REFLEXÃO
DOMINICAL III
FESTA DA TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR – A
Meus irmãos,
A Festa
da Transfiguração celebra o mistério de Jesus Cristo. Para nós, mineiros, é a
festa do Senhor Bom Jesus. O Bom Jesus que ilumina a vida de todos os cristãos.
Por isso, manifesta-se o Cristo e toda a sua divindade, a sua glória sobre o
mundo, como nosso salvador. É esse o sentido do Evangelho que lemos no dia de
hoje; é nesse sentido que São Marcos procura iluminar-nos à sombra da cruz de
Jesus, um cruz dolorosa, entretanto, triunfante. Aquele símbolo de ignomínia
para os gentios, de maldição para os judeus, torna-se um sinal de bênção. Eis
que na cruz morre o Filho de Deus e, nessa mesma cruz, brota a vida plena para
todas as criaturas, para a humanidade redimida por ela.
A
Transfiguração tem um significado muito singular: revelar aos apóstolos que a
passagem pela morte era temporária e a ela sucederia o fato impensável da
ressurreição. Isso porque Jesus de Nazaré era o Filho de Deus e tinha o “poder
de dar e retomar a vida” (Jo 10,18).
Mas, o
que é a Transfiguração? Não é uma aparição, podemos dizer inicialmente.
Podemos, contudo, afirmar tratar-se de um parecer sob outra forma, senão a
forma costumeira que Jesus aparecia aos seus discípulos. Ele não apareceu no
Tabor, mas tomou outra figura. Como o fenômeno é inteiramente desconhecido no
Antigo Testamento, não há uma palavra própria para descrevê-lo ao entendimento
humano. Assim, os Evangelistas foram buscar uma nova terminologia usada na
linguagem pagã, quando falavam de deuses que não assumiam a forma humana. E
usam um termo que a língua nossa, a língua de Camões, também guardou do grego:
metamorfose, isto é, assunção de outra forma. Desta maneira, temos uma outra
forma quando a água assume a forma de gelo, ou quando a lagarta se transforma
em borboleta.
No Monte
Tabor, não temos um outro Jesus; é o mesmo Jesus de Nazaré que assume uma forma
divina. Embora não possamos dizer que Deus tenha uma outra forma, o Evangelista
teve de ater-se ao linguajar e à compreensão humana. Ainda que o Antigo
Testamento não conte com transfigurações em sua linguagem, os termos com que se
descreve a de Jesus são todos desconhecidos ao descrever a divindade: luz
resplandecente, vestes brancas, alto de um monte, nuvem da qual sai uma voz.
Caros
irmãos,
A
Primeira Leitura – Dn 7,9-10.13.14, o profeta Daniel, em visão noturna, vê a
história do ponto de vista de Deus. Sucedem-se os impérios e os opressores, mas
o projeto de Deus não falha. Ele é o último juiz, que avaliará as ações dos
homens e intervirá para resgatar o seu povo. Aos reinos terrenos contrapõe-se o
Reino que o Ancião confia a um misterioso “filho de homem” que vem sobre as
nuvens. Trata-se de um verdadeiro homem, mas de origem divina. Na primeira
leitura já não se trata do Messias davídico que havia de restaurar o Reino de
Israel, mas da sua transfiguração sobrenatural: o Filho do homem vem inaugurar
um reino que, embora se insira no tempo, “não é deste mundo” (Jo 18, 36). Ele
triunfará sobre as potências terrenas, conduzindo a história à sua realização
escatológica. Jesus irá identificar-se muitas vezes com esta figura bíblica na
sua pregação e particularmente diante do Sinédrio, que o condenará à morte.
Na
segunda leitura – 2Pd 1,16-19 – o príncipe dos Apóstolos – São Pedro e os seus
companheiros reconhecem-se portadores de uma graça maior que a dos profetas,
porque ouviram a voz celeste que proclamava Filho muito amado do Pai, Jesus,
seu mestre. Mas a Palavra do Antigo Testamento continua a ser “uma lâmpada que
brilha num lugar escuro” (v. 19), até ao dia sem fim, quando Cristo vier na sua
glória. Jesus transfigurado sustenta a nossa fé e acende em nós o desejo da
esperança nesta caminhada. A “estrela da manhã” já brilha no coração de quem
espera vigilante.
Prezados
irmãos,
No
Evangelho – Mt 17, 1-19, a Transfiguração confirma a fé dos Apóstolos,
manifestada por Pedro em Cesareia de Filipe, e os ajuda a ultrapassar a sua
oposição à perspetiva da paixão anunciada por Jesus. Quem quiser Seu discípulo,
terá de participar nos seus sofrimentos (Mt 16, 21-27). A Transfiguração é um
primeiro resplendor da glória divina do Filho, chamado a ser Servo sofredor
para salvação dos homens. Na oração, Jesus transfigura-se e deixa entrever a
sua identidade sobrenatural. Moisés e Elias são protagonistas de um êxodo muito
diferente nas circunstâncias, mas idêntico na motivação: a fidelidade absoluta
a Deus. A luz da Transfiguração clarifica interiormente o seu caminho terreno.
Quando a visão parece estar a terminar, Pedro como que tenta parar o tempo. É,
então, envolvido com os companheiros pela nuvem. É a nuvem da presença de Deus,
do mistério que se revela permanecendo incognoscível. Mas Pedro, Tiago e João
recebem dele a luz mais resplandecente: a voz divina proclama a identidade
Jesus, Filho e Servo sofredor (cf Is 42, 1).
Jesus
manda os seus discípulos rezar. Hoje, toma à parte os seus prediletos, Pedro,
Tiago e João, para os fazer rezar mais longa e intimamente. Estes três
representam particularmente os pontífices, os religiosos, as almas chamadas à
perfeição. Para rezar Jesus gosta da solidão, a montanha onde reina a paz, a
calma, onde pode ver-se a grandeza da obra divina sob o céu estrelado durante
as belas noites do Oriente. A transfiguração é uma visão do céu. É uma graça
extraordinária para os três apóstolos. Não nos devemos agarrar às graças
extraordinárias que são por vezes o fruto da contemplação. Pedro agarra-se a
isso. Engana-se. Queria ficar lá: “Façamos três tendas”, diz. Não sabia o que
dizia. A visão desaparece numa nuvem. Há aqui uma lição para nós.
Entreguemo-nos à oração habitual, à contemplação. Não desejemos as graças
extraordinárias. Se vierem, não nos agarremos a elas. Os frutos desta festa
são, em primeiro lugar, o crescimento da fé. Os apóstolos testemunham-nos que
viram a glória do Salvador. “Não são fábulas que vos contamos, diz São Pedro
(2Pd 1, 16), fomos testemunhas do poder e da glória do Redentor. Ouvimos a voz
do céu sobre a montanha gritando-nos no meio dos esplendores da transfiguração:
É o meu Filho bem-amado, escutai-o”. São Paulo encoraja a nossa esperança
recordando a lembrança da glória do salvador manifestada na transfiguração e na
ascensão: “Veremos a glória face a face, diz, e seremos transfigurados à sua
semelhança” (2Cor 3, 18). – Esperamos o Salvador, Nosso Senhor Jesus Cristo,
que transformará o nosso corpo terrestre e o tornará semelhante ao seu corpo
glorioso” (Fil 3, 21). Mas este mistério é sobretudo próprio para aumentar o
nosso amor por Jesus. Nosso Senhor manifestou-nos naquele dia toda a sua
beleza. O seu rosto era resplandecente como o sol. Os apóstolos, testemunhas da
transfiguração, estavam totalmente inebriados de amor e de alegria. “Que bom é
estar aqui”, dizia São Pedro. “Façamos aqui a nossa tenda”. “A transfiguração
não é uma mudança de Jesus, mas é a revelação da sua divindade, a íntima
compenetração do seu ser com Deus, que se torna pura luz”(Bento XVI).
Uma nuvem
luminosa os cobre, lembrando-lhes a nuvem gloriosa que enchia a Tenda da
Reunião quando Deus falava com Moisés e diz: “Este é o meu Filho amado,
ouvi-o!” Cristo é o amado. N’Ele nós também somos filhos amados. Ele é
o servo obediente, “até a morte”, e nós somos chamados a ser também
servos obedientes, que sabem escutar a voz do seu Senhor, do seu Mestre. Ouvir
o Cristo é o caminho para a glória. Não é à toa que São Bento começa a
sua Regula Monachorum convidando-os com o termo Obsculta…
Nós o ouvimos na Palavra da Escritura Sagrada; nós o ouvimos na Tradição da
Igreja; nós o ouvimos quando os nossos pastores nos conduzem e nos dirigem uma
Palavra que nos orienta e guia até o mesmo Cristo; nós o ouvimos quando aceitamos
entrar na intimidade do nosso quarto, do quarto do nosso coração, onde, no
dizer de Santo Inácio de Antioquia “existe uma água viva e murmurante
que me diz: Vem para o Pai!”
As vestes
de Cristo ficaram “brancas como a luz”. Marcos ressalta que as
vestes de Cristo ficaram brancas de tal forma que nenhuma lavadeira poderia
tê-las alvejado daquela forma. A brancura das vestes de Cristo não era uma
brancura terrena, mas uma cor do céu. Cristo apareceu aos
discípulos revestido de luz, porque Ele é a luz, nos vai dizer São João, talvez
como fruto dessa experiência. Cristo alvejou as nossas vestes no seu sangue. O
sangue d’Aquele que é luz alvejou as nossas vestes. A nós cabe agora clamar
constantemente o Espírito para vivermos de acordo com a veste nova recebida.
Meus
irmãos,
A
Transfiguração ocorreu em um monte, local para os judeus de contato com a
Divindade. As vestes brancas simbolizam a eternidade, o pertencer ao céu e ser
santo como Deus é santo. Por isso, o anjo da ressurreição estará vestido de vestes
brancas. A Santa Igreja conservou a figura da veste branca e a impõe ao
recém-batizado, para simbolizar a pertença à família de Deus e expressar que o
sagrado Batismo devolveu à criatura a santidade que a coloca em comunhão com
Deus, conforme nos ensinou São Paulo: “Passais por uma transformação espiritual
de vossa mentalidade e vos revestis do homem novo, criado segundo Deus na
justiça e verdadeira santidade” (Ef 4,24). Tudo isso levando-se para a
santidade e para a comunhão íntima com Deus e com a comunidade.
Outro
símbolo da Transfiguração é a luz. Deus mora na luz inacessível, conforme nos
ensina a IV Oração Eucarística, tão rica de significados teológicos. São João
nos ensina: “Deus é Luz” (1Jo 1,5). Jesus de Nazaré definiu-se como sendo a
encarnação da luz (Jo 1,7s; 3,19; 12,46).
A nuvem,
simboliza a presença de Deus, como a manifestação no Monte Sinai (Ex 19,16) e a
aliança entre Deus e o povo. Isaías cantava que a nuvem é o carro de Deus (Is
19,1; Sl 104, 3). Quando Jesus subir ao céu, em certo momento, será envolto por
uma nuvem (At 1,9). Ora, o Tabor tem muito do significado do Sinai. Cristo
estava para dar à luz um novo povo, uma nova e definitiva aliança, um novo
Testamento por meio do sangue derramado na cruz. Como vimos, a Transfiguração tem
todo um sentido pascal. E a Páscoa tem um sentido de recriação.
Para o
angélico Santo Tomás de Aquino, o Tabor tem a presença do Espírito Santo: “A
Trindade inteira apareceu: o Pai, na voz; o Filho, no homem; o Espírito, na
nuvem luminosa”. A voz do Pai, saída da nuvem, é o centro do episódio: “Este é
meu filho bem-amado. Escutai o que Ele diz!” (Mc 9, 8). Aqui está uma clara
afirmação da filiação divina de Jesus, de sua autoridade de Filho de Deus, de
sua natureza divina. Por isso Ele tem palavras de vida eterna.
Para nos
transfigurarmos, devemos nos revestirmos de Cristo para sermos como Ele é.
É muito
importante termos presente que a festa de hoje nos sinaliza que, pelo caminho
do sofrimento e da cruz, chegaremos à ressurreição. São Pedro nos representa a
todos, quando pretendemos viver e anunciar a alegria da ressurreição, sem
passar pela generosa entrega e pela morte. Também nós preferimos montar a nossa
tenda na montanha. Mas é preciso ter a experiência mística e coletiva da
missão, do anúncio do Evangelho. Não podemos ficar na “fresca” da contemplação
da Montanha, mas descer para o dia a dia da vida missionária.
Nesta
reflexão sobre a Transfiguração, torna-se oportuno atermo-nos a alguns
aspectos. Primeiro, o discípulo reza unindo a oração à realidade do dia-a-dia,
principalmente pedindo a força de Deus para vencer os obstáculos, pedindo as
forças que vêm de Deus. Depois, somos convidados a dar espaço e oportunidade a
novas experiências. Para isso é preciso rezar e amar, conforme nos ensina São
João Maria Vianney no silêncio do confessionário e na acolhida da partilha de
seu ministério.
A
experiência do Monte Tabor, a Transfiguração do Senhor, deu força aos apóstolos
para aguentarem a experiência amarga do Monte Calvário. São Marcos relatou a
história para fortalecer a fé vacilante dos membros de sua comunidade, quarenta
anos depois do acontecido. O texto os convidou a renovar a fé em Jesus e na sua
Palavra. O texto, ainda hoje, convida-nos a essa mesma atitude, conforme o
convite de Deus Pai: “Este é o meu Filho amado. Escutem o que ele diz!” O
convite de ontem vale hoje também para nós. Mais do que um convite é uma
convocação para a missão e para o engajamento na realidade concreta da missão.
Contemplando
hoje a face de Jesus transfigurado e escutando o que ele diz, encontraremos
força para passar suportar os sofrimentos e dificuldades da vida, até o dia em
que poderemos contemplá-Lo na glória do Pai, realização definitiva da aliança e
das promessas.
Que Deus
nos ajude e que as palavras finais do saudoso amigo Cardeal Dom Lucas Moreira
Neves, OP, nos interpele: “Que eu possa sempre ver o rosto sereno e radioso do
meu Cristo”. E eu completo: sempre na realidade da oração e do amor no irmão
que vive e convive conosco no cotidiano. Amém!
Homilia por: Padre Wagner
Augusto Portugal
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