REFLEXÃO
II
SEXTA-FEIRA SANTA. PAIXÃO DO SENHOR
Qual é o poder deste crucificado? A atração
irresistível da Verdade! Verdade que não vem juntar-se a “verdades”, ao que já
existe no homem, mas que desvela o que nele, embora oculto, é capaz de torná-lo
plenamente humano: o amor, pois amor e verdade se casam. Onipotência de um amor
poderoso o bastante para renunciar ao poder e, amorosamente, ir ao encontro da
fraqueza.
A reflexão é de Marcel Domergue,
sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras da Sexta-Feira Santa.
A tradução é de Francisco
O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Eis o texto.
Referências
bíblicas:
1ª leitura: Is
52,13-53,12
Salmo: Sl
30
2ª leitura: Hb
4,14-16.5,7-9
Evangelho: Jo
18,1 a 19,42
“Eis o
homem”
A ninguém
passam despercebidas as semelhanças que existem entre a profecia do Servo (1ª
leitura) e os relatos da Paixão. Os evangelistas tinham, com certeza, Isaías em mente,
ao redigirem o texto. Tem-se a impressão de que Jesus segue um
modelo pré-fabricado. Os exegetas se perguntam quem seria este Servo sofredor de
Is 52-53. Seria Davi perseguido
por Saul?
Ou Jeremias,
o profeta perseguido? Ou o povo de Israel,
hostilizado pelos pagãos? É forçoso responder: são estes e muitos outros mais,
ou seja, todos os que foram, são e serão um dia levados a bradar “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc
15,34). Jesus assume
as dores e angústias de todos os perseguidos da história, de todos os que
sofreram, sofrem e sofrerão por não importa qual motivo. “Eis o homem”, diz Pilatos: eis o homem
todo e todos os homens! Em Isaías, à vista do estado miserável a que foi
reduzido o Servo
sofredor, as testemunhas o tomam primeiramente por um pecador
castigado por Deus,
um “leproso” a
ser evitado. Mas, bruscamente (Is 53,4), elas se voltam em outra direção: o que
ali vemos, somos nós mesmos! Este homem é a revelação do nosso mal, da nossa
desgraça conhecida ou ignorada. Ele carrega o pecado do mundo e forçoso é
voltarmos nosso olhar para aquele que trespassamos. Nele se manifestam todas as
dimensões de nossa sempre disfarçada perversidade bem como “a largura, a altura e a profundidade
do amor” de um Deus que
quis ser até este extremo Emanuel,
o “Deus-conosco”.
Falência da justiça
A Paixão é um processo. A Bíblia está cheia de alusões ao processo que Deus move contra
os homens: é o tema do julgamento. Aqui, porém, assistimos ao processo que os
homens movem contra Deus.
Aliás, um duplo processo: dos judeus (que O conhecem) e dos pagãos (que não
sabem onde se encontra a verdade). Os dois inimigos, que materializam na
Escritura o imemorial conflito entre homem e homem, participam agora da
condenação à morte do Justo.
Primeira conivência, primeiro acordo, compartilhamento perverso na injustiça.
Esta primeira cumplicidade reverterá depois, tornando-se aliança no amor entre
judeus e não judeus, por obra do Espírito que Jesus “emite” no momento
mesmo de sua morte: “paredoken
to pneuma” (Jo 19,30). Mas, antes disso, eis que a justiça é
escarnecida pelos homens! Jesus prossegue
em seu caminho... Renuncia também Ele à justiça: os culpados não serão punidos,
mas salvos. Tudo é subvertido pela Paixão de Cristo. E nós ficamos
definitivamente isentos do regime da justiça, em virtude da qual poderíamos ser
condenados. A Paixão é sentença de absolvição para todos os pecadores!
Da justiça ao amor
Não é possível inventariar tudo o que nos revela a Paixão segundo S. João. No seio mesmo
de sua humilhação, Jesus é
nela Mestre e Senhor: no Jardim das Oliveiras,
os guardas caem por terra ante a revelação de sua identidade (18,6); Ele não
julga diretamente o guarda que o esbofeteia, mas convida-o a julgar-se a si
próprio (18,23); avalia, pelo contrário, a falta de Pilatos, comparando-a
à "de quem o
entregou" (19,11). Eis como é exercido o julgamento cujo
veredito é sempre de perdão: não se trata de ignorar a culpa, mas, sim, de
absolvê-la! Desviar os olhos do que foi trespassado é passar ao largo do
perdão. Jesus é Senhor e até mesmo Rei (18,23-38).
Ora, todo Rei exerce o poder. Qual é o poder deste crucificado? A atração
irresistível da Verdade! Verdade que não vem juntar-se a “verdades”, ao que já
existe no homem, mas que desvela o que nele, embora oculto, é capaz de torná-lo
plenamente humano: o amor, pois amor e verdade se casam. Onipotência de um amor
poderoso o bastante para renunciar ao poder e, amorosamente, ir ao encontro da
fraqueza. Retornamos assim ao início do relato de S. João: “Tendo amado os seus que estavam no
mundo, amou-os até o fim” (13,1).
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