REFLEXÃO
DOMINICAL II conosco
Assunção de Nossa Senhora
Por Johan Konings
I.
Introdução geral
Em
1950, o papa Pio XII proclamou o dogma da Assunção de Nossa Senhora ao céu. Um
dogma é um marco referencial de nossa fé, do qual ela não pode retroceder e sem
o qual ela não é completa. Proclamamos que Maria, no fim de sua vida, foi acolhida
por Deus no céu “com corpo e alma”, ou seja, coroada, plena e definitivamente,
com a glória que Deus preparou para os seus santos. Assim como ela foi a
primeira a servir Cristo na fé, é a primeira a participar na plenitude de sua
glória, a “perfeitissimamente redimida”. Maria foi acolhida, completamente, de
corpo e alma, no céu porque acolheu o céu nela – inseparavelmente.
A presente festa é uma grande felicitação de Maria por parte dos
fiéis, que nela veem, a um só tempo, a glória da Igreja e a prefiguração da
própria glorificação. A festa tem uma dimensão de solidariedade dos
fiéis com aquela que é a primeira a crer em Cristo e por isso, também, é a mãe
de todos os fiéis. Daí a facilidade com que se aplica a Maria o texto do
Apocalipse, na primeira leitura, originariamente uma descrição do povo de Deus,
que deu à luz o Salvador e depois se refugiou no deserto. A segunda leitura nos
leva a considerar a assunção de Maria ao céu como antecipação da ressurreição
dos fiéis, que serão ressuscitados em Cristo. Observe-se, portanto, que a
glória de Maria não a separa de nós, mas a torna unida a nós mais intimamente.
Merece consideração, sobretudo, o texto do evangelho, o Magnificat, que
hoje ganha nova atualidade, por traduzir a pedagogia divina: Deus
recorre aos humildes para realizar suas grandes obras. Esse
pensamento pode ser o fio condutor da celebração. Na homilia, convém que se
repita e se faça entrar no ouvido e no coração esse pensamento ou uma frase
do Magnificat que o exprima.
II. Comentário dos textos bíblicos
- I leitura: Ap 11,19a;
12,1.3-6a.10ab
O sinal
da Mulher, no Apocalipse, aplica-se em primeiro lugar ao povo de Deus do qual
nasce o Messias: à Igreja do Novo Testamento, nascida dos que seguem o Messias.
Aparece no céu a Mulher que gera o Messias; as doze estrelas indicam quem ela
é: o povo das doze tribos, Israel – não só o Israel antigo, do qual nasce
Jesus, mas também o novo Israel, a Igreja, que, no século I d.C., quando o
livro foi escrito, precisa esconder-se da perseguição, até que, no fim
glorioso, o Cristo se possa revelar em plenitude. Ao ouvir esse texto, a
liturgia pensa em Maria. Maria assunta ao céu sintetiza em si, por assim dizer,
todas as qualidades desse povo prenhe de Deus, aguardando a revelação de sua
glória.
- II leitura: 1Cor 15,20-27ª
No
quadro da glória celestial, a segunda leitura evoca a visão da vitória de
Cristo sobre a morte (presente também na liturgia da solenidade de Cristo Rei
no Ano A). O sinal da vitória definitiva de Cristo é a ressurreição, seu
triunfo sobre a morte. Essa vitória se realizou na sua própria morte e se
realizará também na morte dos que o seguem. Maria já está associada a Jesus
nessa vitória definitiva; nela, a humanidade redimida reconhece sua meta.
- Evangelho: Lc 1,39-56
O evangelho de hoje é o Magnificat. O
quadro narrativo é significativo: Maria vai ajudar sua parenta Isabel, grávida,
no sexto mês. Ao dar as boas-vindas à prima, Isabel interpreta a admiração dos
fiéis por aquilo que Deus operou em Maria. Esta responde, revelando sua percepção
do mistério do agir divino: um agir de pura graça, que não se baseia em poder
humano; pelo contrário, envergonha esse poder, ao elevar e engrandecer o
pequeno e humilhado que, porém, se dedica ao serviço de sua vontade amorosa. O
amor de Deus se realiza não por meio da força, mas da humilde dedicação e
doação. E nisso manifesta sua grandeza e glória.
O Magnificat, hoje, ganha nova atualidade, por traduzir
a pedagogia divina: Deus recorre aos humildes para realizar suas grandes obras.
Ele escolhe o lado de quem, aos olhos do mundo, é insignificante. Podemos ler
no Magnificat a expressão da consciência de
pessoas “humildes” no sentido bíblico: rebaixadas, humilhadas, oprimidas. A
“humildade” não é vista como virtude aplaudida, mas como baixo estado social
mesmo, como a “humilhação” de Maria, que nem tinha o status de
casada, e de toda a comunidade de humildes, o “pequeno rebanho” tão
característico do Evangelho de Lucas (cf. 12,32, texto peculiar de Lc). Na
maravilha acontecida a Maria, a comunidade dos humildes vê claramente que Deus
não obra por meio dos poderosos. É a antecipação da realidade escatológica, na
qual será grande quem confiou em Deus e se tornou seu servo (sua serva), e não
quem quis ser grande pelas próprias forças, pisando os outros. Assim,
realiza-se tudo o que Deus deixou entrever desde o tempo dos patriarcas (as
promessas).
A
glorificação de Maria no céu é a realização dessa perspectiva final e
definitiva. Em Maria são coroadas a fé e a disponibilidade de quem se torna
servo da justiça e da bondade de Deus; impotente aos olhos do mundo, mas grande
na obra que Deus realiza. É a Igreja dos pobres de Deus que hoje é coroada.
A
celebração litúrgica deverá, portanto, suscitar nos fiéis dois sentimentos
dificilmente conjugáveis: o triunfo e a humildade. O único meio para unir esses
dois momentos é pôr tudo nas mãos de Deus, ou seja, esvaziar-se de toda glória
pessoal, na fé em que Deus já começou a realizar a plenitude das promessas.
Em Maria vislumbramos a combinação ideal da glória e da humildade:
ela deixou Deus ser grande na sua vida.
III. Pistas para reflexão
A Mãe gloriosa e a grandeza dos pobres: o Magnificat de
Maria é o resumo da obra de Deus com ela e em torno dela. Humilde serva –
faltava-lhe o status de mulher casada –, foi “exaltada” por Deus
para ser mãe do Salvador e participar de sua glória, pois o amor verdadeiro une
para sempre. Sua grandeza não vem do valor que a sociedade lhe confere, mas da
maravilha que Deus nela opera. Aconteceu um diálogo
de amor entre Deus e a moça de Nazaré: ao convite de Deus, responde
o “sim” de Maria; e à doação dela na maternidade e no seguimento de Jesus,
responde o grande “sim” de Deus, com a glorificação de sua serva. Em Maria,
Deus tem espaço para operar maravilhas. Em compensação, os que estão cheios de
si mesmos não o deixam agir e, por isso, são despedidos de mãos vazias, pelo
menos no que diz respeito às coisas de Deus. O filho de Maria coloca na sombra
os poderosos deste mundo, pois, enquanto estes oprimem, ele salva de verdade.
Essa maravilha só é possível porque Maria não está cheia de si
mesma, como os que confiam no seu dinheiro e status, mas
“cheia de graça”. Ela é serva, está a serviço – também de sua prima, grávida
como ela – e, por isso, sabe colaborar com as maravilhas de Deus. Sabe doar-se,
entregar-se àquilo que é maior que sua própria pessoa. A
grandeza do pobre é que ele se dispõe para ser servo de Deus,
superando todas as servidões humanas. Ora, para que seu serviço seja grandeza,
o fiel tem de saber decidir a quem serve: a Deus ou aos que se arrogam
injustamente o poder sobre seus semelhantes. Consciente de sua opção, quem é
pobre segundo o Espírito de Deus realizará coisas que os ricos e os poderosos,
presos na sua autossuficiência, não realizam: a radical doação aos outros, a
simplicidade, a generosidade sem cálculo, a solidariedade, a criação de um
homem novo para um mundo novo, um mundo de Deus.
A vida
de Maria, a “serva”, assemelha-se à do “servo”, Jesus, “exaltado” por Deus por
causa de sua fidelidade até a morte (cf. Fl 2,6-11). De fato, o amor torna as
pessoas semelhantes entre si. Também na glória. Em Maria realiza-se, desde o
fim de sua vida na terra, o que Paulo descreve na segunda leitura: a entrada
dos que pertencem a Cristo na vida gloriosa concedida pelo Pai, uma vez que o
Filho venceu a morte.
Congratulando
Maria, congratulamos a nós mesmos, a Igreja. Pois, mãe de Cristo e mãe da fé,
Maria é também mãe da Igreja. Na “mulher vestida de sol” (primeira leitura)
confundem-se os traços de Maria com os da Igreja. Sua glorificação são as
primícias da glória de seus filhos na fé.
No
momento histórico em que vivemos, a contemplação da “serva gloriosa” pode
trazer uma luz preciosa. Quem seria a “humilde serva” no século XXI, século da
publicidade e do sensacionalismo? Sua história é serviço humilde e glória
escondida em Deus. Não se assemelha a isso a Igreja dos pobres? A exaltação de
Maria é sinal de esperança para os pobres. Sua história também joga luz sobre o
papel da mulher, especialmente da mulher pobre, “duplamente oprimida”. Maria é
“a mãe da libertação”.
Johan Konings
Pe. Johan Konings, sj,
nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É
doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela
Universidade Católica de Lovaina (Bélgica). Atualmente é professor de Exegese
Bíblica na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte.
Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo
Testamento (tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica
bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia;
A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos
fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A
Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e
Lucas e da “Fonte Q”. E-mail: konings@faculdadejesuita.edu.br.
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/assuncao-de-nossa-senhora-19-de-agosto/
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