VI- REFLEXÃO
DOMINICAL I
Os Pães e os Peixes (Mc 6,30-44)
Situando...
Os discípulos retornam da missão, à
qual Jesus os enviara. Junto ao relato da morte de João Batista (Mc 6,19-29),
esse retorno completa a imagem do caminho do discípulo: entre as perseguições
inerentes ao anúncio do Reino, o Mestre sempre de novo os convida para “estar
com ele, no deserto, a sós” (v. 30-32; cf. Estudo 18). Pois, embora façamos
tudo quanto está ao nosso alcance, o Reino não depende estritamente de nossos
esforços; é dom de Deus. É uma consciência que nos desperta, um convite que
aceitamos e convidamos outros a também aceitar. E, entre os cuidados pastorais
ou os esforços missionários, exige sempre de novo voltar ao Mestre, caminhar
atrás dele, manter a intimidade com ele.
Os pães e os peixes
Jesus parte com os seus para “o lugar
deserto”, mas sua intenção é percebida pela multidão, que acorre “de todas as
cidades”, no dizer de Mc, e “chega lá antes deles” (v. 33). Descendo do barco,
Jesus tem compaixão. Ao lado da “indignação”, a “compaixão” é um sentimento
recorrente em Jesus, segundo Mc. Desde o encontro com o leproso, no dia de
Cafarnaum (Mc 1,41), Jesus muitas vezes ficará compadecido ou outros implorarão
pela sua compaixão (Mc 8,2; 9,22; 10,47). Aqui, a compaixão de Jesus se dirige
ao desamparo da multidão, que acorre “como ovelhas sem pastor” (v. 34). Onde
estão os pastores, senão com as ovelhas confiadas a seus cuidados? Certamente,
pastoreiam seus próprios interesses, como frequentemente ocorre, ontem e hoje.
São mercenários, conforme a descrição de João: “o mercenário, que não é pastor
e a quem as ovelhas não pertencem, vê o lobo chegar e foge; e o lobo as ataca e
as dispersa. Por ser apenas um mercenário, ele não se importa com as ovelhas”
(Jo 10,12-13). Importa-lhes apenas o quanto as ovelhas podem render a seus
interesses. Jesus sente compaixão e oferece pastoreio às ovelhas desamparadas.
Como? Com aquilo de que precisam: o ensino, o anúncio de sua boa notícia do
Reino (v. 34).
Essa é, pois, a moldura do texto que
vem a seguir, apelidado descuidadamente de “o milagre da multiplicação dos
pães”. Uma leitura atenta demonstra que não há, no texto, nem a palavra
“milagre”, nem “multiplicação”. Há, no máximo, uma “divisão dos pães”, já que
Jesus repartirá os pães e os peixes, depois de ter dado graças (v. 41). De todo
modo, perceba-se: a moldura do texto é o ensino de Jesus e é a isso que o texto
se refere. Não só ao ensino de Jesus de Nazaré a seus discípulos que o seguiam,
mas também ao ensino que Jesus Ressuscitado continua a oferecer às comunidades,
a partir da experiência pascal. Afinal, se, para Mc, Jesus é o Cristo, o Filho
de Deus, que tipo de Palavra ele dirige aos seus, de ontem e de hoje? É o que o
texto nos relata.
Como ficasse tarde, os discípulos
constatam o óbvio (a hora avançada, o ermo do lugar) e tentam ensinar a Jesus o
que fazer (v. 35-36). Por um instante, parecem ter se esquecido de quem é
verdadeiramente o Mestre e qual o seu lugar de discípulos, pois “passam à
frente” do Mestre. A resposta de Jesus é inusitada: “Vós mesmos, dai-lhes de
comer” (v. 37). Como tão poucos poderiam suprir alimento para tanta gente? Não
é essa a pergunta que, até hoje, por vezes, nos fazemos? Como saciar a fome de
ensino daqueles tantos que vêm a nós, se somos tão pequenos e limitados? Será
que nós, necessitados como somos, seríamos capazes de acudir a necessidade dos
outros? Esquecemo-nos de que as pessoas vêm a nós, mas não com sede de nós mesmos
e de nossas palavras, mas com sede de Jesus, das palavras de Jesus. E que,
portanto, ele é o alimento que podemos oferecer a elas.
Mas, ainda inconformados com a resposta
de Jesus, os discípulos retrucam (como nós também): “nem duzentos denários
seriam suficientes” (v. 37). Um denário é o salário de um dia para um
trabalhador empreiteiro, um diarista. Duzentos denários são o salário de um ano
de jornada (dos 336 dias do calendário lunar, descontavam-se os sábados e os
dias de festa, nos quais não se trabalha). Ou seja, nem um ano de salário seria
suficiente... realismo exagerado dos discípulos, que ainda creem que dependa
deles o alimento para a multidão.
“O que tendes?” – pergunta Jesus;
“cinco pães e dois peixes” – respondem (v. 38). O pão é um dos símbolos da
Torah, da Escritura judaica. Pois é dela que o Povo de Deus se alimenta, é da
Palavra que o Povo se nutre e sustenta sua travessia. Assim como fez Ezequiel,
que “tomou o livro e comeu”, com toda a sua literalidade profética (Ez 3,1-3;
Jr 15,16; Ap 10,9). E é exatamente isto que os discípulos têm: a Escritura. Os
cinco pães do Pentateuco, os cinco livros da Lei mosaica; e os dois peixes que
completam a Escritura, os Escritos (Sapienciais) e os Profetas (Livros
Proféticos). Juntos, esses “cinco pães e dois peixes” formam a totalidade da
Palavra de Deus escrita, disponível até então: a “Lei”, os “Escritos” e os
“Profetas”. É desse pão que a multidão está faminta e é pela falta dele que
vagam como ovelhas perdidas sem pastor. Os que deveriam ensinar não o fazem; os
que deveriam abrir a Escritura como alimento abundante a transformam numa bolha
vazia e incompreensível, alimento insosso e incapaz de oferecer sustento... e
por isso o povo se perde numa errância de fome (cf. Os 4,6s).
Jesus pede que todos se assentem, em
grupos, para a refeição (v. 39-40). Toda a cena remete ao relato da Páscoa e do
Êxodo: o deserto, a hora adiantada, o povo faminto, a Torah... E os
verbos deste texto de Mc são os mesmos que, na última noite, Jesus repetirá na
Eucaristia: “tomou”, “abençoou”, “partiu”, “distribuiu” (cf. Mc 14,22). Daí,
finalmente, compreendemos: Jesus mesmo é o alimento que se dá ao povo faminto,
que se distribui com generosidade, que nutre com fartura até a saciedade. Ele é
Moisés, que novamente dá ao povo a Palavra do Pai, o Caminho (Torah) da
Aliança; ele é o Salmista, que canta da própria vida o louvor verdadeiro que se
deve a Deus – a justiça aos menores de seus filhos; ele é o Profeta que apela à
fidelidade da Aliança e denuncia seu descumprimento. Jesus é a Palavra viva da
Escritura, agora feita gente da gente, cuja voz que fala a partir de dentro
alcança a todos, sem distinção. Pois não há coração humano que não encontre, em
seus mais sinceros anseios, um eco dessa divina Palavra.
Na comunidade cristã, Jesus continua a
falar, distribuindo entre seus discípulos “os pães e os peixes”. Como? Pelas
mãos dos próprios discípulos. “Jesus parte o pão e o entrega aos discípulos,
que por sua vez os distribuem à multidão” (v. 41). O Ressuscitado continua a
falar, pela boca daqueles que o anunciam; e continua a agir, pelas mãos
daqueles que, em nome dele, agem com generosidade e fazem da própria vida
alimento aos demais. O mesmo alimento distribuído por Jesus é agora partilhado
pelos discípulos; Ele se deixa dividir pelos seus. Tanto que todos comem com
fartura (v. 42) e se recolhem doze cestos cheios com os pedaços restantes (v.
43) – sinal da tradição apostólica, pela qual a Palavra de Jesus continua viva
e atuante.
Ora, os que comeram eram cinco mil (v.
44). Ou seja, não importa que os comensais ultrapassem a quantidade de pães em
mil vezes (5 x 10 x 10 x 10). No que depender da qualidade do Pão, sempre
haverá alimento com fartura.
https://www.fiquefirme.com.br/19_os_paes_e_os_peixes_mc_630_44
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