfrentar os poderes que estão na raiz da
sociedade e destroem a vida de um povo livre. As comunidades percebem que o
desafio está em enfrentar a “caricatura da Trindade”: o Dragão, a primeira
Besta e a segunda Besta. Nesse confronto, o testemunho profético é
identificação e união com a Vida que vem do Pai, na força do testemunho do
Filho e na comunicação que é o Espírito. Porque o testemunho de Jesus o
espírito da profecia (cf. Ap 19,10).
Essa
conaturalidade das comunidades atuais encontra eco e analogia com as primeiras
comunidades para as quais o livro foi escrito e dirigido. De fato, o apocalipse
foi escrito para que as comunidades aprendessem e praticassem o discernimento
da violência e da força de morte do imperialismo
dominador do Império Romano, no final do primeiro século. Com
efeito, a partir do imperador Domiciano o imperialismo romano se impôs como
ideologia hegemônica de Dominação e de perseguição, até com a divinização do
Senhor (Kyrios) Imperador.
Diante desse
imperialismo era preciso discernir o que o Espírito dizia às Igrejas. Era
preciso fazer a ligação entre a utopia da nova humanidade e as medições
concretas que a encarnam no processo histórico.
Nosso intento é
mostrar as dimensões da Nova Humanidade, a partir da utopia da Jerusalém
celeste (Ap 21,1-22,5). Aí se encontram os critérios para o discernimento e
busca de mediações e de modelos sociais alternativos em vista da libertação e
vida para o povo solidário.
1. A nova Eva
Apocalipse 12 mostra
como irá formar-se a Humanidade Nova. O sinal da Mulher vestida de sol é a Nova
Humanidade que se forma a partir da vida de Jesus Cristo, morto e ressuscitado.
A Mulher vestida de sol é a nova Eva, tal como foi descrita em Gênesis 3,15-16
e 20.
A meta final será a
união dos homens com Jesus Cristo, na Jerusalém celeste. A Humanidade Nova é a
esposa do Cordeiro, com o qual realiza as bodas de uma união de vida sem fim
(Ap 21,9). Antes, porém, há uma fase anterior que é a realização de todo o
processo histórico, de geração em geração, até o final dos tempos. É a
formação, no decorrer das gerações humanas, desta Humanidade Nova, a nova Eva,
esposa do Cordeiro imolado que é o segundo Adão.
Com
essa imagem da nova Eva o autor do Apocalipse faz uma leitura de Gênesis 1-11.
Aí ele vê uma história profética de toda a humanidade. Essa história serve-lhe
de eixo para apresentar a sua mensagem, através de um estreito paralelismo
entre o primeiro Adão e Jesus Cristo anunciado como segundo Adão libertador e
salvador da humanidade toda. Ora, em Gênesis 2-3, a história da humanidade se
faz a partir da figura de Adão e de Eva: Adão é o SER-VIVO (Gn
2,7) e é o ESPOSO DE EVA, a
Mãe dos Viventes (Gn 2,24).
A novidade está no
fato de que o Ser-Vivo, princípio de vida de onde surge a Humanidade Nova, é
Jesus Cristo morto e ressuscitado. Ele é o segundo Adão, princípio da
verdadeira vida para a humanidade. Esta não se encontra mais na situação de
dominação e de morte. Sua história não terminará na confusão de Babel (cf. Ap
17-19), como aconteceu com a humanidade saída do primeiro Adão (cf. Gn 11). A
Nova Humanidade chegará a participar da Vida plena e a comer do fruto da árvore
da vida que fora perdido no primeiro paraíso. A Humanidade Nova é chamada para
a vida imortal e plena (Ap 1,18; 22,2).
O
primeiro Adão é também o esposo de Eva (Gn 2,24). Aí o autor do Apocalipse viu
a revelação do sentido da história humana. A humanidade é a Mulher, vestida de
sol. Ela é, ao mesmo tempo, a mãe do Messias vencedor da morte: o Messias é
homem e nasce da humanidade. Morre na cruz e ressuscita. Essa humanidade
renovada pela ressurreição do Messias é a esposa do novo Adão. Assim, o sentido
da história, o dinamismo da marcha das gerações, está na realização da comunhão da
humanidade com o Cristo ressuscitado. O sentido da história humana é a marcha
para as bodas do Cordeiro, na Jerusalém celeste. O processo de libertação do
povo do poder da idolatria imperialista toma o sentido positivo de construção
de comunidades vivas que encarnam as notas características da Cidade-Esposa do
Ressuscitado (Ap 19,7-9).
A
nova Eva é a Mãe dos Viventes. Terá uma descendência (cf. Gn 3,15) que irá
lutar contra a serpente. Mas essa descendência sairá vitoriosa nessa luta e
conseguirá atingir o fruto da árvore da vida. Nessa história da Mãe dos
Viventes, a nova Eva, o autor vê a humanidade em gestação no novo mundo da
vida, da liberdade e da solidariedade. Isso se realiza na união que existe
entre Cristo e a Humanidade resgatada da dominação e da morte. Ambos nascem
para a mesma Vida. Participam da mesma luta e da mesma vitória. A vida, a luta
e a vitória de um é a vida, a luta e a vitória do outro (Ap 12,5; 21,2 e 7).
Pois Cristo, Filho da nova Eva que é a Humanidade, lhe é tão solidário que sua
vitória é a vitória da Humanidade (Ap 19,11.16.17). A nova Eva é o sinal do
mundo novo em gestação na história a partir da ressurreição de Jesus Cristo.
2. A Noiva do Cordeiro
O sentido da história
está para além da história! Ele se personifica na figura da Noiva que desce do
céu e é chamada a ser a esposa do Cordeiro. A nova Eva é a esposa do segundo
Adão (Ap 21,2 e 9).
Esse
anúncio se faz no conjunto de sete
visões finais
que contemplam a união definitiva entre o Esposo e a Esposa, na cidade perfeita.
Contraposta à velha Babilônia, surge a nova Jerusalém. Ela vem do céu como
cidade perfeita. É ecumênica, universal, apostólica e da plena partilha da vida
libertada. Assim o anúncio da visão final da Cidade santa toma como ponto de
partida a proclamação da vitória do Ressuscitado. Apocalipse 19-21 forma um
conjunto que revela o sentido final e transcendente da história, a partir da
vitória de Jesus sobre a morte. Ele é o
Rei dos reis, o Senhor dos senhores. O sentido da história não está no imperialismo do Estado romano.
Está no testemunho dos que encarnam a vitória do Ressuscitado no meio da
dominação e da perseguição que destrói o povo. É a visão do céu que orienta a
práxis de libertação e de luta das testemunhas contra a “caricatura da
Trindade”, ou os poderes do Estado que concentram as forças da economia, da
política e da ideologia para constituir uma cidade idólatra e determinada pela
negação da Vida e da Liberdade (cf. Ap 19,11; 20,1.4.11.12; 21,1 e 2).
De fato, Ap 19
anuncia que a Palavra, guerreiro vitorioso, leva a Esposa para as bodas, na
Cidade perfeita. Ele coloca a história em marcha: Ele já venceu, ele vence e
terá a vitória final. Ele realizará a união coma sua Esposa, na Cidade santa e
perfeita. Aí se dará a consumação do processo da libertação do povo. O
julgamento da cidade idólatra e entregue à prostituição é o ponto de partida
para o surgimento da Noiva do Cordeiro chamada à vida de comunhão e de
liberdade (Ap 19,3).
A
“prostituição” da grande cidade — o que constitui também uma tentação para as
comunidades cristãs (Ap 2,14; 2,20) — consiste em organizar as relações
econômicas e políticas no espírito do Dragão, isto é, na injustiça,
na dominação e na destruição da liberdade. Aí nasce e se sustenta o poder
imperialista que domina pelas forças militar e ideológica. As pessoas perdem a
liberdade e se tornam escravas do poder e da injustiça.
O
primeiro passo consiste na libertação dessas forças imanentes à história e que
engendram o imperialismo idólatra. É a negação da comunhão livre, por isso o
primeiro passo consiste nesta libertação do
poder do Dragão e das duas Bestas que o manifestam dentro do processo
histórico.
A segunda fase é a
libertação para as bodas do Cordeiro (Ap 19,7). O Ressuscitado, por sua
vitória, coloca a humanidade no caminho da comunhão definitiva. Ele veio
instaurar a nova Aliança cuja consumação se dará na Cidade perfeita. O amor
solidário deve penetrar em todas as estruturas e em todas as relações sociais
de produção e de reprodução da vida do povo. Somente assim é que as comunidades
humanas caminham para sua realização plena.
Chegou
o tempo das bodas do Cordeiro. Cristo veio ao mundo, Filho da Humanidade e
também o seu Esposo. Ele veio para unir-se aos homens e para levá-los a viver
de sua própria vida. Ele é o centro da nova Aliança e é o Senhor do processo
histórico (Ap 19,16). A mensagem sobre as bodas do Cordeiro não é uma
explicação neutra sobre Jesus Cristo. A figura do Esposo é a manifestação de
sua realeza universal e anúncio de sua vinda na história. Ele vem e interpela à
liberdade, provoca a conversão e a mudança das estruturas dominadas pelo poder
que é “caricaturada Trindade”. Ele vem como Rei e como Juiz para instaurar a
verdade, a liberdade e a comunhão. Ele reina dando vida plena. Coloca a
humanidade, sua Noiva, em marcha para a comunhão e a unidade. Esta vinda é o fundamento
da libertação da “prostituição de Babel” e a formação da vida nova de sua
Esposa. O testemunho de Jesus e dos seus seguidores possui a mesma estrutura e
converge para o mesmo fim: libertar as pessoas e as estruturas que exprimem a
vida coletiva do povo para que vivam sob a moção do Espírito, para ser com os
outros em relações humanas novas, movidas pela verdade da justiça e do amor.
Esse
polo positivo da libertação é um dom transcendente. É a novidade absoluta do
dom gratuito de Deus que vem do céu e penetra nas estruturas e nos mecanismos
sociais. É a realização plena da Aliança que se corporifica na figura da noiva
do Cordeiro, a esposa
que desce do céu (Ap 21,1-8).
Essa primeira unidade
do anúncio da Jerusalém celeste mostra que o fim da história não está nas
forças imanentes e dialéticas que se exprimem nos conflitos econômicos,
políticos e ideológicos. Não se trata de uma simples transformação imanente. A
Noiva apresenta a sua novidade por sua origem celeste que lhe confere uma
novidade transcendente (v. 2). Aparece no interior da nova Terra e é nova como
o mundo na qual se situa. É a manifestação plena da realidade “povo”: sociedade
que supera a dominação, a dispersão e a morte. O povo se realiza pela
participação efetiva na comunhão de vida plena. Nele realiza-se a presença de
Deus que acontece na ação livre e solidária do amor mútuo.
A
nova Jerusalém possui, então, uma primeira qualidade: vem do céu e é
inteiramente nova (v. 2). Há uma descontinuidade com o mundo antigo. E uma nova
criação, inteiramente gratuita, cuja origem está no poder e no amor de Deus.
Esta novidade é a comunhão de um povo santo, libertado de toda sorte de mal (Ap
21,3.7-8). A Noiva é o
povo santo que vem das lutas e do meio da tribulação causada pelo poder do
Dragão, da Besta que é o Estado imperialista, e da ideologia do falso profeta
que cimenta e justifica tal imperialismo. O povo santo é aquele que
encarna e continua o testemunho de Jesus contra as forças da idolatria e da
morte (cf. Ap 7,14-17).
Essa união entre
Noiva e seu Esposo contém, portanto, alguns elementos básicos que constituem a
perfeição fundamental da Cidade santa (v. 2):
— É a consumação
plena da presença de Deus que se comunica com os homens: Ele se doa em comunhão
e habita com eles (como no antigo templo e na tenda do deserto). A presença é a
comunicação plena e sem limites da vida (v. 3).
—
Realiza-se, assim, a união plena da Aliança cuja fórmula clássica é relembrada:
a união realiza-se pelo “Deus-com-eles”, o Emanuel.
— Não existe mais
sofrimento ou qualquer sorte de privação (v. 4), pois o pecado e a morte são
erradicados e o povo santo vive da perfeição de seu Esposo e tem acesso ao
fruto da árvore da vida.
— A Vida é comunicada
plenamente e os homens tornam-se Filhos de Deus, participando de seu próprio
ser e realizando a vocação plena do Povo-Filho como anunciavam os profetas (Os
11,1ss; Dt 14,1ss; Ap 21,5). Essa filiação é a participação plena na realidade
da vitória do Messias-Rei que é o Filho por excelência e que vence todos os
inimigos. A Vida na Jerusalém celeste é, pois, a plenitude da vida deste povo
como sacerdotes e reis para Deus, na união com a vida e com a ação do Messias
vitorioso por sua morte e ressurreição (cf. Ap 1,6; 21,7).
É a esperança desta
Cidade santa que anima e sustenta o testemunho das comunidades: o Espírito,
constantemente, lhes relembra o seu nome e lhes refaz a imagem, no interior das
cidades terrestres (cf. Ap 3,12).
3. A Cidade perfeita
A
realidade final da história é a
perfeição da Cidade, o ápice da atividade humana no tempo. A história começou
num jardim, símbolo do trabalho do clã camponês sem exploração, e como a célula
fundamental da sociedade livre e solidária (cf. Gn 2-3). O fim da história é a
Cidade santa e perfeita. Ela é o quadro do novo céu e da nova terra. É a
realidade plena do mundo da ressurreição, a glória da humanidade resgatada da
corrupção e da morte e chamada a participar da glória do Deus Trino, no acesso
à Vida imortal. Este é o
anúncio da segunda parte da última visão que proclama a glória da Jerusalém celeste:
Ap 21,9-27.
A glória é a
expressão e o sinal da função da Cidade perfeita de abrigar e fazer existir a
Nova Humanidade, na união da Vida com o Ressuscitado. A ideia da glória — imagem
que vem dos profetas (cf. Is 60;62) — quer evocar a plenitude da perfeição e
brilho de seu ser participante do próprio ser divino (v. 11).
Os
vv. 12-14 falam da estrutura básica da Cidade (cf. Is 54,11; 62,6) cuja
característica é o nome dos Apóstolos inscritos em seus fundamentos. Depois, à
maneira de Ezequiel 40,3-43, descrevem as medidas que indicam sua harmonia
estável e permanente (vv. 15-17): estabilidade harmônica que evoca a eternidade
da tota simul et perfecta
possessio.
Os
vv. 18-21 afirmam a beleza do resplendor da glória messiânica que chega ao seu
fim. Esta Cidade ao precisa mais de mediações,
porque a Vida é partilhada na visão direta de Deus (vv. 22-23). Esta perfeição
é o ponto de chegada e a aspiração de todas as nações que para lá fazem sua
caminhada (vv. 24-27).
A Cidade nova,
perfeita e santa, realiza os elementos da sociedade ideal. Ela é a expressão
efetiva do novo ser redimido, é a nova criação. É a plenitude da ação e dos
valores humanos que se exprimem na harmonia de sua forma arquitetônica.
Encontram-se aí todas as nações, as riquezas da criação e a universalidade dos
povos reunidos num só povo, em Deus e em Cristo. A Cidade nova é a sociedade
perfeita, sem classes e sem mediações, no gozo pleno da Vida e da Santidade do
próprio Deus. E a realização definitiva, sem sombras e sem obstáculos, da
realidade “povo”.
A
nova Jerusalém pertence ao futuro. Não se manifestou ainda. Mas a visão de sua
perfeição é o modelo e a medida que anima e impulsiona a vida de todas as
cidades e do universo humano inteiro. Existe, porém, uma realização antecipada
e misteriosa dessa Cidade na vida do povo, seguidor do testemunho de Cristo,
com suas características típicas: apostolicidade,
catolicidade, santidade e unidade. A Cidade santa é a realização
plena dessas características que, aliás, são o fundamento de todo projeto de
sociedade que quer ser a expressão e o quadro concreto da vida de um povo livre
e solidário.
A
perfeição da Cidade celeste é a utopia que anima e inspira a marcha do povo de
Deus na história. A função dessa visão do mundo novo é criticar os modelos
atuais da vida social e procurar os meios para realizar, o mais possível, a
perfeição proclamada. A crítica dos modelos e das mediações estimula os projetos e os instrumentos
colocados a serviço da construção e manutenção da vida solidária do povo. As
mediações devem estar a serviço da comunhão e da vida partilhada em comum, por
todos, sem discriminação e sem exclusão. De fato, a característica principal é
a perfeição e a harmonia. Perfeição harmônica (vv. 15-17) e esplendorosa como o
próprio ser divino (vv. 18-21). A Cidade perfeita representa o ápice da
atividade humana levada à plenitude. A forma arquitetônica e as medidas evocam
a função e sentido da ciência, da técnica, da arte e da cultura em vista da
comunhão e da vida coletiva. Os valores humanos são assumidos e transformados
na sua plenitude (cf. Gaudium
et Spes, 38-39).
A comunhão se realiza
na união imediata, sem mediações. Não há mais templo, nem mediação alguma (vv.
22-23). Todas as mediações necessárias para constituir o povo (sacrifício,
clero, reis, polícia, classes, exércitos etc.) não existirão mais. Existe
somente o povo, régio e sacerdotal, participando diretamente da Vida de Deus,
em Cristo, na força do Espírito. É a humanidade ideal que os povos procuram em
suas organizações sociais e mediações institucionais. É a comunhão plena na
verdade e no amor de uns pelos outros, sem nenhuma coerção, sem lei ou qualquer
instituição. É simplesmente a união e a comunhão com a Vida de Deus e do
Ressuscitado.
4. A plenitude da Vida
No interior da nova
Jerusalém o autor apresenta a sua sétima perfeição. É a conclusão da visão do
futuro: Ap 22,1-5.
De Deus vem a vida, e
com a vida a paz (v. 3a). A presença de Deus (v. 3c) e a visão face a face de
Deus (v. 4a) constituem como que o ato final da vida da nova Cidade. O nome de
Deus é comunicado (v. 4b). Ele será a luz (v. 5a). O paraíso é reencontrado
onde o novo Adão, Esposo da nova Eva, lhe dá do fruto da árvore da vida que
provém de Deus Trino que se comunica em totalidade.
Assim, no interior da
Cidade está o mistério da Vida em plenitude. Os homens veem a Deus diretamente,
e com ele vivem a sua Vida imortal. No centro desse mundo totalmente novo está
o Deus Pai, Filho e Espírito. O Espírito como um rio que vem do trono de Deus e
do Cordeiro, procede do Pai e do Filho, e comunica a plenitude da Vida de quem
vive na unidade perfeita (vv. 1-2). Nessa comunicação podem os homens possuir a
mesma vida, numa visão imediata do ser de Deus e do Ressuscitado (v. 3), sendo
divinizados pelo nome divino que está inscrito em seus próprios seres.
5. A utopia e o testemunho
A visão da Jerusalém
celeste é estímulo e base para o testemunho das comunidades cristãs perseguidas
e dominadas pelo imperialismo do Estado romano. Aí o testemunho encontra o
modelo e a medida da ação libertadora. A função social da utopia consiste em
orientar esta ação para desestruturar a força imperialista do Estado e
transformar a cidade prostituta em Noiva do Cordeiro.
Assim, a primeira
dimensão da utopia revela a natureza e a missão do povo, na figura da Esposa.
Na realidade social “povo” há algo que escapa ao alcance das ciências humanas.
Existe uma realidade transcendente. O povo só se forma pelo dom da Palavra e do
Espírito. O povo se constrói pelo amor que supera os conflitos e as lutas
econômicas, políticas e ideológicas. Povo é comunhão que é possível pela
presença e ação do Espírito no processo social. A tarefa básica do testemunho
consiste em colocar essa realidade como critério da ação e da organização das
forças e dos organismos sociais. Pois, sendo fruto e expressão histórica do
amor, o povo é um sujeito coletivo que liberta da dominação, da dispersão e da
divisão, e constrói a comunhão na reprodução da vida comum.
Inspirado na utopia
da Cidade perfeita, o testemunho retira do poder a sua força coercitiva de
destruição dessa vida coletiva. É a tarefa de transformar o poder em serviço de
defesa e de sustento da vida, na justiça e solidariedade. As mediações e
instituições políticas estão subordinadas e ao serviço do povo. É tarefa do
testemunho libertar do imperialismo do Estado cujo poder enraíza-se na força do
“Dragão” e manifesta sua força através da “segunda Besta”. O testemunho
desestrutura essa tríade para abrir o caminho da Liberdade e da Vida. O
testemunho atinge o poder em suas manifestações estruturais, na sua motivação
ideológica, chegando até a sua raiz antropológica mais profunda (cf. Jo
8,44ss):
— A força destruidora
e violenta instala-se no poder e na estrutura do Estado que impõe a dominação
absoluta, destruindo as relações de justiça e de comunhão. Esse poder faz da
cidade a corporificação da “prostituição”. O primeiro passo do testemunho
consiste em atingir esse nível do poder e destruí-lo pela força da palavra de
Deus e pela promessa que vem da ressurreição (cf. Ap 19,19).
—
O poder “embriaga”, ou envolve a totalidade da organização e das relações
sociais, através do cimento e da força do falso profeta, ou da ideologia (cf.
Ap 19,20). Esta opera maravilha, seduz, imprime a imagem da primeira Besta e
leva a aceitar o imperialismo dominador como algo de natural e inquestionável.
Faz-se mister suprimir o “espírito” que sustenta
a dominação e motiva a supressão da liberdade e da vida do povo.
O testemunho na luta política é basicamente uma luta ideológica que dá a
dimensão social à negação da Vida e da Cidade perfeita. Essa luta ideológica
manifesta as dimensões do “anti-Reino de Deus”.
— É necessário, pois,
levar a força do testemunho a penetrar e atingir a raiz mais profunda do
imperialismo e da dominação. O importante está na destruição da força que vem
do “Dragão”, o pai da mentira (cf. Ap 20,1-3; Jo 8,44). O testemunho político
tem uma dimensão antropológica sem a qual não se mudam e não se constroem novas
relações sociais. Essa raiz está no conhecimento e no discernimento que
reintegra as pessoas e torna possível a realização da comunhão que constitui a
vida da Esposa do Cordeiro (cf. Rm 1,28; Ap 20,4). É assim que o Reino
Messiânico começa a se manifestar desde já no processo histórico, a caminho da
consumação futura.
A
missão do povo de Deus consiste, pois, na realeza e na vida de um povo sacerdotal (cf.
Ap 20,4 e 6). O testemunho atualiza o julgamento e transforma o mundo exercendo
a realeza de Cristo. Exerce a tarefa sacerdotal, destruindo e afastando a
violência recíproca e tirando-a dos mecanismos e das instituições coletivas. O
testemunho sacerdotal é um serviço de resgate do povo, abafado e suprimido pela
força do poder e do espírito ideológico que o justifica. A liberdade é a raiz
da Vida que frutifica no serviço e na doação mútua superando os germes da
“segunda morte” (cf. Ap 20,6) e construindo a unidade da comunhão,
características da união com Cristo, nas “bodas do Cordeiro” que ele promete e
para a qual ele convida e conduz.*
_____________________
* Cf. G. GORGULHO
e A. F. ANDERSON. Não
tenham medo Apocalipse. 9ª ed.
São Paulo: Edições Paulinas, 1986, pp. 184-200.
Fr. Gilberto
Gorgulho, op
https://www.vidapastoral.com.br/artigos/temas-biblicos/a-humanidade-nova/
Nenhum comentário:
Postar um comentário