SANTO AGOSTINHO
Ele se deixa ver e tocar para que
reconheçam a realidade de Sua carne
Nos sermões do tempo
pascal Agostinho repete várias vezes que foi o próprio Cristo quem quis
eliminar qualquer dúvida dos apóstolos a respeito da realidade de Sua
ressurreição. Entrevista com Nello Cipriani, catedrático do Instituto
Patrístico Augustinianum
Entrevista
com Nello Cipriani de Lorenzo Cappelletti
Nestes
dias de Páscoa, conversamos com padre Nello Cipriani a respeito de como Jesus,
deixando-se ver e tocar, quis dar Ele mesmo testemunho aos apóstolos da
realidade de Sua ressurreição.
Em que obras de Agostinho é comentada mais amplamente a
ressurreição do Senhor em seu corpo verdadeiro?
CIPRIANI: Agostinho fala desse tema em vários
textos, mas sobretudo nos muitos sermões do tempo pascal, em que Agostinho
pregava todos os dias. Nesses sermões são tratados diversos aspectos do
mistério da ressurreição dos mortos. O que mais impressiona é que Agostinho
procura fazer os fiéis entenderem que foi o próprio Cristo quem quis eliminar
as dúvidas dos apóstolos, que pensavam estar vendo um fantasma: “Por que estais
perturbados e por que surgem tais dúvidas em vosso coração? Vede minhas mãos e
meus pés: sou eu! Apalpai-me e vede”, diz o Senhor (Lc 24, 38s). E Agostinho, quase in persona Christi,
comenta, no Sermão 237: “Se vos parece pouco observar-me, estendei a mão. Se
vos parece pouco observar-me e também não vos basta tocar-me, apalpai-me. Ele
realmente não disse apenas que o tocassem, mas convidou-os a apalpá-lo e a tateá-lo.
Que vossas mãos verifiquem, se vossos olhos vos enganam. Tocai-me e vede. Que
as mãos vos sirvam de olhos. Mas apalpar e ver o quê? Que um fantasma não tem
carne e ossos, como vedes que eu tenho. Incorreste [Agostinho usa aqui um “tu”
genérico] no mesmo erro dos discípulos: emenda-te com eles! Errar é humano, é
verdadeiro. Até mesmo Pedro e os apóstolos o fizeram: acreditavam estar vendo
um fantasma. Mas não persistiram nesse erro. Para que tu saibas que era
totalmente falso o que tinham no coração, o médico não os deixou ir embora
assim, mas, aproximando-se, aplicou-lhes o remédio. Via as feridas dos corações
e, com a finalidade de curar essas feridas do coração, trazia ainda em seu
corpo as cicatrizes”.
São palavras que nos permitem entender, melhor que muitos
raciocínios, que é o próprio Senhor, ao se deixar ver e tocar, que constitui os
apóstolos testemunhas de sua ressurreição.
CIPRIANI: Em outro sermão (Sermão 242),
Agostinho responde a uma crítica de Porfírio, filósofo neoplatônico do século III
autor do Contra os cristãos. Este, entre muitos argumentos contra o cristianismo,
apresentava também um que falava contra a ressurreição dos corpos, que, para um
neoplatônico, é algo absolutamente inaceitável. Porfírio chegava a criticar o
relato evangélico de Lucas, apresentando uma espécie de dilema: ou Cristo
ressuscitado pediu de comer porque precisava comer e, então, não tinha um corpo
incorruptível, ou, se não precisava comer, por que teria pedido? Agostinho
responde citando em primeiro lugar as palavras de Jesus ressuscitado: “‘Tendes
o que comer? Apresentaram-lhe um pedaço de peixe assado e um favo de mel.
Tomou-os, então, e comeu-os, e ofereceu-lhes o que sobrou [assim soava o texto
latino que Agostinho tinha nas mãos]’ (cf. Lc 24, 41s). Eis a objeção que nos fazem: se o
corpo ressuscita incorruptível, por que Cristo Senhor pôs-se a comer? De fato,
lestes que ele comeu. Mas acaso lestes que teve fome? Comer foi um gesto
demonstrativo de seu poder, não de uma necessidade que tinha”. Pouco mais adiante,
Agostinho responde a outra objeção, que diz que, se ressuscitamos sem defeitos,
não é possível entender por que o Senhor conservou as cicatrizes das feridas;
Agostinho diz que o gesto do Senhor também neste caso, “foi um gesto de poder,
não de necessidade. Quis ressuscitar assim, quis mostrar-se assim a alguns que
duvidavam [sic resurgere voluit, sic se voluit
quibusdam dubitantibus exhibere]. A
cicatriz da ferida remanescente em sua carne serviu para curar a ferida da
incredulidade”.
Agostinho refuta os
heréticos. Episódio das “Histórias agostinianas” de Ottaviano Nelli, afresco da
segunda metade do século XIV, igreja de Santo Agostinho, Gubbio, Perúgia
Ele retoma as
razões já expostas no Sermão 237. Não é, portanto,
uma carência, não é uma necessidade que leva o Senhor a pedir algo para comer,
mas sua vontade de certificar Ele mesmo, poderíamos dizer, sua ressurreição.
CIPRIANI: É claro que o corpo ressuscitado já
não precisa comer: é espiritual; o ressuscitado não tem mais fome. Mas Cristo
quis dar essa prova para convencer os discípulos da realidade da ressurreição.
Um outro sermão, o Sermão 246, se assemelha um pouco ao Sermão 237. Como já
vimos, no Evangelho de Lucas (Lc 24, 38s) Cristo diz: “Por que estais perturbados
e por que surgem tais dúvidas em vosso coração? Vede minhas mãos e meus pés:
sou eu! Apalpai-me e vede”. E Agostinho comenta: “Acaso já tinha ascendido ao
Pai quando dizia: ‘Apalpai-me e vede’? Deixa-se tocar por seus discípulos, ou
melhor, não apenas tocar, mas apalpar, para dar um fundamento à fé na realidade
de sua carne, na realidade de seu corpo [ut fides
fiat verae carnis veri corporis]. De fato, o
fundamento da realidade devia evidenciar-se também por meio do tato do homem [ut exhibeatur etiam tactibus humanis soliditas veritatis]. Deixa-se, então, tocar pelas mãos dos discípulos”. Depois, numa
referência à mulher a quem o Senhor ordena que não o toque, porque ainda não
havia ascendido ao céu, Agostinho diz: “Que incongruência é essa? Os homens só
podiam tocá-lo aqui na terra, enquanto as mulheres o poderiam tocar depois que
ascendesse ao céu? Mas que significa tocar, senão crer? Com a fé, tocamos
Cristo. E é melhor não tocá-lo com as mãos e tocá-lo com a fé que apalpar com
as mãos e não Isso me faz lembrar os parágrafos
da Cidade de Deus, no final do livro XVIII, em que Agostinho examina a fábula,
adotada pelos sábios (ironizados por Agostinho), que diz que foram as artes
mágicas de Pedro que permitiram o desenvolvimento e o progresso do
cristianismo.
CIPRIANI: Ante a objeção de que o cristianismo
nada mais é que fruto de magia, Agostinho rebate dizendo que o cristianismo
nasceu e se desenvolveu por graça divina: illa
superna gratia factum esse (cf. De civitate Dei XVIII,
53, 2). A propósito disso, no Sermão 247, também do período pascal, em que comenta a aparição
do Senhor aos discípulos na noite de Páscoa, com as portas fechadas (cf. Jo 20, 19ss),
Agostinho escreve: “Alguns ficam tão perturbados com esse fato, que vacilam, ou
quase, levantando, contra os milagres realizados por Deus, os preconceitos de
suas argumentações [afferentes contra miracula
divina praeiudicia ratiocinationum suarum]. Raciocinam assim: se era corpo, se era carne e
ossos, se o que ressuscitou do sepulcro nada mais era senão o mesmo que tinha
sido suspenso ao patíbulo, como pôde passar através de portas fechadas? Se era
impossível, é preciso concluir que não aconteceu. Se, pelo contrário, pôde
fazê-lo, como foi possível? Se compreendemos a forma, não é mais um milagre;
por outro lado, se não o consideras um milagre, estás próximo de negar a
ressurreição do sepulcro. Dirige o pensamento aos milagres realizados por teu
Senhor desde o início; explica-me o porquê de cada um. O homem não interfere e
a Virgem concebe. Explica-me como uma virgem pôde conceber sem o concurso do
elemento masculino. Onde falha a razão, é aí que a fé constrói. Vês, portanto,
um milagre na concepção do Senhor, mas ouves outro, ainda, no parto: dá à luz
como virgem e continua virgem. Desde aí, portanto, bem antes que ressuscitasse,
o Senhor, ao nascer, já passou por portas fechadas”. Enfim, o poder divino é a
verdadeira causa da ressurreição. Se prescindimos do poder e da ação de Deus,
qualquer milagre é inconcebível, mais ainda a ressurreição do Senhor.
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