"APRENDENDO
A LIDAR COM OS SENTIMENTOS E AS EMOÇÕES: NOSSO MELHOR E MAIS EFICAZ RECURSO
TERAPÊUTICO"
Por Lindolivo
Soares Moura(*)
"...a reconciliação com nossas
feridas passa, primeiro, pela fase de
admitir a dor e a raiva diante das pessoas que nos
machucaram" [Anselm Grün].
A ciência psicológica nos ensina que
vivenciar e poder externalizar nossos sentimentos e emoções - dá -se a isso o
nome de "catarse" - não apenas se constitui num recurso terapêutico
poderoso, como deve ser tido como algo natural e saudável a fazer parte do
nosso cotidiano e do nosso "modus vivendi". Essa percepção, para
muitos, interpretada como uma espécie de "carta branca" ou princípio
do "laissez faire", não nos isenta da responsabilidade de
"educá-los" e aprimorá-los continuamente, ao longo do nosso processo
de convivência e interação junto aos
demais. Nesse sentido, Francis Seeburger afirma que educar uma emoção é
aprender a usar a emoção certa, na intensidade certa, no momento certo, no
lugar certo, com a pessoa certa, e que a ausência de um só desses quesitos pode
comprometer tanto a comunicação quanto as boas intenções que estejam em jogo.
Por outro lado, encontra-se à nossa disposição toda uma vasta literatura de
auto-ajuda cada vez mais aprimorada e disposta a nos socorrer nessa tarefa.
Entretanto, é preciso ter presente que "educar"
uma emoção ou um sentimento pressupõe não apenas um juízo de valor prévio e
consensual sobre os mesmos, como também uma espécie de "comportamento
padrão" quanto à maneira tida como mais correta e adequada de se lidar com
eles. De um modo geral ambas as questões costumam ser resolvidas de forma
bastante simplificada, classificando-se as emoções e os sentimentos como
"positivos" e "negativos". Para com os primeiros, sugere-se
uma vivência tão completa e intensa quanto possível, para com os segundos,
distanciar-se deles tão longínqua e rapidamente
quanto o diabo foge da cruz. A simplificação em si não nos parece ser um
problema que requeira análise e apreciação crítica, já o mesmo não ocorrendo
com as "categorias" utilizadas para essa classificação. Sendo mais
claro: classificar as emoções e os sentimentos humanos como
"positivos" e "negativos" parece-nos uma atitude simplista
e de cunho acentuadamente ideológico, que do ponto de vista terapêutico e da saúde mental pouco ou nada
tem de funcional, além de contribuir para aumentar ainda mais certo "mal
estar na cultura e na civilização" já denunciado pelo pai da psicanálise.
Qualquer recusa em admitir esse fato equivale ao nosso ver a uma postura de
radicalismo, intransigência e dogmatismo.
Que o ser humano não seja, dentre os
diversos seres vivos que habitam o planeta, o único ser "senciente" -
isto é, em condições de ser "afetado" e "responder" aos
estímulos emocionais diversos que experimenta - este é um fato sobre o qual os
últimos estudos e pesquisas têm se debruçado e chamado nossa atenção. Seja
porque tal pressuposição possa não parecer tão óbvia para muitos, seja pela
pouca importância que atribuímos ao
fato. Há bastante tempo o renomado e controvertido cientista Peter Singer vem
insistindo na afirmação de que todos os seres vivos são seres
"sencientes", e que em razão disso devem gozar do direito à vida
tanto quanto qualquer ser humano, sem que possam ser sacrificados em favor da
nossa sobrevivência. Segundo ele, tal direito seria uma espécie de corolário do
"princípio da igualdade",
princípio este a ser também ele estendido a todos os seres vivos e
sencientes. Exagero ou não, o certo é que o modo de sentir humano difere
essencialmente do modo de sentir de qualquer outro ser vivo, em razão da
"autoconsciência" - e não
apenas da "senciência" - que trazemos conosco, uma ferramenta
reconhecidamente específica e diferenciada de nossa espécie, ao menos no que
tange ao "grau", já que para certos estudiosos tampouco a
inteligência seria prerrogativa exclusiva da espécie humana. É justamente ela,
a autoconsciência, que nos permite analisar, avaliar e emitir juízo crítico e
de valor tanto sobre nossas escolhas e atos, como também sobre nossos sentimentos,
paixões e emoções.
Mas com base em que critério podemos
afirmar que um determinado sentimento ou uma determinada emoção são bons ou
ruins, positivos ou negativos? E quando pontos de vista divergem em decorrência
da natureza distinta dos saberes sobre os quais se assentam, por quais
critérios devemos continuar nos orientando e nos deixando guiar em nossa
apreciação crítica? Um ministro religioso certamente proferirá um discurso
diferente sobre a raiva e o ódio, daquele que brota das convicções de um
profissional psicólogo ou orientador filosófico. Ocorre que no primeiro caso
tem-se quase sempre em mente o perdão e a reconciliação, e ainda que no segundo
também se possa perseguir esse mesmo fim, provavelmente as falas divergirão
significativamente uma da outra, tanto em razão dos princípios e convicções
próprios de cada um, como também das orientações que emanam da ética que
sustenta suas respectivas profissões. Curiosamente, é de um monge cristão,
Anselm Grün, a seguinte afirmação: "...a reconciliação com nossas feridas
passa, primeiro, pela fase de admitir a dor e a raiva diante daqueles que nos
machucaram. O perdão está no fim da raiva, não no seu início. [...]. Precisamos
criar, primeiro, uma distância em relação ao causador do ferimento, para só então
podermos enfrentá-lo face a face".
Pensamentos, sentimentos e emoções não
são da mesma natureza que nossos atos, atitudes e comportamento, e tampouco
permitem ser avaliados e classificados com categorias idênticas. De uma lei ou
norma de natureza jurídica não se diz que é "verdadeira" ou
"falsa", e sim, que é "válida" ou "inválida",
como bem o demonstrou Hans Kelsen. Qualquer outra apreciação ou juízo de valor,
que de um tal tipo de lei ou norma se faça, não decorrerá de uma apreciação da
lei ou da norma "em si", mas certamente de sua eficácia, utilidade,
conveniência ou viabilidade. Da mesma forma, pensamentos, sentimentos e emoções
não são bons ou ruins, positivos ou negativos "em si mesmos", e o
mero fato de se senti-los ou experimentá-los não pode e menos ainda autoriza
que sejam classificados como algo ruim, negativo, imoral ou pecaminoso,
qualquer que seja a área ou esfera do conhecimento que esteja em jogo na
emissão desse juízo. Complica e muito, o fato de uma pessoa receber orientação
ou aconselhamento de um profissional psicólogo ou orientador filosófico, de
acordo com os parâmetros mencionados, e posteriormente ser instruída com
ensinamentos doutrinários não só divergentes, como por vezes diametralmente opostos, vindos do púlpito de
uma Igreja, do altar de uma sinagoga ou mesquita, ou de um líder espiritual por
ela reconhecido e validado como autoridade representante e mediadora do
sagrado. Contribuir para a educação e a
formação das pessoas é sem dúvida algo meritório e digno de apreço, mas
requer-se para isso muito mais que bom propósito, boa fé e boa intenção. Os
mestres orientais costumam ser bem mais exigentes para com seus neófitos e
eventuais futuros mestres, que os formadores e mestres ocidentais. Períodos de
formação costumam vir acompanhados de intensos e exigentes estágios de
"provação". Da mesma forma, testes cognitivos de natureza científica
são considerados importantes, sem dúvida, mas costumam ocupar um degrau bem
abaixo na tabela que avalia aptidão, dignidade, idoneidade e confiabilidade dos
postulantes a esse tipo peculiar de "magistério".
Retomando o foco de nossa reflexão,
pergunto-me por quais razões nós ocidentais somos tão temerosos e desconfiados
dos sentimentos, das emoções e das paixões humanas, em geral, e da corporeidade
e da sexualidade, em particular. Não consigo encontrar melhor explicação para
isso, senão o fato de que somos herdeiros, "em primeiríssimo grau",
de um dualismo platônico acentuadamente exacerbado entre corpo e alma,
posteriormente repassado ao cristianismo por intermédio sobretudo de Santo
Agostinho, e de uma
"tentativa" aristotélica de reaproximação que ao fim e ao cabo
tampouco resultou exitosa, em razão sobretudo de sua "lógica" se
revelar excessivamente rígida e formal em seu papel e função de "defesa da
verdade". A tríade de princípios "identidade",
"não-contradição e "terceiro excluído" notoriamente não favorece
muito o diálogo e a dialética, menos ainda o chamado "contraditório".
"O "cristianismo cristão", como diria Nietzsche, e não
exatamente o "cristianismo autêntico" - que segundo ele teria morrido
na cruz - sem dúvida se deixou seduzir
prevalentemente pelo primeiro e apenas num segundo plano pelo segundo, em razão
das vantagens e dos "benefícios" específicos que cada um deles lhe
proporcionava: o primeiro, quanto ao conteúdo, o segundo, quanto à forma. Mas
as consequências dessa aproximação, sobretudo no tocante às relações entre
corpo e alma, e a valoração de nossos sentimentos, paixões e emoções, nós as
continuamos experimentando ainda hoje. De resto, tanto para o cristianismo dos
primórdios quanto para o cristianismo contemporâneo, corpo e alma - ou corpo e
espírito como se preferir -
definitivamente não parecem vir se comportando como bons "companheiros
de viagem", nessa espécie de incursão -
"excursão", nem pensar! - que o espírito vem empreendendo pelo
planeta há alguns milhões de anos. Essa contribuição dualística
platônico-agostiniana talvez seja um bom motivo a se incorporar àqueles que
levam certos teólogos e exegetas a afirmar que "se São Paulo pode ser
considerado o grande teólogo do cristianismo, Santo Agostinho não permitiu que
fosse o único". Apenas causa certa estranheza o fato de que São Tomás de
Aquino não tenha sido incluído nessa "declaração de fé", já que
ambos, "pari pari", mas sem comparativo para com os demais, são
citados centenas de vezes no último Concílio Ecumênico da Igreja, o Vaticano
II.
Fica também fora de dúvida o fato de
que uma visão dualística, como forma de explicar a interação e as relações e
entre corpo e espírito, encontrará sempre sérias dificuldades em valorar
positiva e afirmativamente os sentimentos, as emoções e as paixões humanas, e
isso é o que aqui mais nos interessa.
Equações que resultam dessa visão ou concepção, estabelecem que o corpo
está para o espírito na mesma proporção em que o mal está para o bem, o errado
está para o certo, o negativo está para o positivo e....claro, o pecado está
para a graça. Assim, em estreita analogia para com o arquetípico "pecado
original", é possível que nos encontremos
aqui diante da "razão original" em virtude da qual os sentimentos e
as emoções humanas são e provavelmente continuarão, por largo tempo, sendo
classificados de acordo com as categorias dualísticas do "negativo versus
positivo". Nenhum espaço para o que, de forma alternativa, Nietzsche
chamaria de "para além do bem e do mal". A lógica do "terceiro
excluído" também aqui se impõe. Qualquer proposta de se lidar com os
sentimentos e as emoções humanas, portanto, que não se enquadre no arcabouço
dessa milenar concepção filosófico-teológica, corre o sério risco de ser
considerada uma verdadeira aberração em forma de contradição, e sofrerá
certamente forte resistência quanto à sua aceitação. Em tempos não tão
distantes, a re[tali]ação certamente iria muito além dessa mera postura de
resistência. Ainda assim, parafraseando um certo "Che", "hay que
insistir siempre, sin perder la esperanza jamás".
A forma como a cultura, a tradição, e
sobretudo certas religiões e modalidades de espiritualidade, têm nos ensinado e
orientado a lidar com nossos sentimentos
e nossas emoções - incluindo nesse bojo, nossos "pensamentos" - tem sido francamente inadequada e ineficaz,
para não dizer desastrosa, do ponto de vista terapêutico e da saúde mental.
Provérbios e ditos populares do tipo "homem que é homem não chora",
"quem não chora não mama", "roupa suja se lava em casa",
são apenas alguns exemplos arraigados tanto no senso comum, como em meio à
cultura tida como "nobre" e erudita. Tomemos apenas o último exemplo
citado para fins de uma rápida consideração. Se o ambiente familiar fosse o
mais favorável para a resolução de problemas conjugais e familiares, os
consultórios e clínicas não estariam sendo tão requisitados, e os
"confessionários" tão assiduamente frequentados, como de fato tem
ocorrido ultimamente. Isso, sem se levar em conta que para muitos - quase
sempre os que realmente mais necessitam - acompanhamento psicológico e
psiquiátrico é coisa para maluco e gente ruim da cabeça. E o que mais chama a
atenção é que essa mentalidade percorre mais as classes instruídas e
teoricamente de boa formação, que aquelas menos providas de tais recursos. Por
outro lado, nada parece mais difícil de ser rematrizado ou ressignificado que certos conceitos oriundos
do jargão teológico-homilético de certas religiões e modalidades de espiritualidade. "Culpa",
"pecado" - "capital", "mortal", precisava tanta gravidade? - "inferno", purgatório,
"condenação" - precisava ser
"eterna"? - são apenas alguns exemplos que podem levar uma
mente ao delírio e uma consciência literalmente "ao surto", tamanho o
comprometimento e o desequilíbrio que são potencialmente capazes de provocar.
Muitas das chamadas "noites
escuras e tenebrosas" da alma - não necessariamente todas, é claro - assim como as "áridas e
torturantes" experiências vivenciadas por grandes ascetas, religiosos e
místicos, não passaram certamente de experiências de muita dor e de muito
sofrimento psico-físico, decorrentes do esforço "sobrehumano" em
enfrentar e tentar barrar as incursões de forças de natureza sexual e
libidinal, tidas como demoníacas e
ameaçadoras da castidade, da vocação e
da virtuosidade. De nenhum modo estamos subestimando e menos ainda descartando
uma eventual presença do mal e de "suas forças" a irromper em meio à
vastidão das experiências humanas. Terapias auto-suficientes e auto-realizadoras
podem sem dúvida representar uma sutil forma de narcisismo e até de
"idolatria", como adverte Sandro Spinsanti em sua introdução à obra
"Jesus Psicoterapeuta", de Hanna Wolff. O outro lado perverso dessa
mesma moeda, entretanto, consiste em continuar alimentando e perpetuando as
neuroses produzidas por um tipo de religiosidade e de espiritualidade que
acabam afastando as pessoas da fonte sadia e saudável de sua experiência afetivo-emocional,
notadamente no tocante à vivência de seus sentimentos e de suas emoções. Às
experiências e forças de tal tipo, Deepak Chopra as classifica como verdadeiros
"assassinos da mente". Se esse conceito e essa expressão são ou não
adequados, pode-se abrir discussão, mas o certo é que psicólogos, terapeutas e
orientadores filosóficos, assim como aconselhadores e ministros religiosos
diversos, têm ultimamente procurado enfrentar questões do tipo de uma forma
conjugada, cooperativa e diferenciada, sem se sentirem mutuamente ameaçados.
Afinal, saúde psico-física, bem-estar, libertação e "salvação", são
conceitos e dimensões do humano perfeitamente conciliáveis, bastando para isso
que as mentes e as mentalidades se mantenham abertas e flexíveis. Afinal,
"a mente que se abre para uma nova ideia - como afirmava Oliver Holmes -
jamais retorna às suas antigas dimensões".
Classificar grande parte do repertório
de nossos sentimentos e emoções como "negativos", pecaminosos"
ou "imorais", simplesmente porque os experimentamos e nos permitimos
vivenciá-los, não significa apenas navegar contra a correnteza ou remar contra
a maré. As diversas ciências que prestam ajuda, dentre elas a própria
psicologia, vão cada vez mais se dando conta de que a "sublimação",
tantas vezes sugerida como alternativa de solução para sentimentos e emoções
tidos como negativos e inadequados, continua válida mas pode não ser de fato a
melhor delas. Isso porque, como ensina Anselm Grün, "integração é mais que
sublimação. [...] A pessoa que integra em sua alma tudo o que descobre dentro
de si é verdadeiramente íntegra. É pura e completa". Essa ressignificação
a que vem submetido o conceito de "integridade", por Anselm
Grün, denuncia o quanto tratamos e
lidamos de maneira equivocada com nossos sentimentos, nossos afetos e nossas
emoções. Muito se fala da importância de se viver e elaborar o luto, a dor e a
perda, como recurso terapêutico privilegiado, com vistas à sua superação e
eventual cura. "Vivenciar", no sentido mencionado, não significa outra
coisa senão "sentir", "experimentar", e não apenas
"admitir" ou "aceitar" de forma resignada sua presença em
nós. Tampouco significa simplesmente "sublimar", e menos ainda
"negar" ou "exorcisar", pois em ambos os casos percebe-se
implícito um juízo de valor negativo, reprovativo e ao fim e ao cabo
condenatório. E é por aí que se instalam, na mente e no coração, os monstros da
auto-culpabilidade, da automartirização e da auto-condenação. E todos sabemos
que a forma de se lidar com essa "tríade", historicamente não foi e
não tem sido a mais adequada e a mais eficaz. Alguns mosteiros e ordens
religiosas conservam ainda, como parte de seu "patrimônio histórico
cultural", exemplares de instrumentos, "disciplinas" e
"suplícios" utilizados como tentativa última de aquietar e domesticar
pensamentos, sentimentos, emoções e paixões, tidos como "contrários à
natureza", porque libidinosos e pecaminosos. Tais instrumentos e
"disciplinas" pouco ou nada diferem daqueles utilizados para com
mentes rebeldes, criminosas, pessoas escravizadas, aprisionadas e outros
"gêneros" mais. O problema é que quando se equivoca na
"receita", quase sempre se equivoca no "modo de preparo" e
sobretudo na exatidão do "ponto". Do que pouco se fala, pouco se
sabe, mas é certo que alguns saíam de suas "celas", tão auto-castigados
e auto-fustigados, que sequer passavam pelo socorro médico, indo direto para o
cemitério - na linguagem mais requintada
da espiritualidade, "abrigo dos mortos". Difícil mesmo, em casos do
tipo, era saber se se tratava de "provação divina" ou "tentação
demoníaca". Como "in dubio, pro reo", o ônus recaía quase sempre na conta do "pai da
mentira", o enganador por natureza. É possível conjecturar que certas
modalidades de "automutilação", nos tempos atuais, talvez não passem
de uma "versão moderna" dessa forma exdrúxula de autopunição de
tempos idos.
À guisa de conclusão: céus, infernos e
purgatórios, assim como pecado, culpa e condenação, sempre fizeram parte, como
"pratos prediletos" do cardápio de certo número de religiões e de
certos tipos de espiritualidade. Poucas são aquelas que se guiam e se fazem nortear por uma favorável e saudável
integração entre corpo e mente, corpo e espírito, ou corpo e alma, como se
prefira. Para Platão e sua vertente agostiniana, o corpo é cárcere e privação,
às quais o cristianismo acrescentou
provação e tentação. O afirmado vale como "regra geral", é bom
que se diga, visto que o cristianismo admite a possibilidade de uma
ressurreição "gloriosa" e "transfigurada" desse nosso "pobre corpo mortal";
jamais, entretanto, nos moldes da "corporeidade" e
"mundanidade" com que somos constrangidos e de certa forma obrigados
a assumir, enquanto percorremos nossa jornada por "esse vale de
lágrimas". Apesar dessa "brecha ", tal visão e tal crença, independentemente
de sua facticidade ou não - só o saberemos "post mortem",
evidentemente - nos parecem ainda pobres e insuficientes, pois pouco contribui
para uma autêntica experiência de integridade e de integração entre ambos,
"já nesta e não apenas na outra vida", tal como sugere Anselm Grün.
Tem ainda o condão de desembocar numa antropologia comprometida em uma de suas
principais dimensões: aquela relacionada aos nossos afetos e à nossa
afetividade, por onde permeiam nossos pensamentos , sentimentos, emoções e
paixões, e outras tantas experiências da sensibilidade que nosso ser nos
proporciona. Lamentavelmente a concepção de "pecado" arraigada
sobretudo em certas tradições religiosas, tende a macular tudo que toca, numa
ação exatamente oposta à do "menino do dedo verde", de Maurice Druon,
que na visão otimista e paradisíaca do autor transforma em flores tudo que seu
dedo toca e alcança. De um tal poder maculador atribuído ao pecado, era
inevitável que Jesus e Maria fossem preservados. E se necessário era: "fiat!".
Assim foi feito! Aos demais mortais, resta disponível a penitência, seja como
atitude seja como sacramento, e a promessa de salvação final.
Sob esse aspecto, há que se convir que
o assim chamado Antigo Testamento, pelos cristãos, curiosamente se revela
"mais humano", mais compreensivo e mais compassivo com as emoções e
os sentimentos humanos, do que o Novo. Não há,
e tampouco parece disso haver indícios, de que haja ali uma
"classificação prévia" a ser aplicada aos pensamentos, sentimentos,
emoções e paixões do Criador. Deus tanto se manifesta como um ser que ora ri,
chora, é fiel, se compadece e eternece, como também em outros momentos se
irrita, enraivece, enfurece, experimenta
decepção, frustração, ódio, vingança e tantos outros "modos de ser", "se
manifestar" e "se revelar". O Jesus histórico talvez
experimentasse tudo isso - pois não nos é dito que ele "experimentou e
vivenciou 'em tudo' a condição humana"? - mas a teologia posterior,
provavelmente mais preocupada consigo mesma que em ser fiel à historicidade,
parece ter optado por preservá-lo desses sentimentos e dessas emoções
"menos nobres", "demasiado
humanas", diria Nietzsche, provavelmente com o fito de que a
divindade que trazia consigo não fosse "arranhada",
"desgastada", e menos ainda "comprometida" por esse lado
tido como nada virtuoso de nossa humana condição.
Rematrizar e ressignificar, até que se
nos convença do contrário, é uma prerrogativa tipicamente humana. Anselm Grün é
um exemplo notório dessa capacidade, que todavia exige flexibilidade de
espírito e sobretudo boa dose de coragem, tendo-se presente que vivemos em um mundo em que tudo
"flui" numa velocidade e profundidade que deixariam Heráclito
realizado, por ver corroborada sua teoria, mas também desconcertado, por
certamente jamais haver imaginado que seria num ritmo tão profundo e tão
acelerado. "Desafiar" essa postura dicotômica
"platônico-agostiniana" entre corpo e alma, que se mantém viva
através de certa filosofia e de certas religiões e certas formas de
espiritualidade, assim como ressignificar a maneira de conceber e lidar com
nossos sentimentos e emoções, é desafio e tarefa para poucos. Afirmar, como faz
Grüm, que "não apenas temos um corpo, somos corpo" e que precisamos
aprender a descobrir nosso corpo "como o parceiro mais importante em nosso
caminho espiritual", e que "quando queremos nos abrir para Deus,
precisamos começar com o corpo", pode parecer sem dúvida pouco
"palatável" e difícil de ser digerido para muitas mentes. Mas quando
quem nos sugere pensar, sentir e agir a partir dessa "nova ordem" de
crenças, concepções e percepções, não é um cientista, um filósofo ou um
profissional psicólogo, mas um religioso e monge conhecido e reconhecido em
quase todo o mundo, esse convite vem carregado de um significado particularmente
especial. A isso se pode sem dúvida chamar de "crescimento
espiritual", em cujo ápice se dá o despertar máximo e pleno de nossa
consciência. Toda verdadeira e autêntica libertação talvez comece por aqui, e
se essa libertação será coroada com o que se soe chamar de
"salvação", por que não? - bem-vinda seja!
(*) Reflexão enviada de Vitória(ES)
via whatsapp.
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