Muitas pedras, vida asfixiada
Dias virão em que não ficará
pedra sobre pedra. Tudo será destruído” (Lc 21,6)
A mudança de mente, de coração, de esperança, de paradigmas... exige
de nós que, de tempos em tempos, revisemos nossas vidas, conservando umas
coisas, alterando outras, derrubando ideias fixas, con-vicções absolutas, modos
fechados de viver... que impedem a entrada do sol e da
brisa da manhã.
São muitas “pedras”, pessoais-sociais-religiosas,
que criam muralhas e que precisam ser destruídas: ódio, intolerância,
violência... Coração rígido que se visibiliza na petrificação das relações;
rompe-se a cultura do encontro para alimentar a cultura da indiferença;
trava-se a abertura ao novo para fechar-se no conserva-dorismo mais agressivo;
bloqueia-se toda possibilidade de racionalidade para cair nas atitudes mais
arcaicas e medievais...
Há em todo ser humano uma
tendência a cercar-se de muros, a encastelar-se, a criar uma rede de proteção,
a fechar-se em guetos. Nada mais contrário ao Seguimento de Jesus que a vida
instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de
referência fixos, definitivos, tranquilizadores...
Numa vida assim faltaria por completo o princípio
da criatividade, a capacidade de questionar-se, a
audácia de arriscar, a coragem de fazer caminho
aberto à aventura.
Se quisermos que a nossa vida cristã tenha a marca
da adesão a Jesus, é necessário compreender que somos chamados a um compromisso diferente
e mais profundo: sair da reclusão de nosso mundo para
entrar na grande “casa” de Deus; romper com o tradicional para
acolher a surpresa; deixar a “margem conhecida” para
vislumbrar o “outro lado”; desnudar-nos de ilusões egocêntricas; afastar
a “pedra” da entrada do coração para poder viver com mais
criatividade...
As respostas do passado às
questões atuais já não satisfazem; as velhas razões para fazer coisas novas,
simplesmente já não movem os corações num mundo repleto de novos desafios.
Não há razão para permanecer nos castelos e templos
quando todas as circunstâncias mudaram. É muito tarde para reconstruir
nossas vidas utilizando moldes antigos. Estamos vivendo um tempo de mudança, mas
também tempo emocionante e santo. Há um poderoso fogo sob
as cinzas. Precisamos avivar a chama, acolhendo o
momento presente e vivê-lo até suas últimas consequências. “Este é o tempo
de graça, o tempo de salvação”.
Vivemos um momento de densidade única; participamos
de uma sociedade rica pela diversidade e pelo pluralismo. No entanto, não
teremos nada que oferecer a ela se não nos deixarmos “empapar” pela
experiência do discipulado. Com a vida cristificada seremos impulsionados
a inventar constantemente, a ousar sem
medo, a “deslocar-nos” sem cessar, na busca de um “novo
começo” ...
A possibilidade de romper com hábitos que nos
atrofiam ou com padrões conservadores que travam o fluir de nossas vidas é a
marca do Evangelho deste domingo. A primeira atitude é reconhecer que nossa
vida está “estreita”, cercada por pedras e muralhas, e que
precisamos nos colocar num horizonte diferente. A lucidez do seguimento
nos revela que a utopia de Jesus é possível. N’Ele acontece algo totalmente
novo, é Ele que nos revela uma nova maneira de viver que não cabe nos nossos
esquemas. O Seguimento é uma novidade que rompe velhos
barris. “Vinho novo em odres novos”. Sentimentos novos em um
coração ardente; visão nova em olhos ousados; razões inspiradas em uma mente
aberta.
Para encontrar Jesus Cristo é preciso “sair”; é
inútil permanecer nos “templos” e “bloqueados” nos guetos de fanáticos. É
preciso caminhar em direção às “periferias existenciais”, o Grande Templo onde
o Vivente se deixa encontrar; vivemos mergulhados na magia do discipulado; esta
é a paixão que não nos dá repouso.
Mais uma vez, e evangelho deste
domingo nos situa diante de Jesus, homem livre e transparente, que não se
deixou “formatar” pelas estruturas sociais e religiosas desumanizadoras de seu
tempo. Ele não quis purificar o Templo para reformulá-lo, mas quis destruí-lo
para que pudesse surgir um santuário diferente, “não feito por mãos humanas”.
As coisas que o ser humano “fabrica” são “ídolos”, algo que pode pôr-se e se
põe a serviço do poder e do domínio de uns sobre os outros. Contra isso, o
verdadeiro templo deve identificar-se com a humanidade reconciliada, que é o
Reino de Deus.
Quem segue Jesus, aos poucos vai
descobrindo que permanecem ainda muitos muros por derrubar; é preciso
entrelaçar mãos que construam pontes de reconciliação e não de divisão; essas
mesmas mãos que, em lugar de empunhar armas, devem pegar em martelos e malhos
para derrubar as paredes do ódio e da intolerância.
Não esqueçamos esta dura
realidade: também aqueles que constroem muralhas acabam se tornando vítimas de
sua sandice; tornam-se prisioneiros das fortalezas que edificam, vítimas do
próprio veneno da soberba e da crença de que são “donos” da verdade. Tudo isso
é expressão de um coração petrificando.
Na vida, nem sempre é questão de construir. Também,
às vezes, é preciso destruir. De fato, a vida e a mensagem de Jesus revelaram
uma novidade de tal magnitude que gerou uma radical
conflitividade com as estruturas desumanizadoras de seu tempo. Com a presença
de Jesus, chega também para nós a “Boa Nova”, não
precisamente para pôr remendos no tradicionalismo, moralismo e legalismo, mas
para anunciar a possibilidade de uma nova maneira de viver, uma nova
atitude que deixa transparecer as “beatitudes originais” e que
habitam nosso coração: compaixão, mansidão, paz, busca da justiça, partilha...
Precisamos profetas que vão
derrubando nossos muros de ignorância e de resistência à novidade do Espírito e
que saibam apresentar respostas criativas aos problemas que a humanidade tanto
padece.
Mais cedo ou mais tarde, a vida
mesma se encarrega de derrubar muitos desses muros que nos impedem ver a
realidade externa com mais claridade. Quando vemos tudo escuro, é sinal de que
há algum muro que impede a entrada da luz do discernimento em nossas vidas.
“Constrói pontes em lugar de muralhas, e terás
amigos”: pontes de
diálogo humanizador, onde o outro possa ser respeitado na sua diversidade, no
seu modo de pensar, de ser, de amar; também o outro diferente é possuidor de
fragmentos da verdade que podem se integrar aos nossos e, assim, alimentar uma
consciência mais plena e expansiva. Que busquemos viver a “cultura do
encontro”, confiando no desafio da diversidade que nos enriquece!
É preciso estender pontes de
reconciliação que nos permitam ter acesso aos lugares onde ninguém quer estar,
para abraçar àqueles que são rejeitados e saborear juntos o mistério da
comunhão e da acolhida; pontes que permitam apalpar, na dor solidária e na beleza
dos “sacramentos de cada dia”, a presença carinhosa do Deus Pai/Mãe que sempre
bendiz a humanidade inteira. No Seu coração a diversidade é aquecida e
pacificada.
Texto bíblico: Lc 21,5-19
Na oração: Viver o Seguimento de Jesus hoje é deixar expandir
tudo o que é vida dentro de nós. É contaminar de Luz as trevas que
criamos e que sufocam a alegria plantada em nós desde sempre.
Deixemo-nos iluminar, levemos a Luz nas
nossas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos de nosso cotidiano.
Destruídos os muros e afastadas as pedras… resta caminhar..
Pe. Adroaldo Palaoro sj
https://www.catequesedobrasil.org.br/noticia/muitas-pedras-vida-asfixiada-13112022-084755
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