sexta-feira, 28 de abril de 2023

"APRENDENDO A LIDAR COM OS SENTIMENTOS E AS EMOÇÕES: NOSSO MELHOR E MAIS EFICAZ RECURSO TERAPÊUTICO"

 

"APRENDENDO A LIDAR COM OS SENTIMENTOS E AS EMOÇÕES: NOSSO MELHOR E MAIS EFICAZ RECURSO TERAPÊUTICO"

Por Lindolivo Soares Moura(*)

   "...a reconciliação com nossas feridas passa, primeiro,  pela fase de admitir a  dor e  a raiva diante das pessoas  que  nos machucaram" [Anselm Grün].

 

A ciência psicológica nos ensina que vivenciar e poder externalizar nossos sentimentos e emoções - dá -se a isso o nome de "catarse" - não apenas se constitui num recurso terapêutico poderoso, como deve ser tido como algo natural e saudável a fazer parte do nosso cotidiano e do nosso "modus vivendi". Essa percepção, para muitos, interpretada como uma espécie de "carta branca" ou princípio do "laissez faire", não nos isenta da responsabilidade de "educá-los" e aprimorá-los continuamente, ao longo do nosso processo de convivência e  interação junto aos demais. Nesse sentido, Francis Seeburger afirma que educar uma emoção é aprender a usar a emoção certa, na intensidade certa, no momento certo, no lugar certo, com a pessoa certa, e que a ausência de um só desses quesitos pode comprometer tanto a comunicação quanto as boas intenções que estejam em jogo. Por outro lado, encontra-se à nossa disposição toda uma vasta literatura de auto-ajuda cada vez mais aprimorada e disposta a nos socorrer nessa tarefa.

Entretanto, é  preciso ter presente que "educar" uma emoção ou um sentimento pressupõe não apenas um juízo de valor prévio e consensual sobre os mesmos, como também uma espécie de "comportamento padrão" quanto à maneira tida como mais correta e adequada de se lidar com eles. De um modo geral ambas as questões costumam ser resolvidas de forma bastante simplificada, classificando-se as emoções e os sentimentos como "positivos" e "negativos". Para com os primeiros, sugere-se uma vivência tão completa e intensa quanto possível, para com os segundos, distanciar-se deles tão longínqua e rapidamente  quanto o diabo foge da cruz. A simplificação em si não nos parece ser um problema que requeira análise e apreciação crítica, já o mesmo não ocorrendo com as "categorias" utilizadas para essa classificação. Sendo mais claro: classificar as emoções e os sentimentos humanos como "positivos" e "negativos" parece-nos uma atitude simplista e de cunho acentuadamente ideológico, que do ponto de vista  terapêutico e da saúde mental pouco ou nada tem de funcional, além de contribuir para aumentar ainda mais certo "mal estar na cultura e na civilização" já denunciado pelo pai da psicanálise. Qualquer recusa em admitir esse fato equivale ao nosso ver a uma postura de radicalismo, intransigência e dogmatismo.

Que o ser humano não seja, dentre os diversos seres vivos que habitam o planeta, o único ser "senciente" - isto é, em condições de ser "afetado" e "responder" aos estímulos emocionais diversos que experimenta - este é um fato sobre o qual os últimos estudos e pesquisas têm se debruçado e chamado nossa atenção. Seja porque tal pressuposição possa não parecer tão óbvia para muitos, seja pela pouca  importância que atribuímos ao fato. Há bastante tempo o renomado e controvertido cientista Peter Singer vem insistindo na afirmação de que todos os seres vivos são seres "sencientes", e que em razão disso devem gozar do direito à vida tanto quanto qualquer ser humano, sem que possam ser sacrificados em favor da nossa sobrevivência. Segundo ele, tal direito seria uma espécie de corolário do "princípio da igualdade",  princípio este a ser também ele estendido a todos os seres vivos e sencientes. Exagero ou não, o certo é que o modo de sentir humano difere essencialmente do modo de sentir de qualquer outro ser vivo, em razão da "autoconsciência"  - e não apenas da "senciência" - que trazemos conosco, uma ferramenta reconhecidamente específica e diferenciada de nossa espécie, ao menos no que tange ao "grau", já que para certos estudiosos tampouco a inteligência seria prerrogativa exclusiva da espécie humana. É justamente ela, a autoconsciência, que nos permite analisar, avaliar e emitir juízo crítico e de valor tanto sobre nossas escolhas e atos, como também sobre nossos sentimentos, paixões e emoções.

Mas com base em que critério podemos afirmar que um determinado sentimento ou uma determinada emoção são bons ou ruins, positivos ou negativos? E quando pontos de vista divergem em decorrência da natureza distinta dos saberes sobre os quais se assentam, por quais critérios devemos continuar nos orientando e nos deixando guiar em nossa apreciação crítica? Um ministro religioso certamente proferirá um discurso diferente sobre a raiva e o ódio, daquele que brota das convicções de um profissional psicólogo ou orientador filosófico. Ocorre que no primeiro caso tem-se quase sempre em mente o perdão e a reconciliação, e ainda que no segundo também se possa perseguir esse mesmo fim, provavelmente as falas divergirão significativamente uma da outra, tanto em razão dos princípios e convicções próprios de cada um, como também das orientações que emanam da ética que sustenta suas respectivas profissões. Curiosamente, é de um monge cristão, Anselm Grün, a seguinte afirmação: "...a reconciliação com nossas feridas passa, primeiro, pela fase de admitir a dor e a raiva diante daqueles que nos machucaram. O perdão está no fim da raiva, não no seu início. [...]. Precisamos criar, primeiro, uma distância em relação ao causador do ferimento, para só então podermos enfrentá-lo face a face".

Pensamentos, sentimentos e emoções não são da mesma natureza que nossos atos, atitudes e comportamento, e tampouco permitem ser avaliados e classificados com categorias idênticas. De uma lei ou norma de natureza jurídica não se diz que é "verdadeira" ou "falsa", e sim, que é "válida" ou "inválida", como bem o demonstrou Hans Kelsen. Qualquer outra apreciação ou juízo de valor, que de um tal tipo de lei ou norma se faça, não decorrerá de uma apreciação da lei ou da norma "em si", mas certamente de sua eficácia, utilidade, conveniência ou viabilidade. Da mesma forma, pensamentos, sentimentos e emoções não são bons ou ruins, positivos ou negativos "em si mesmos", e o mero fato de se senti-los ou experimentá-los não pode e menos ainda autoriza que sejam classificados como algo ruim, negativo, imoral ou pecaminoso, qualquer que seja a área ou esfera do conhecimento que esteja em jogo na emissão desse juízo. Complica e muito, o fato de uma pessoa receber orientação ou aconselhamento de um profissional psicólogo ou orientador filosófico, de acordo com os parâmetros mencionados, e posteriormente ser instruída com ensinamentos doutrinários não só divergentes, como por vezes  diametralmente opostos, vindos do púlpito de uma Igreja, do altar de uma sinagoga ou mesquita, ou de um líder espiritual por ela reconhecido e validado como autoridade representante e mediadora do sagrado. Contribuir para a educação  e a formação das pessoas é sem dúvida algo meritório e digno de apreço, mas requer-se para isso muito mais que bom propósito, boa fé e boa intenção. Os mestres orientais costumam ser bem mais exigentes para com seus neófitos e eventuais futuros mestres, que os formadores e mestres ocidentais. Períodos de formação costumam vir acompanhados de intensos e exigentes estágios de "provação". Da mesma forma, testes cognitivos de natureza científica são considerados importantes, sem dúvida, mas costumam ocupar um degrau bem abaixo na tabela que avalia aptidão, dignidade, idoneidade e confiabilidade dos postulantes a esse tipo peculiar de "magistério".

Retomando o foco de nossa reflexão, pergunto-me por quais razões nós ocidentais somos tão temerosos e desconfiados dos sentimentos, das emoções e das paixões humanas, em geral, e da corporeidade e da sexualidade, em particular. Não consigo encontrar melhor explicação para isso, senão o fato de que somos herdeiros, "em primeiríssimo grau", de um dualismo platônico acentuadamente exacerbado entre corpo e alma, posteriormente repassado ao cristianismo por intermédio sobretudo de Santo Agostinho,  e de uma "tentativa" aristotélica de reaproximação que ao fim e ao cabo tampouco resultou exitosa, em razão sobretudo de sua "lógica" se revelar excessivamente rígida e formal em seu papel e função de "defesa da verdade". A tríade de princípios "identidade", "não-contradição e "terceiro excluído" notoriamente não favorece muito o diálogo e a dialética, menos ainda o chamado "contraditório". "O "cristianismo cristão", como diria Nietzsche, e não exatamente o "cristianismo autêntico" - que segundo ele teria morrido na cruz -  sem dúvida se deixou seduzir prevalentemente pelo primeiro e apenas num segundo plano pelo segundo, em razão das vantagens e dos "benefícios" específicos que cada um deles lhe proporcionava: o primeiro, quanto ao conteúdo, o segundo, quanto à forma. Mas as consequências dessa aproximação, sobretudo no tocante às relações entre corpo e alma, e a valoração de nossos sentimentos, paixões e emoções, nós as continuamos experimentando ainda hoje. De resto, tanto para o cristianismo dos primórdios quanto para o cristianismo contemporâneo, corpo e alma - ou corpo e espírito como se preferir -  definitivamente não parecem vir se comportando como bons "companheiros de viagem", nessa espécie de incursão -  "excursão", nem pensar! - que o espírito vem empreendendo pelo planeta há alguns milhões de anos. Essa contribuição dualística platônico-agostiniana talvez seja um bom motivo a se incorporar àqueles que levam certos teólogos e exegetas a afirmar que "se São Paulo pode ser considerado o grande teólogo do cristianismo, Santo Agostinho não permitiu que fosse o único". Apenas causa certa estranheza o fato de que São Tomás de Aquino não tenha sido incluído nessa "declaração de fé", já que ambos, "pari pari", mas sem comparativo para com os demais, são citados centenas de vezes no último Concílio Ecumênico da Igreja, o Vaticano II.

Fica também fora de dúvida o fato de que uma visão dualística, como forma de explicar a interação e as relações e entre corpo e espírito, encontrará sempre sérias dificuldades em valorar positiva e afirmativamente os sentimentos, as emoções e as paixões humanas, e isso é o que aqui mais nos interessa.  Equações que resultam dessa visão ou concepção, estabelecem que o corpo está para o espírito na mesma proporção em que o mal está para o bem, o errado está para o certo, o negativo está para o positivo e....claro, o pecado está para a graça. Assim, em estreita analogia para com o arquetípico "pecado original", é  possível que nos encontremos aqui diante da "razão original" em virtude da qual os sentimentos e as emoções humanas são e provavelmente continuarão, por largo tempo, sendo classificados de acordo com as categorias dualísticas do "negativo versus positivo". Nenhum espaço para o que, de forma alternativa, Nietzsche chamaria de "para além do bem e do mal". A lógica do "terceiro excluído" também aqui se impõe. Qualquer proposta de se lidar com os sentimentos e as emoções humanas, portanto, que não se enquadre no arcabouço dessa milenar concepção filosófico-teológica, corre o sério risco de ser considerada uma verdadeira aberração em forma de contradição, e sofrerá certamente forte resistência quanto à sua aceitação. Em tempos não tão distantes, a re[tali]ação certamente iria muito além dessa mera postura de resistência. Ainda assim, parafraseando um certo "Che", "hay que insistir siempre, sin perder la esperanza jamás".

A forma como a cultura, a tradição, e sobretudo certas religiões e modalidades de espiritualidade, têm nos ensinado e orientado a lidar com nossos  sentimentos e nossas emoções - incluindo nesse bojo, nossos "pensamentos" -  tem sido francamente inadequada e ineficaz, para não dizer desastrosa, do ponto de vista terapêutico e da saúde mental. Provérbios e ditos populares do tipo "homem que é homem não chora", "quem não chora não mama", "roupa suja se lava em casa", são apenas alguns exemplos arraigados tanto no senso comum, como em meio à cultura tida como "nobre" e erudita. Tomemos apenas o último exemplo citado para fins de uma rápida consideração. Se o ambiente familiar fosse o mais favorável para a resolução de problemas conjugais e familiares, os consultórios e clínicas não estariam sendo tão requisitados, e os "confessionários" tão assiduamente frequentados, como de fato tem ocorrido ultimamente. Isso, sem se levar em conta que para muitos - quase sempre os que realmente mais necessitam - acompanhamento psicológico e psiquiátrico é coisa para maluco e gente ruim da cabeça. E o que mais chama a atenção é que essa mentalidade percorre mais as classes instruídas e teoricamente de boa formação, que aquelas menos providas de tais recursos. Por outro lado, nada parece mais difícil de ser rematrizado ou  ressignificado que certos conceitos oriundos do jargão teológico-homilético de certas religiões e  modalidades de  espiritualidade. "Culpa", "pecado" - "capital", "mortal",  precisava tanta gravidade? -  "inferno", purgatório, "condenação" - precisava ser  "eterna"? - são apenas alguns exemplos que podem levar uma mente ao delírio e uma consciência literalmente "ao surto", tamanho o comprometimento e o desequilíbrio que são potencialmente capazes de provocar.

Muitas das chamadas "noites escuras e tenebrosas" da alma - não necessariamente todas, é claro -  assim como as "áridas e torturantes" experiências vivenciadas por grandes ascetas, religiosos e místicos, não passaram certamente de experiências de muita dor e de muito sofrimento psico-físico, decorrentes do esforço "sobrehumano" em enfrentar e tentar barrar as incursões de forças de natureza sexual e libidinal, tidas como demoníacas  e ameaçadoras da  castidade, da vocação e da virtuosidade. De nenhum modo estamos subestimando e menos ainda descartando uma eventual presença do mal e de "suas forças" a irromper em meio à vastidão das experiências humanas. Terapias auto-suficientes e auto-realizadoras podem sem dúvida representar uma sutil forma de narcisismo e até de "idolatria", como adverte Sandro Spinsanti em sua introdução à obra "Jesus Psicoterapeuta", de Hanna Wolff. O outro lado perverso dessa mesma moeda, entretanto, consiste em continuar alimentando e perpetuando as neuroses produzidas por um tipo de religiosidade e de espiritualidade que acabam afastando as pessoas da fonte sadia e saudável de sua experiência afetivo-emocional, notadamente no tocante à vivência de seus sentimentos e de suas emoções. Às experiências e forças de tal tipo, Deepak Chopra as classifica como verdadeiros "assassinos da mente". Se esse conceito e essa expressão são ou não adequados, pode-se abrir discussão, mas o certo é que psicólogos, terapeutas e orientadores filosóficos, assim como aconselhadores e ministros religiosos diversos, têm ultimamente procurado enfrentar questões do tipo de uma forma conjugada, cooperativa e diferenciada, sem se sentirem mutuamente ameaçados. Afinal, saúde psico-física, bem-estar, libertação e "salvação", são conceitos e dimensões do humano perfeitamente conciliáveis, bastando para isso que as mentes e as mentalidades se mantenham abertas e flexíveis. Afinal, "a mente que se abre para uma nova ideia - como afirmava Oliver Holmes - jamais retorna às suas antigas dimensões".

Classificar grande parte do repertório de nossos sentimentos e emoções como "negativos", pecaminosos" ou "imorais", simplesmente porque os experimentamos e nos permitimos vivenciá-los, não significa apenas navegar contra a correnteza ou remar contra a maré. As diversas ciências que prestam ajuda, dentre elas a própria psicologia, vão cada vez mais se dando conta de que a "sublimação", tantas vezes sugerida como alternativa de solução para sentimentos e emoções tidos como negativos e inadequados, continua válida mas pode não ser de fato a melhor delas. Isso porque, como ensina Anselm Grün, "integração é mais que sublimação. [...] A pessoa que integra em sua alma tudo o que descobre dentro de si é verdadeiramente íntegra. É pura e completa". Essa ressignificação a que vem submetido o conceito de "integridade", por Anselm Grün,  denuncia o quanto tratamos e lidamos de maneira equivocada com nossos sentimentos, nossos afetos e nossas emoções. Muito se fala da importância de se viver e elaborar o luto, a dor e a perda, como recurso terapêutico privilegiado, com vistas à sua superação e eventual cura. "Vivenciar", no sentido mencionado, não significa outra coisa senão "sentir", "experimentar", e não apenas "admitir" ou "aceitar" de forma resignada sua presença em nós. Tampouco significa simplesmente "sublimar", e menos ainda "negar" ou "exorcisar", pois em ambos os casos percebe-se implícito um juízo de valor negativo, reprovativo e ao fim e ao cabo condenatório. E é por aí que se instalam, na mente e no coração, os monstros da auto-culpabilidade, da automartirização e da auto-condenação. E todos sabemos que a forma de se lidar com essa "tríade", historicamente não foi e não tem sido a mais adequada e a mais eficaz. Alguns mosteiros e ordens religiosas conservam ainda, como parte de seu "patrimônio histórico cultural", exemplares de instrumentos, "disciplinas" e "suplícios" utilizados como tentativa última de aquietar e domesticar pensamentos, sentimentos, emoções e paixões, tidos como "contrários à natureza", porque libidinosos e pecaminosos. Tais instrumentos e "disciplinas" pouco ou nada diferem daqueles utilizados para com mentes rebeldes, criminosas, pessoas escravizadas, aprisionadas e outros "gêneros" mais. O problema é que quando se equivoca na "receita", quase sempre se equivoca no "modo de preparo" e sobretudo na exatidão do "ponto". Do que pouco se fala, pouco se sabe, mas é certo que alguns saíam de suas "celas", tão auto-castigados e auto-fustigados, que sequer passavam pelo socorro médico, indo direto para o cemitério - na linguagem mais  requintada da espiritualidade, "abrigo dos mortos". Difícil mesmo, em casos do tipo, era saber se se tratava de "provação divina" ou "tentação demoníaca". Como "in dubio, pro reo", o ônus  recaía quase sempre na conta do "pai da mentira", o enganador por natureza. É possível conjecturar que certas modalidades de "automutilação", nos tempos atuais, talvez não passem de uma "versão moderna" dessa forma exdrúxula de autopunição de tempos idos.

À guisa de conclusão: céus, infernos e purgatórios, assim como pecado, culpa e condenação, sempre fizeram parte, como "pratos prediletos" do cardápio de certo número de religiões e de certos tipos de espiritualidade. Poucas são aquelas que se guiam e se  fazem nortear por uma favorável e saudável integração entre corpo e mente, corpo e espírito, ou corpo e alma, como se prefira. Para Platão e sua vertente agostiniana, o corpo é cárcere e privação, às quais o cristianismo acrescentou  provação e tentação. O afirmado vale como "regra geral", é bom que se diga, visto que o cristianismo admite a possibilidade de uma ressurreição "gloriosa" e "transfigurada"  desse nosso "pobre corpo mortal"; jamais, entretanto, nos moldes da "corporeidade" e "mundanidade" com que somos constrangidos e de certa forma obrigados a assumir, enquanto percorremos nossa jornada por "esse vale de lágrimas". Apesar dessa "brecha ", tal visão e tal crença, independentemente de sua facticidade ou não - só o saberemos "post mortem", evidentemente - nos parecem ainda pobres e insuficientes, pois pouco contribui para uma autêntica experiência de integridade e de integração entre ambos, "já nesta e não apenas na outra vida", tal como sugere Anselm Grün. Tem ainda o condão de desembocar numa antropologia comprometida em uma de suas principais dimensões: aquela relacionada aos nossos afetos e à nossa afetividade, por onde permeiam nossos pensamentos , sentimentos, emoções e paixões, e outras tantas experiências da sensibilidade que nosso ser nos proporciona. Lamentavelmente a concepção de "pecado" arraigada sobretudo em certas tradições religiosas, tende a macular tudo que toca, numa ação exatamente oposta à do "menino do dedo verde", de Maurice Druon, que na visão otimista e paradisíaca do autor transforma em flores tudo que seu dedo toca e alcança. De um tal poder maculador atribuído ao pecado, era inevitável que Jesus e Maria fossem preservados. E se necessário era: "fiat!". Assim foi feito! Aos demais mortais, resta disponível a penitência, seja como atitude seja como sacramento, e a promessa de salvação final.

 

Sob esse aspecto, há que se convir que o assim chamado Antigo Testamento, pelos cristãos, curiosamente se revela "mais humano", mais compreensivo e mais compassivo com as emoções e os sentimentos humanos, do que o Novo. Não há,  e tampouco parece disso haver indícios, de que haja ali uma "classificação prévia" a ser aplicada aos pensamentos, sentimentos, emoções e paixões do Criador. Deus tanto se manifesta como um ser que ora ri, chora, é fiel, se compadece e eternece, como também em outros momentos se irrita, enraivece, enfurece,  experimenta decepção, frustração, ódio, vingança e tantos outros "modos de ser", "se manifestar" e "se revelar". O Jesus histórico talvez experimentasse tudo isso - pois não nos é dito que ele "experimentou e vivenciou 'em tudo' a condição humana"? - mas a teologia posterior, provavelmente mais preocupada consigo mesma que em ser fiel à historicidade, parece ter optado por preservá-lo desses sentimentos e dessas emoções "menos nobres", "demasiado  humanas", diria Nietzsche, provavelmente com o fito de que a divindade que trazia consigo não fosse "arranhada", "desgastada", e menos ainda "comprometida" por esse lado tido como nada virtuoso de nossa humana condição.

Rematrizar e ressignificar, até que se nos convença do contrário, é uma prerrogativa tipicamente humana. Anselm Grün é um exemplo notório dessa capacidade, que todavia exige flexibilidade de espírito e sobretudo boa dose de coragem, tendo-se presente que  vivemos em um mundo em que tudo "flui" numa velocidade e profundidade que deixariam Heráclito realizado, por ver corroborada sua teoria, mas também desconcertado, por certamente jamais haver imaginado que seria num ritmo tão profundo e tão acelerado. "Desafiar" essa postura dicotômica "platônico-agostiniana" entre corpo e alma, que se mantém viva através de certa filosofia e de certas religiões e certas formas de espiritualidade, assim como ressignificar a maneira de conceber e lidar com nossos sentimentos e emoções, é desafio e tarefa para poucos. Afirmar, como faz Grüm, que "não apenas temos um corpo, somos corpo" e que precisamos aprender a descobrir nosso corpo "como o parceiro mais importante em nosso caminho espiritual", e que "quando queremos nos abrir para Deus, precisamos começar com o corpo", pode parecer sem dúvida pouco "palatável" e difícil de ser digerido para muitas mentes. Mas quando quem nos sugere pensar, sentir e agir a partir dessa "nova ordem" de crenças, concepções e percepções, não é um cientista, um filósofo ou um profissional psicólogo, mas um religioso e monge conhecido e reconhecido em quase todo o mundo, esse convite vem carregado de um significado particularmente especial. A isso se pode sem dúvida chamar de "crescimento espiritual", em cujo ápice se dá o despertar máximo e pleno de nossa consciência. Toda verdadeira e autêntica libertação talvez comece por aqui, e se essa libertação será coroada com o que se soe chamar de "salvação", por que não? - bem-vinda seja!

(*) Reflexão enviada de Vitória(ES) via whatsapp.

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