Vocação
universal à santidade: redescoberta do Vaticano II
Por Pe. José Lisboa Moreira de Oliveira, sdv
No dia 21 de novembro de 2023 estaremos celebrando 59 anos da
promulgação da Constituição dogmática Lumen
Gentium (LG), sobre a Igreja, do Concílio Ecumênico Vaticano
II. Não podemos deixar passar despercebida essa data tão significativa. De
fato, a LG é, sem dúvida alguma, o marco referencial para toda a “revolução”
provocada pelo último Concílio.
Voltando à noção bíblica de povo de Deus[1], a LG
propôs verdadeira redefinição do conceito e da experiência de Igreja. Até então
a eclesiologia era profundamente dominada pelo aspecto jurisdicionista. Essa
visão burocrática de Igreja forma-se no âmbito da cultura do século XVIII e
torna-se oficial no Concílio Vaticano I. Nessa eclesiologia, a dimensão do
mistério desaparece, a conexão da Igreja com o Espírito do Ressuscitado não é
colocada em evidência. Cristo e o Espírito não são mais os sujeitos da
santificação. A Igreja não é a “ekklesia”, isto é, a assembleia daqueles e daquelas que foram
convocados pela Trindade; não é mais a “communio
sanctorum”, ou seja, a comunhão dos santos e santas, mas passa a
ser identificada exclusivamente com o clero[2].
Retomando
a ideia patrística de Igreja, “povo congregado na unidade do Pai e do Filho e
do Espírito Santo” (LG 4), o Vaticano II lembra que todos os batizados e
batizadas têm dignidade, liberdade, formam a comunidade dos filhos e filhas de
Deus e são templos do Espírito Santo (cf. LG 9). Todo o povo de Deus, por causa
do sacerdócio comum dos fiéis, é chamado à plena participação e a uma vida
santa (cf. LG 10). Aliás, não só os católicos, mas também os demais cristãos e
toda a humanidade são destinados a ser povo de Deus (cf. LG 13).
Nessa
perspectiva, a LG fala de vocação universal à santidade. Todo o capítulo 5
dessa constituição conciliar é dedicado a essa temática. Trata-se de verdadeira
reviravolta, uma vez que, em uma eclesiologia que identificava a Igreja com o
clero, a santidade tinha sido reduzida a uma “propriedade privada” de bispos e
padres e, em alguns casos, de algumas freiras. Ser santo não era coisa para o
povo!
Neste
artigo, considerando o significativo acontecimento dos 40 anos da LG, queremos
refletir sobre essa redescoberta do Vaticano II. Vamos, em primeiro lugar,
tentar entender o que é a santidade. Em seguida falaremos da sua
universalidade, conforme a proposta lançada pelo Concílio. Num terceiro momento
abordaremos o tema da diversidade da santidade e, ligado a essa questão, o da
legitimidade dos diversos caminhos que levam à santificação. Por fim, vamos
deixar algumas “provocações” para o momento eclesial que estamos vivendo.
1.
O que é a santidade?
Convém
começar esta reflexão esclarecendo o que é a santidade, uma vez que ainda hoje
isso não é tão claro. Na maioria das vezes, a santidade é confundida com
atitudes de beatice ou carolice. No linguajar comum, especialmente dos grupos
fundamentalistas atuais, das comunidades neoconservadoras que estão surgindo
ultimamente no interior da nossa Igreja, a santidade é relacionada com atitudes
alienadas e com comportamentos desequilibrados e totalmente distantes do mundo
real.
A
vocação ou chamado à santidade de que fala a LG tem um fundamento bíblico e,
como tal, está profundamente relacionada com o cotidiano e com a prática
concreta da vida de cada dia. Para ser santa, a pessoa não precisa fugir do seu
estado de vida. Ela se santifica exatamente e somente pelo compromisso com a
sua condição humana e cristã. A vocação à santidade consiste na capacidade de
responder ao apelo divino por meio da vivência evangélica do próprio estilo de
vida (cf. LG 39).
A LG define a santidade com base na Bíblia[3]. Na
Sagrada Escritura a santidade tem duas grandes características. Antes de tudo,
ela é uma prerrogativa exclusiva de Deus. Só Deus é Santo. Por isso mesmo, ela
não é algo adquirido pelos esforços e méritos das pessoas, mas uma dádiva, um
dom divino. Deus nos comunica a sua santidade, fazendo-nos participantes da sua
vida divina. A segunda característica está relacionada com isso. A comunicação
da santidade por parte de Deus não se dá diretamente e particularmente a cada
pessoa, mas à comunidade convocada e reunida por ele. Na concepção do Concílio
— que é também a visão bíblica — não existe o santo isolado. A pessoa se
santifica enquanto é pertencente a uma comunidade.
A
partir do que foi dito, podemos afirmar que a santidade é um chamado que o Pai,
pelo Filho, na ação do Espírito, dirige a toda a humanidade e, de modo
particular, a todas as pessoas batizadas. Tal chamado tem três elementos
básicos: a pertença, a missão e o testemunho.
O chamado à santidade é, antes
de tudo, um convite a pertencer à família divina. Nós somos o povo que pertence
a Deus, sua “particular propriedade” (1Pd 2,9). Isso significa que somos
aqueles e aquelas que são escolhidos e amados pelo Criador. Não somos o
resultado do acaso, do destino, do pecado, mas o fruto do amor ilimitado da
Trindade. Nascemos do amor de Deus e somos predestinados ao Amor. Nossa
característica principal é amar e gozar a experiência fascinante de ser filho
ou filha de Deus (cf. Ef 1,4-5).
Porque
amados e amadas por Deus, recebemos a missão de comunicar o seu amor aos demais
homens e mulheres. Nesse sentido, a santidade é participação na missão do Filho
e do Espírito. A Igreja é “indefectivelmente santa” (LG 39) porque é enviada
para ser “sacramento universal de salvação” (AG 1). Deus nos escolhe e nos
envia para proclamar as suas “excelências”, as suas maravilhas (cf. 1Pd 2,9).
Portanto, ser santo ou santa é acolher com alegria e disposição o chamado para
tomar parte ativa na missão evangelizadora da Igreja, para anunciar a todas as
pessoas o projeto de vida que a Trindade Santa tem para toda a humanidade.
Enquanto
anúncio, convite para proclamar a boa notícia, a santidade é também uma convocação
ao testemunho. Aqueles e aquelas que experimentaram a ternura e a misericórdia
do Pai são convidados a comunicar essa experiência mediante o próprio modo de
viver. Um estilo de vida no qual a experiência do amor seja bem visível e
consiga envolver outras pessoas. A santidade seria, então, uma vida vivida como
expressão do Mistério, como fascinação e como encanto pela Trindade e pela vida
que ela espalha pelo universo.
Precisamos,
pois, afirmar com muita clareza que a vocação à santidade, perspectiva bíblica
assumida pelo Vaticano II, não tem aquelas conotações moralistas de uma ascese
que nasceu de certo espiritualismo de fuga e das colorações maniqueístas que
empestaram a Igreja por muito tempo. A ruptura com a mediocridade, com a
superficialidade, e a busca da transparência e da perfeição evangélica são
apenas o resultado do processo.
Nesse dinamismo que acabamos de apresentar, não se nega a
importância do esforço (cf. Mt 7,13-14) e da luta (cf. 1Cor 9,24-27), mas esses
são apenas elementos derivantes. O mais importante na santidade é o dom, é a
graça. A Igreja, e nela cada pessoa, participa apenas respondendo ao dom
recebido de forma totalmente gratuita. A santidade é um presente de Deus! A
Igreja é santa porque a Trindade é santa;
porque a sua origem e a sua fonte são santas (cf. LG 39). O santo, ou a santa,
portanto, é aquela pessoa que fez a experiência de ter sido amada primeiro (cf.
1Jo 4,10) e responde à iniciativa divina amando os demais irmãos e irmãs,
tornando-se assim anunciadora dessa maravilhosa dádiva e desse carisma que
ultrapassa os demais (cf. 1Cor 12,31).
2.
A universalidade da santidade
A santidade, descrita nos termos que acabamos de apresentar, não
é “uma vocação reservada a alguns, monopólio de certos estados ou privilégio de
uma casta”[4]. O
Concílio Vaticano II foi bem explícito: todos na Igreja são chamados à
santidade (cf. LG 39). Todas as pessoas, de qualquer condição, de qualquer
estado de vida, são vocacionadas à santidade de vida (cf. LG 40).
Hoje, depois de 40 anos, tal afirmação pode parecer tranquila.
Mas nem sempre foi assim. Já tivemos ocasião de acenar para um tipo de
mentalidade que vigorava até a época do Vaticano II. Tal mentalidade levava a
comunidade cristã a delegar a santidade a umas poucas pessoas, como bispos,
padres e particularmente monges. O simples cristão deveria se contentar em
recolher as migalhas que, a conta-gotas, eram difundidas pelos mosteiros. Os
leigos e as leigas podiam aspirar apenas à salvação concedida pela prática
sacramental e pela benevolência da hierarquia. Por estarem no mundo, ficavam
impedidos de ser santos e santas[5].
Em nossos dias isso ainda não é considerado uma coisa normal.
Para constatar isso, basta seguir todo o processo burocrático mediante o qual a
hierarquia da Igreja costuma canonizar os seus santos e santas. Acompanhando a
referida prática, fica a impressão de que a santidade ainda é monopólio de
algumas castas. Normalmente são canonizadas pessoas que pertenceram ao clero ou
à vida religiosa. Para fazer alguém chegar à “honra dos altares” é necessário
muito dinheiro e pelo menos dois milagres! A canonização de um cristão leigo ou
cristã leiga é raridade! Se for uma pessoa casada, ainda mais raro — mesmo que
os leigos e leigas sejam a quase totalidade da Igreja!
Essas constatações nos mostram como é urgente tomarmos consciência “da importância da
consagração batismal e da exigência de santidade do povo de Deus”[6]. De
fato, o que ainda causa problema é a dificuldade que temos em aceitar o valor e
a beleza da vocação batismal. Para muitas pessoas, o batismo não passa de um
puro ritual revestido de muita mágica e sem nenhum significado para a vida
concreta dos cristãos e cristãs[7].
A superação dessa mentalidade redutiva da vocação à santidade
comporta a tomada de consciência de alguns elementos fundamentais. Antes de
tudo, a certeza de que o Espírito do Senhor foi enviado a todos os batizados e
batizadas. “A vida espiritual de todo o Povo de Deus pode beber do mesmo
espírito que não discrimina suas maravilhas segundo as categorias jurídicas,
derramando-as com total prodigalidade e generosidade sobre todos aqueles e
aquelas que, pelo batismo, foram enxertados no mistério de Cristo e passaram a
encontrar nele o mais profundo e verdadeiro de sua identidade”[8].
Consequentemente, a santidade não é propriedade privada de nenhuma pessoa e de
nenhum grupo.
O
segundo elemento refere-se à convicção de que a justificação realizada por
Cristo não exclui ninguém, uma vez que todos pecaram e todos são justificados
gratuitamente (cf. Rm 3,21-26). Além disso, todos os cristãos e cristãs, pelo
batismo, “foram feitos verdadeiros filhos de Deus e participantes da natureza
divina, e por isso mesmo verdadeiramente santos” (LG 40).
A ideia de que a santidade é uma exclusividade de determinadas
pessoas ou de certos grupos não tem fundamento. Do mesmo modo, não podemos
pensar a santidade como uma categoria do futuro. Embora tenha existido sempre
na comunidade cristã a concepção de que “todos pecaram e estão privados da
glória de Deus” (Rm 3,23), o Concílio Vaticano II “atribui o predicado da
santidade não apenas à Igreja escatológica, mas também à Igreja terrena”[9].
3.
Diversas formas de santidade
Reconhecendo que a santidade é dom da Trindade para todas as
pessoas, a LG põe em evidência outro aspecto muito significativo. O Concílio
afirma que cada pessoa cultiva de forma diferente a mesma e única santidade, de
acordo com os carismas recebidos do Espírito (cf. LG 41). Isso é bastante
significativo. Não só se afirma a universalidade da santidade, mas também a
legitimidade da diversidade dessa mesma santidade[10]. De
fato, “a santidade é, em cada um, uma vocação que não pode ser senão pessoal, e
cuja resposta é também
pessoal. Deus não fabrica santos em série”[11].
Tendo
presente esse dinamismo, a LG insiste em dizer que existe não só uma
diversidade da santidade relacionada com os três grandes grupos de vocação específica
(cristãos leigos e leigas, vida consagrada, ministério ordenado), mas também de
pessoa para pessoa. Dessa maneira, é totalmente legítimo que alguém viva o
chamado à santidade de forma única, sem precisar copiar nada de outra, sem ser
a fotocópia de outro santo ou santa.
A afirmação da legítima diversificação do jeito de ser santo
supõe outro aspecto muito importante. A santidade não se dá “nas nuvens”, em
“outro planeta”, fora da realidade, mas no cotidiano da vida. Todas as pessoas,
sem distinção alguma, são chamadas a ser santas nas condições normais de sua
vida, com base naquilo que são e naquilo que fazem. A santidade é um dom que
deve ser acolhido e cultivado no tempo, no espaço, nas ocupações e nas
circunstâncias em que nos situamos (cf. LG 41). O cristão, a cristã, “não se
santifica apesar dos
deveres de sua posição”, mas, “antes e principalmente, em e por estes
deveres”[12].
Uma vez
salvaguardada a possibilidade e a legitimidade da diversidade da santidade, a
LG indica algumas características típicas da santidade de cada uma das vocações
específicas. Trata-se, é claro, de indicações genéricas e bem abertas, uma vez
que, como dissemos, cada pessoa viverá esse chamado de forma única, segundo os
dons recebidos do Espírito de Deus.
No
tocante à santidade dos cristãos leigos e leigas, o Vaticano II destaca o
significado do trabalho, da participação na construção do bem comum e da
cidadania, do labor cotidiano, com suas alegrias e também com suas cruzes. A
vida matrimonial ganha especial destaque, uma vez que é considerada um exemplo
para a construção da fraternidade. Já a vida consagrada é chamada a santificar-se
no seu carisma de ser paradigma do seguimento de Cristo casto, pobre e
obediente. Os ministros ordenados vivem a vocação universal à santidade por
meio do desempenho do seu ministério, o qual deve ter como característica
principal a caridade pastoral, ou seja, o serviço aos demais membros do povo de
Deus. Desta forma a LG, embora afirmando os pontos comuns da santidade, válidos
para todos os cristãos e cristãs, quis destacar também o específico, aquilo que
brota da diversidade, da diferença gerada pelo próprio Espírito de Deus (cf.
lCor 12,7).
Não podemos, porém, deixar de salientar um dado particular.
Referindo-se ao multiforme exercício da única santidade, a LG quis dar um lugar
privilegiado aos pobres, ou seja, àqueles “que vivem oprimidos na pobreza, na
fraqueza, na doença e noutras tribulações, ou os que sofrem perseguições por
amor da justiça” (LG 41f). Embora deixasse claro que a santidade não é
exclusividade de nenhuma casta, o Concílio, seguindo a tradição bíblica[13], não
hesita em afirmar que há uma santidade especial que pertence aos excluídos e
excluídas.
A LG deixou bem clara a convicção de que a Igreja deve seguir o
exemplo de Cristo, o qual, além de se fazer pobre, quis ser o evangelizador dos
pobres. Assim sendo, a santidade, dom de Deus para toda a humanidade, tem o seu
referencial no mundo dos pobres. Sem opção verdadeira e preferencial pelos
excluídos e excluídas não existe caminho para a santidade. Todo aquele e aquela
que realmente deseja viver a experiência da santidade terá necessariamente de
ser sensível aos gritos dos deserdados deste mundo[14]. A
santidade cristã só pode ser vivida na prática concreta da “religião da
estrada”, daquela experiência de Deus que passa pela atenção aos que estão
jogados e caídos à margem da nossa sociedade[15].
4.
Caminhos de santidade
Além de apontar as diversas formas de santidade, a LG indica os
caminhos, isto é, os meios pelos quais a comunidade dos batizados e batizadas
pode viver esse chamado universal. O caminho principal é, sem dúvida alguma,
aquele da prática do amor, da caridade. O Vaticano II é muito
enfático quando se refere a esse fato: “O dom principal e mais necessário é a
caridade, pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo por causa
dele” (LG 42).
É
bastante significativo que o Concílio fale de dom do amor, deixando entender
que não se trata apenas de um esforço para praticar a caridade. O amor é uma
dádiva divina, uma iniciativa do Pai, que a pessoa humana é chamada a acolher.
A Trindade gratuitamente nos oferece o seu amor e propõe que gratuitamente o
aceitemos. Não se trata de uma troca, como, aliás, dão a entender certas
devoções espalhadas por aí e baseadas na questão do mérito. A visão conciliar,
fundamentada biblicamente, elimina aquela “concepção bancária” de santidade,
segundo a qual a pessoa vai acumulando “créditos” para a sua salvação, sempre a
partir daquilo que faz.
A vocação de toda pessoa humana é um convite a amar. Nós somos
criados “no amor e para o amor”[16]. Esse
chamamento tem o seu fundamento na iniciativa da Trindade, que nos amou
primeiro (cf. 1Jo 4,10). Desse gesto estupendo de Deus brota a proposta para
todo aquele e toda aquela que querem seguir Jesus: “Se Deus nos amou a tal
ponto, também nós devemos amar-nos uns aos outros” (1Jo 4,11). Dessa forma o
amor passa a ser o distintivo da vida cristã (cf. Jo 13,35) e a santidade, um
apelo para sermos “sem defeito no amor” (Ef 1,4). “Não será por demais
sublinhar a importância desta valorização da caridade.” Em relação a ela tudo é
meio, tudo se mede por ela”[17].
A LG afirma ainda que a prática do amor leva necessariamente a
outras atitudes que podem ser sintetizadas, como o cultivo dos “mesmos
sentimentos que havia em Cristo Jesus” (LG 42), em clara alusão à Carta aos
Filipenses. Isso significa que a santidade, enquanto prática do amor e de um
estilo de vida semelhante ao de Jesus, tem a sua dimensão ética. O dom recebido
no batismo torna-se resposta humana, um modo concreto de viver a graça recebida
ao longo da vida, da existência[18].
Responder ao chamado à santidade é assumir um “solene compromisso”[19] de
ser presença que ajuda na transformação do mundo. A santidade é um convite a
“fazer a diferença” num mundo onde existe a tendência a fazer tudo como propõe
o mercado neoliberal. Falando simbolicamente, a santidade é o apelo a sermos
sal, luz e fermento (cf. Mt 5,13-16; 13,33).
Todavia, lembra ainda a LG, a santidade não cresce e não
frutifica se não for alimentada. Por isso os cristãos e cristãs são convidados
a ouvir a Palavra, participar dos sacramentos, cultivar a vida de oração, viver
de modo abnegado e pôr-se a serviço dos irmãos e das irmãs. Talvez a novidade
mais significativa seja a referência à escuta da Palavra de Deus, uma vez que
até então se propunha um estilo de vida cristã sem praticamente nenhuma relação
com a Bíblia[20].
Muitos eram os atos de piedade, as devoções, as penitências, enquanto a
meditação da Sagrada Escritura era pouco cultivada. Palavra e sacramentos
estavam dissociados. Os textos sagrados tinham sido tirados das mãos do povo. A
própria hierarquia da Igreja, numa interpretação exagerada dos decretos do Concílio
de Trento, condenou como herética a afirmação de que o estudo e o conhecimento
da Escritura eram úteis e necessários para a vida cristã. Chegou-se ao cúmulo
de afirmar que a leitura da Bíblia não era para todas as pessoas[21].
Além
desses caminhos já mencionados, a LG lembra ainda o significado do martírio,
dos “muitos conselhos evangélicos” e da pobreza evangélica. A referência aos
conselhos evangélicos, destacando-se a virgindade ou celibato, parece não ter
escapado do ranço pré-conciliar que atribuía a perfeição à vida monacal. Hoje
soa como muito estranha a afirmação da “singular estima” da Igreja pela “continência
perfeita”, considerada “sinal da caridade” e “fonte peculiar de fecundidade
espiritual” (LG 42c).
A
pergunta legítima a ser feita é a seguinte: o matrimônio não deve ser também
estimado? Também ele não é sinal de caridade e de fecundidade espiritual (cf.
Gn 1,26-27)? Por isso esse parágrafo, para ser completo e entendido
corretamente, precisa ser lido à luz de outros textos conciliares em que se
afirma a positividade e a beleza do casamento (cf. GS 47-52). Sem essa leitura
o texto em análise pode perder a sua força renovadora. A espiritualidade dos
cristãos leigos e leigas teria um caráter monástico e ficaria desprovida de
seus elementos específicos, o que certamente não estaria na mente da maioria
dos padres conciliares.
Por fim
a LG recorda que o caminho da santidade passa pela renúncia à riqueza e pela
acolhida do espírito de pobreza evangélica (LG 42e). No seu retorno às fontes
bíblicas, o Vaticano II quis lembrar a todos os cristãos e cristãs que é
impossível conciliar riqueza e seguimento de Cristo (cf. Mt 19,23-26). Não se
podem abraçar as duas coisas ao mesmo tempo. Quem quiser amar uma coisa terá de
abandonar a outra (cf. Mt 6,24)! O Concílio não propõe uma santidade que se
afaste do mundo e da humanidade. Sugere apenas que ela seja cultivada a partir
da consciência da relatividade de determinadas coisas, de tal forma que isso
possibilite a comunhão, a fraternidade e a partilha.
5.
Algumas “provocações” para a
Igreja do nosso tempo
A
leitura e o estudo do capítulo 5 da LG certamente trazem alguns questionamentos
para a Igreja dos nossos dias. A distância que nos separa do Vaticano II já
permitiu a criação de muitos vazios e lacunas. Para muita gente, o último
Concílio não diz mais nada. Em muitos lugares estamos assistindo a fenômenos
que parecem ignorar completamente esse evento eclesial. Nem parece que ele,
como afirmou João Paulo II, foi “a grande graça de que se beneficiou a Igreja
no século XX” ou constitui a “bússola segura” que vai orientar o nosso caminhar
neste novo século (cf. NMI 57). Por essa e outras razões convém agora
apresentar algumas “provocações” que o texto sobre a vocação universal à
santidade faz ao nosso atual jeito de ser Igreja.
Um
primeiro questionamento diz respeito ao conceito de santidade. Não seria ele
ainda muito arcaico e ultrapassado? Parece-nos que, na mentalidade da maioria
das pessoas, a santidade ainda tem um sabor “angelical”. Ela é considerada como
algo pouco humano. A visão que se tem de santidade é bastante igrejeira e sem
muita relação com a vida concreta, especialmente com a luta pela sobrevivência.
Tem-se a impressão de que a santidade pregada nos púlpitos eletrônicos modernos
tem cheiro de mofo e de muita alienação. Não é fascinação pela vida, não é
resgate da beleza da criação e de tudo aquilo que Deus, ao criar, viu que era
“muito bom” (Gn 1,31). Sente-se no ar um odor muito forte de maniqueísmo e de
dualismo — especialmente proveniente de grupos fundamentalistas e
neoconservadores. Está na hora de não mais confundir o santo, a santa, com o
beato, o carola e o sujeito “barata-de-igreja”. A santidade dos cristãos e
cristãs deve produzir um “mundo esplêndido”, bonito, sadio. Onde está escrito
que o santo e a santa devem ser confundidos com neuróticos e alienados?
Essa
inquietação suscita outra. Por que ainda continuamos a privilegiar algumas
castas, como se a santidade não fosse universal? Não estaria na hora de
revolucionar a prática da canonização de santos? Por que os cristãos leigos e
leigas — que são maioria absoluta na Igreja — não são canonizados em igual
número? Por que continuam sendo exceção? Por que não canonizar mais casais? Por
que continuar privilegiando padres, frades e freiras?
Além disso, parece estar na hora de mexer na “máquina
burocrática” de “fazer santos”. Não é possível
afirmar a universalidade da santidade quando ainda se exige muito dinheiro para
“fazer” um santo! Desse jeito os pobres, especialmente os leigos e leigas,
nunca vão ter oportunidade. Do mesmo modo, não é possível afirmar a normalidade
da santidade quando ainda se exigem dois milagres extraordinários para se
chegar a uma canonização. Não é suficiente o testemunho de vida? Por que
pretender “milagres” quando o cotidiano da pessoa já foi um milagre?
Disso se pode deduzir outro questionamento. Por que adiar a
santidade para depois da morte? Não é possível reconhecer e apontar os santos e
as santas que estão vivendo no meio de nós? Por que, como faziam as primeiras
comunidades[22], não
nos reconhecemos todos santos e santas, ou seja, gente que foi escolhida pelo
Pai desde toda a eternidade (cf. Ef 1,4), pessoas chamadas à santidade (cf. Rm
1,7)? Não deveríamos propagar mais claramente a certeza de que já fomos
santificados em Cristo Jesus e, portanto, já podemos ser considerados santos e
santas (cf. 1Cor 1,2)? A solenidade de todos os santos e santas, celebrada pela
Igreja no dia 1º de novembro, não deveria ser a festa de todos nós, discípulos
e discípulas de Jesus? Somos ou não somos “um sacerdócio real, uma nação
santa”, o povo que é “propriedade”
do Senhor? (cf. 1Pd 2,9). Por que, então, ficar com medo de ser reconhecido
como santo ou santa?
E se isso tudo é verdadeiro, por que ainda temos medo de
canonizar os santos e as santas que viveram no nosso tempo? Por que a escolha
das pessoas a ser canonizadas ainda é marcada por certa ideologia de direita?
Por que, com frequência, canonizam-se pessoas martirizadas pelas ditaduras de
esquerda e não se faz o mesmo com os heróis brutalmente assassinados pelos
regimes de direita? Por que, por exemplo, negar a nós, latino-americanos e
caribenhos, o direito de termos reconhecidos oficialmente estes nossos mártires:
São Romero, São Josimo, Santo Eugênio Lyra, Santo Dias da Silva e tantos
outros? A lista desses mártires é bastante longa[23]. No
entanto, reina o mais absoluto silêncio. Nenhum deles foi canonizado.
6.
Conclusão: “Sejam santos,
porque eu sou santo” (Lv 19,2)
A
vocação universal à santidade, tão bem resgatada pela LG, tem uma fundamentação
bíblica. Pertence ao maravilhoso patrimônio que os cristãos e cristãs herdaram
do judaísmo. A primeira carta de Pedro atesta isso com toda a clareza (cf. 1Pd
1,15-16). Os escritos paulinos também são unânimes em afirmar que todos os
homens e todas as mulheres são chamados a ser santos e santas (cf. 1Cor 1,2).
Portanto, a ausência desse universalismo em nossa prática evangelizadora nega
profundamente a proposta do Livro Sagrado.
A
celebração dos 40 anos da LG deveria nos ajudar a avaliar o caminho que temos
feito até agora. Seria muito bom que ela nos ajudasse a ousar e a acreditar
muito mais na possibilidade da santidade para todos os batizados e batizadas.
Aliás, quanto a isso, a LG foi muito mais corajosa. Ela estendeu a
universalidade da vocação à santidade a todos os homens e a todas as mulheres
da terra. De fato, como afirma o capítulo sobre o povo de Deus, a divina
providência não nega essa possibilidade a ninguém, nem mesmo àqueles e àquelas
que, sem culpa, ainda não chegaram ao conhecimento explícito da mensagem do evangelho
(cf. LG 13-16). A santidade é dom do Espírito Santo (cf. LG 39) acolhido
mediante a prática da caridade. Por isso mesmo, o risco de não chegar à
santidade só se verifica quando falta o amor (cf. LG 42). Nesse sentido, o
Vaticano II foi audacioso ao afirmar categoricamente que a pertença à Igreja
não é garantia de santidade. Alguém pode ser batizado, crismado, frequentador
habitual das igrejas, “católico de carteirinha”, mas, se “não persevera na
caridade”, corre o risco de não acolher e de não cultivar a santidade (cf. LG
14).
Temos, pois, grande tarefa pela frente: resgatar o verdadeiro
significado e a verdadeira vivência da vocação universal à santidade.
Infelizmente os nossos horizontes são ainda muito estreitos. Mas podemos
aprender essa tarefa com aqueles e aquelas que prepararam, fizeram e viveram o
Concílio Vaticano II. Essas pessoas acreditaram na possibilidade da
universalidade da santidade. Uma dessas pessoas foi o Pe. Justino Russolillo,
fundador da Sociedade das Divinas Vocações (vocacionistas), que, ao lado de
tantos outros, pode ser considerado um precursor do Vaticano II. Já no início
do século passado ele afirmava: “De um modo geral tudo é divina vocação no
mundo. Vocação à vida, vocação à fé, vocação à santidade. Cada ser e cada
estado digno do ser corresponde a uma divina vocação”[24].
Somos chamados e chamadas a ir além, a perceber a santidade como
“utopia da vocação cristã”[25].
Precisamos vê-la de forma ampla, irrestrita, ecumênica, num dinamismo que
englobe toda a humanidade, todas as religiões, todos os homens e todas as
mulheres de boa vontade. Somos convidados e convidadas a retomar o verdadeiro
espírito da LG, deixando de lado a pretensão de querer pôr limites na ação e na
bondade de Deus. Se realmente queremos viver num cristianismo mais fiel à
Palavra, temos de romper os confins de nossa família, de nossa Igreja,
abrindo-nos para todos os lados, para todos os povos, para a universalidade da
santidade. Toda atitude que procura restringir o conceito, a ideia, a
experiência de santidade a um pequeno grupo, a uma parte da Igreja, não é
certamente atitude divina[26].
Também aqui o Senhor nos diz: “Avancem para águas mais profundas” (Lc 5,4).
_________________
[1] Cf.
COMBLIN, J., O povo de
Deus, Paulus, São Paulo, 2002; LIBÂNIO, J. B., “Concílio Vaticano
II: eixos eclesiológicos numa abordagem pastoral”, em Reflexões II/2 (2003), pp.
7-23; B. FORTE, La
Chiesa icona delia Trinità. Breve ecclesiologia, Queriniana,
Bréscia, 1985, pp. 27-43; BUCKER, B. P., O feminino da Igreja e o conflito, Vozes,
Petrópolis, 1995, pp. 96-111.
[2] Cf.
ACERBI, A., Due ecclesiologie.
Ecclesiologia giuridica ed ecclesiologia di comunione nella “Lumen Gentium”,
Dehoniane, Bolonha, 1975, pp. 13-105.
[3] Cf.
OLIVEIRA, J. L. M. de, Nossa
resposta ao Amor. Teologia das vocações específicas, IPV/Loyola,
São Paulo, 2001, pp. 19-43.
[4] Cf.
LABOURDETTE, M., “A santidade, vocação de todos os membros da Igreja”, em
BARAÚNA, G. (org.), A Igreja
do Vaticano II, Vozes, Petrópolis, 1965, p. 1.057.
[5] Cf.
BINGEMER, M. C. L., “As águas batismais e a vocação do cristão leigo”, Convergência 366 (outubro
2003), pp. 459-476.
[6] LABOURDETTE,
M., “A santidade, vocação de todos os membros da Igreja”, op. cit., p. 1.057.
[7] Cf.
OLIVEIRA, J. L. M. de, “A vocação batismal: fonte da comum dignidade e da
legítima diversidade”, em Vida
Pastoral 228 (janeiro/fevereiro 2003), pp. 3-8.
[8] BINGEMER,
M. C. L., “As águas batismais e a vocação do cristão leigo”, op. cit., p. 470.
[9] BARREIRO,
A., “Povo santo e pecador”. Ensaio
sobre a dimensão eclesial da fé cristã, a crítica e a fidelidade à Igreja,
Loyola, São Paulo, 1994, p. 97.
[10] OLIVEIRA,
J. L. M. de, “Nossa resposta ao Amor”, op. cit., pp. 45-51.
[11] LABOURDETTE,
M., “A santidade, vocação de todos os membros da Igreja”, op. cit., p. 1.064.
[12] Ibidem.
[13] Cf.
1Cor 1,27-28; 12,22-26; Gl 2,10.
[14] Cf.
DUPONT, J., “A Igreja e a pobreza”, em BARAÚNA, G. (org.), A Igreja do Vaticano II, pp.
420-452.
[15] Cf.
BORTOLINI, J., Meditando com os pecadores e
pecadoras do Evangelho, Paulus, São Paulo, 2001, pp. 59-71.
[16] CNBB, Batismo, fonte de todas as
vocações. Texto-Base do Ano Vocacional 2003, Brasília, 2002,
nº 117.
[17] LABOURDETTE,
M., “A santidade, vocação de todos os membros da Igreja”, op. cit., p. 1.067.
[18] Cf.
IPARRAGUIRE, I., “Natureza da santidade cristã e meios para consegui-la”, em
BARAÚNA, G. (org.), A
Igreja do Vaticano II, pp. 1.074-1.077.
[19] Ibidem,
p. 1.075.
[20] Cf.
Ibidem, pp. 1.078-1.079.
[21] Cf.
DS 2479-2480.2710-2711; CASTILLO, J. M., Simboli di libertà. Analisi teologica dei sacramenti,
Cittadella, Assis, 1981, pp. 146-147.
[22] 2Cor
1,1; Ef 1,1; Fl 1,1; Cl 1,2.
[23] Cf.
INSTITUTO CENTRO-AMERICANO DE MANÁGUA, Sangue
pelo povo. Martirológio latino-americano, Vozes, Petrópolis, 1984.
[24] RUSSOLILLO,
G., “Sulla divina vocazione”, em Spiritus
Domina 2/2 (1928), p. 1.
[25] BINGEMER,
M. C. L., “As águas batismais e a vocação do cristão leigo”, op. cit., pp.
472-475.
[26] RUSSOLILLO,
G., Voi dunque pregate cosi: “Padre
nostro… Edizioni Vocazioniste, Roma, 1987, pp. 117-123.
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