O papa Francisco revisa a teologia do
inferno
Por: Cesar Sanson
"A Igreja oficial defende desde o século XV que o castigo do
inferno destinado aos pecadores é 'eterno', ideia iniciada no século VI
com Santo Agostinho. O papa Francisco acaba de
revisar tal doutrina católica ao afirmar que a Igreja 'não condena para
sempre'”. O comentário é de Juan Arias em artigo no El
País, 20-02-2015.
Eis o artigo.
Sem necessidade de grandes encíclicas, com suas falas habituais, Francisco está
realizando uma revisão da Igreja para aproximá-la de suas raízes históricas.
Deu o último golpe de graça em um momento um pouco mais solene do que
suas conversas habituais com os jornalistas. Dessa vez aproveitou, dias atrás,
seu discurso aos novos cardeais para recordar-lhes que o castigo do inferno com
o qual a Igreja atormenta os fiéis não é “eterno”.
Segundo Francisco, no DNA da Igreja de
Cristo, não existe um castigo para sempre, sem retorno, inapelável.
O Papa jesuíta é formado em teologia, ainda que não tenha feito o
doutorado. Dele, talvez hoje o papa renunciante e doutor em teologia, Bento
XVI, possa dizer o que afirmava sobre seu antecessor, o papa polonês João
Paulo II: que sabe pouca teologia.
Durante um jantar informal em Roma, na casa de um jornalista alemão seu
amigo, Ratzinger confessou, efetivamente, aos poucos comensais
presentes, que o papa Wojtyla “era mais poeta que teólogo” e
que ele, como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cargo que ocupava
na época, precisava revisar seus discursos e documentos papais para que não
escapasse “alguma imprecisão teológica”.
Francisco é, entretanto, um fiel seguidor da teologia inspirada no
cristianismo original, que era, afirma ele, não o da “exclusão”, mas o da
“acolhida” de todos, até mesmo dos maiores pecadores. É inspirado por aquele
cristianismo antes que a teologia liberal do profeta Jesus de Nazaré fosse
contaminada pela severa teologia aristotélica e racional.
Não foi um lapso a afirmação de Francisco aos cardeais
de que a Igreja “não condena ninguém para sempre”, o que equivale a dizer que o
castigo de Deus não é “eterno”, já que as portas da Igreja da misericórdia e do
perdão estão sempre abertas ao pecador.
O Papa que está exigindo aos seus, começando pelos cardeais, a ir ao
encontro daqueles que o mundo esquece e marginaliza, ao invés de perder seu
tempo nos palácios do poder, sabe que essa doutrina teológica sobre a
eternidade e irreversibilidade das penas do inferno, foi sofrendo mudanças ao
longo da História da Igreja.
Até o século III a Igreja nunca defendeu a doutrina da eternidade do
inferno. Pelo contrário, o exegeta das Escrituras, Orígenes (250)
defendeu a doutrina da apocatástase, segundo a qual o Deus dos Evangelho perdoa
sempre. Orígenes baseava-se na parábola do Filho pródigo que
volta aos braços do pai e é recebido com tanta festa que causa a inveja do
irmão bom e fiel.
Somente no século VI começa a aparecer o conceito de “condenação
eterna”, sobretudo com Santo Agostinho, o mesmo que defendia que as
crianças mortas sem batismo deveriam ir para o inferno. Diante dos protestos
das mães dessas crianças, a Igreja criou a doutrina do Limbo, um lugar onde
essas crianças “não gozam nem sofrem”, algo completamente estranho aos Evangelhos
Em nossos dias, o falecido papa polaco, João Paulo II, no
Catecismo da Igreja Universal nascido das discussões do Concílio Vaticano II,
aboliu o Limbo. De acordo com comentários de amigos pessoais do papa, Wojtyla nunca
aceitou que uma irmã sua nascida morta e que não pôde ser batizada, pudesse não
estar no céu por ter morrido antes de ser libertada do pecado original com o
batismo.
A família do futuro Papa era muito católica e, fiel àquela doutrina, nem
sequer enterraram o corpo da pequena por não ter podido receber o batismo. Ele
mesmo confirmou quando ao falar do túmulo no qual gostaria de juntar os restos
de toda sua família, frisou que faltava somente sua irmãzinha, “pois havia
nascido morta”. Foi jogada no lixo.
Foi o Concílio de Florença no século XV que rubricou definitivamente a
doutrina de Santo Agostinho de um castigo e um inferno eterno.
Já no século V, entretanto, São Jerônimo estava convencido de
que a doutrina do inferno com a misericórdia de Deus não era conciliável. De
todo modo, pedia-se aos sacerdotes e bispos que continuassem defendendo a
doutrina tradicional “para que os fiéis, por temor ao castigo do inferno
eterno, não pecassem”.
Hoje, o papa Francisco deu um salto de séculos,
colocou-se ao lado das primeiras comunidades cristãs ainda embebidas da
doutrina do misericordioso profeta de Nazaré, que veio “para salva e não para
condenar”.
Os primeiros cristãos sabiam que Jesus havia sido duro
e severo com a hipocrisia e com o poder tirano, enquanto abraçava os
marginalizados pela sociedade bem como os que a Igreja oficial de seu tempo
tachava de pecadores.
Podem parecer minúcias teológicas para os não religiosos, mas são muito
importantes para milhões de cristãos que durante séculos sofreram oprimidos
pela doutrina de um Deus tirano, sedento de castigo e de castigo eterno.
Lembro que no final dos anos 60, após escrever no jornal espanhol Pueblo um
artigo intitulado “O Deus no qual não acredito”, em que defendia que os
cristãos precisavam escolher entre Deus e o inferno eterno, já que ambos eram
conceitos inconciliáveis, sofri um duro interrogatório do então arcebispo de
Madri, Monsenhor Casimiro Morcillo, que me acusou de “ter
escandalizado os fiéis”.
Aqui no Brasil, o teólogo da libertação, Leonardo Boff, me
contou que há 16 anos o grande escritor e poeta de Pernambuco João
Cabral de Mello Neto estava para morrer e, apesar de não ser
religioso, estava angustiado naquele momento pela doutrina sobre o medo do
inferno, que lhe haviam inculcado na infância. Foi chamado para o tranquilizar. Boff,
que foi condenado ao silêncio pelo papa Bento XVI quando este
era Prefeito da Congregação da Fé, usou com o escritor as mesmas palavras que
agora o papa Francisco usa para assegurar que Deus não condena
ninguém para sempre.
Boff disse com humor ao poeta que alguém capaz de escrever a joia
literária, social e humana Morte e Vida Severina, merecia
indulgência plena na hora de se despedir da vida.
A mudança é copernicana. Hoje é um papa como Francisco que
afirma com total naturalidade que o Deus cristão “não condena ninguém para
sempre”, que é como dizer que não existem infernos eternos, uma afirmação que
há pouco tempo atrás poderia ter servido para abrir um processo contra um
teólogo e condená-lo ao ostracismo.
https://www.ihu.unisinos.br/noticias/540083-o-papa-francisco-revisa-a-teologia-do-inferno
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