XIII-IGREJA
CATÓLICA DO BRASIL: ENTRE O RESTAURACIONISMO E O LIBERACIONISMO
Por Pedro A. Ribeiro de Oliveiraeira
“A restauração identitária fez desmoronar aquela articulação de
Libertação e reforçou o regime clerical de poder, levando a Igreja para
formas anteriores ao Concílio Vaticano II. Hoje está evidente que o atual Papa, apesar de
sua vontade e de seus esforços, está sendo deslegitimado pelos setores
restauracionistas, tanto do clero (alto e baixo) quanto do laicato
organizado em movimentos ditos carismáticos”, avalia Pedro A. Ribeiro de Oliveira, sociólogo.
Segundo ele, a restauração identitária,
que se dá com João Paulo II e Ratzinger, é uma reação às aberturas proporcionadas pelo Concílio Vaticano II para impedir “que as mudanças tirassem a
identidade católica e relativizassem tudo”. A eleição de Francisco,
entretanto, dá “novo alento ao polo liberacionista, que por
insistir no espírito renovador do Concílio ganhou nova força
com seu incentivo à sinodalidade”.
E indica que a única saída para a corrente
liberacionista “é (1) reforçar desde agora a autonomia de
cada grupo, movimento ou pastoral: sem romper com a instituição eclesiástica,
abrir espaços próprios para funcionar e promover seus eventos, assumindo a
forma de movimentos laicais, e (2) articular-se mais e melhor com
outras entidades cristãs que partilham o mesmo projeto do Reino e com
elas criar espaços ecumênicos onde se apoiem mutuamente”.
Pedro A. Ribeiro de Oliveira é leigo católico, nascido em 1943, doutor em
sociologia, foi professor nos programas de pós-graduação em ciências da
religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e
da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC
Minas). É membro do ISER Assessoria e da Comissão
Ampliada do Movimento Nacional Fé e Política.
O presente texto origina-se como apontamentos
para a apresentação que Pedro A. Ribeiro de Oliveira fez na
análise de conjuntura eclesial “A Igreja do Brasil: entre o fundamentalismo
e a profecia”, realizada pelo Cepat.
Portanto, não foi desenvolvido como artigo propriamente dito.
Eis o texto.
Igreja católica: fundamentalismo
e profecia
“Fundamentalismo” e “profecia” são categorias
da Teologia cristã. Prefiro usar categorias mais
sociológicas, que vou explicar ao longo da resposta. Penso que para entender a
situação atual é indispensável retomar o que significou o Concílio Vaticano II (1962-65), convocado por João XXIII para
atualizar a pastoral católica. Muitas mudanças, mas quatro essenciais: Liturgia, para
atualizar a forma de expressar coletivamente a Fé; Diálogo com o mundo moderno, e não Igreja regendo a sociedade; Igreja Povo de Deus, superando a concepção de dois estratos: a hierarquia que governa e o
laicato que deve seguir suas ordens; e a Palavra de Deus acessível a todo o Povo de Deus.
São os quatro pilares da Igreja modelada
a partir da crise da cristandade (Igreja aliada
ao Estado, moldando a civilização ocidental). Daí outras
consequências: ecumenismo, opção pelos pobres (na América Latina e
Caribe), valorização da diocese como Igreja particular, pastoral de
conjunto (conferências episcopais), leitura popular da Bíblia, Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) em lugar das paróquias, etc.
Foi como um rio represado durante o século
dos Pios (IX a XII) que de repente
extravasou, alagando tudo. O próprio papa Paulo VI, na
metade final do seu pontificado tratou de pisar no freio, para interromper o
processo de mudanças. Mas elas já tinham criado raízes entre o Povo de Deus.
Uma delas, oriunda da América Latina e
Caribe, foi a criação das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs.
Animadas por leigas e leigos, elas ganharam enorme capilaridade social,
sendo capazes de penetrar em espaços sociais não alcançados pela pastoral
paroquial. Contando com o apoio de bispos, padres e congregações religiosas
femininas, em pouco tempo elas se espalharam pelo nosso Continente inaugurando
uma “nova forma de ser Igreja” – como as definiu a CNBB em
documento de 1982. Até hoje a Igreja católica mantém essa imagem de defensora
dos Direitos Humanos e dos pobres.
Aí entra João Paulo II, fazendo dupla
com Ratzinger, para dar a interpretação oficial do Concílio.
É o que eles mesmos chamaram de Restauração identitária: não deixar
que as mudanças tirassem a identidade católica e relativizassem tudo. Por isso
eu falo de corrente restauracionista (e não fundamentalista,
conservadora ou tradicionalista). No polo oposto, falo de corrente liberacionista,
porque é associada às várias modalidades de Teologia da Libertação.
Cresce
hoje o tensionamento entre a corrente restauracionista e a corrente
liberacionista – Pedro A. Ribeiro de Oliveira
Cresce hoje o tensionamento entre os dois polos. A
Igreja estava perdendo o papel de líder moral do mundo capitalista, quando em
1990 a vitória do Ocidente capitalista na guerra-fria abriu
uma oportunidade para reconquistar aquele papel. Para isso ela refluiu sobre si
mesma, salvaguardando suas tradições e desacreditando o setor liberacionista,
de modo a evitar conflitos com o capital globalizado e com o sistema neoliberal
triunfante.
Foram então retomadas práticas religiosas
anteriores ao Concílio, valorizando-se rituais de nossas avós e
devoções populares que haviam sido quase abandonadas pelo clero. Essa forma de
religiosidade pré-moderna combina com o avanço do neoliberalismo no mundo
atual: ao buscar refúgio na liturgia do passado, suas celebrações despertam
emoções adormecidas, reforçam a moral individual e familiar, e trazem a
tranquilidade para quem reduz o cristianismo a uma religião para as “pessoas de
bem”. Torna-se então uma “Igreja-espetáculo”, que tem público e não comunidades.
A renúncia de Bento XVI e a
eleição de Francisco, porém,
deram novo alento ao polo liberacionista, que por insistir no
espírito renovador do Concílio ganhou nova força com seu
incentivo à sinodalidade. Este é o momento que vivemos hoje: de muita
incerteza, em que a balança parece pender para um lado e logo depois para o
outro.
Relação entre fundamentalismo
religioso e extrema direita
A relação entre religião e poder (social e
político, porque trata-se do poder moral) é o tema maior da sociologia da
religião desde Marx, que viu
na religião o “espírito de um mundo sem espírito”. Não entro nas intricadas
relações entre agentes do capitalismo nos Estados Unidos e a
direita católica (tipo Steve Bannon), porque
não tenho suficiente domínio do tema, mas abordo o problema a partir da teoria
do campo religioso como um campo condicionado pela luta de classes.
É claro que não vemos agentes religiosos defendendo
explicitamente os interesses da classe social à qual estão ligados: eles fazem
isso ao difundir doutrinas religiosas que reforçam e recobrem esses interesses.
(É o que Gramsci chamava
de intelectuais orgânicos: quem formula e defende, na linguagem
própria do seu campo – religião, arte, filosofia, política... – os interesses
da classe à qual estão organicamente ligados.) Max Weber falava
de afinidade eletiva. Prefiro falar de compatibilidade estrutural entre propostas religiosas
e propostas políticas.
O
patriarcado tornou possível o capitalismo ao garantir a propriedade privada da
terra e a desigualdade social – Pedro A. Ribeiro de Oliveira
No caso do mundo atual, essa compatibilidade
estrutural se dá mais em termos políticos amplos, do que em termos estritos, de
tipo clérigos bolsonaristas versus clérigos petistas. É o
campo do Patriarcado como
sistema de poder. Poder localizado na figura do pater familias:
o chefe (masculino) da família, que detém o poder sobre todo o grupo. Tem o
direito de propriedade, o domínio sobre a mulher e o “pátrio poder” sobre os filhos
e filhas. Gilberto Freyre definiu o senhor da Casa Grande como “dono da
terra, dono dos homens, dono das mulheres”. O Patriarcado tornou
possível o capitalismo ao garantir a propriedade privada da terra e a desigualdade social. Penso que continua sendo indispensável para sua sobrevivência. Daí sua
dimensão política.
Há uma compatibilidade estrutural entre o
patriarcado e a estrutura clerical da Igreja. Não falo do clericalismo como
excesso de poder, mas como elemento organizador da diferença fundamental
entre ministros ordenados (que têm o poder sagrado de
distribuir a graça divina) e o povo (laos) que só tem o
sacerdócio comum que lhe é conferido pelo Batismo – como se este não fosse o
mais importante! (Recomendo muito o artigo reproduzido pelo IHU há
menos de um mês: O clericalismo vai enterrar o catolicismo?, de Michel Bouvard.).
O distintivo socialmente mais
relevante dessa diferença reside na obrigação do celibato para
o clérigo. Podem ter igual formação teológica e igual dedicação às coisas da
Igreja, mas só o homem que renuncia ao casamento pode ser padre e depois bispo.
Viúvo também. O sacerdote renuncia ao posto de chefe de família, para
habilitar-se a chefe da Igreja. Neste contexto, o campo da família, da
sexualidade, das questões de gênero e outras que afetam as relações entre
homens e mulheres tornam-se cruciais para a identidade do clero.
A essa estrutura clerical em que o padre fala e age
em nome de Cristo, contrapõe-se a estrutura comunitária em que cada comunidade
escolhe e investe das funções ministeriais de coordenação e presidência das
celebrações, sempre por um tempo determinado. É outro tipo de poder, mas
igualmente efetivo. Foi muito usado nas CEBs e talvez ainda
possa ser encontrado hoje.
Agora concluo: o que torna estruturalmente (e
funcionalmente) compatíveis o clericalismo e a extrema-direita ou o neofascismo
é a defesa do patriarcado. Trata-se de salvaguardar a todo custo o supremacismo masculino, branco, heterossexual e cristão.
É ele que baseia sua aliança na política, na cultura, na educação.
Veja-se o
finado governo: desmantelou os organismos de governança, mas escorou o
patriarcado e o capitalismo de rapina. Daí sua compatibilidade estrutural com o
restauracionismo – Pedro A. Ribeiro de Oliveira
Veja-se o finado governo: desmantelou os organismos
de governança, mas escorou o patriarcado e o capitalismo de rapina. Daí sua
compatibilidade estrutural com o restauracionismo. Mesmo sem simpatia entre ele
e o clero, a aliança se impunha para não deixar avançar o processo
histórico de derrubada do patriarcado – liderado pelas mulheres, é bom
lembrar. Todos conhecemos pessoas que nunca imaginaríamos apoiando aquele
crápula, mas que o defenderam por medo do pior: a libertação das mulheres, das
pessoas LGBTQIA+, dos negros, indígenas e todos os tidos como
inferiores pelo supremacismo branco. É triste, mas assim é...
Entrando agora na conjuntura de
2023
Estamos numa situação de equilíbrio instável de
forças entre restauracionistas e liberacionistas na
Igreja católica do Brasil (e do mundo?). Para quem se alinha
com o setor liberacionista, é uma realidade preocupante porque a Igreja
católica do Brasil é politicamente importante. A experiência
do século passado mostrou que as Igrejas cristãs podem oferecer uma excelente
base para a mobilização popular. Mesmo tendo perdido muito da força
mobilizadora de 40 anos atrás, ela ainda é capaz de convocar e mobilizar amplos
setores da população. No mínimo, sem ela fica bem mais difícil fazer isso. No sentido
inverso, o apoio de Igrejas ditas evangélicas e da restauração católica
desempenham papel importante para a atual mobilização popular da direita. Será
que ainda se pode contar com a Igreja católica como base de conscientização e
organização popular?
No século passado, os organismos da Igreja católica motivados
pela Teologia da Libertação – como as CEBs, Pastorais
Sociais, CNLB, CRB, CBJP e alguns Movimentos e grupos ecumênicos –
recebiam o apoio de setores de prestígio no episcopado e no clero, e isso lhes
dava respaldo institucional. Eles ganhavam visibilidade social e midiática, e
também apoio financeiro. Embora estivessem longe de constituir a maioria da
Igreja, os grupos da Igreja da Libertação tinham a hegemonia
na Igreja, pelo menos aos olhos externos.
A Igreja
católica vive uma situação de incertezas e turbulências que escapam ao controle
do Papa. (...) Nessa situação de incertezas, a Igreja católica do Brasil está
quase paralisada – Pedro A. Ribeiro de Oliveira
A restauração identitária fez
desmoronar aquela articulação de Libertação e reforçou o
regime clerical de poder, levando a Igreja para formas anteriores ao Concílio
Vaticano II. Hoje está evidente que o atual Papa, apesar
de sua vontade e de seus esforços, está sendo deslegitimado pelos setores
restauracionistas, tanto do clero (alto e baixo) quanto do laicato
organizado em movimentos ditos carismáticos. A nomeação de bispos (e mesmo de
certos cardeais) deixa isso claro. A Igreja católica vive uma situação
de incertezas e turbulências que escapam ao controle do Papa,
que aposta na sinodalidade para recuperar o modelo de Igreja do Vaticano
II, mas só consegue envolver nesse projeto uma pequena parte do clero.
Nessa situação de incertezas, a Igreja
católica do Brasil está quase paralisada: não toma posição diante das
turbulências políticas, mal consegue controlar seu setor bolsonarizado e
volta-se para atividades internas, enquanto tudo faz para abafar denúncias de
abusos sexuais. Apesar de saber-se em processo de esvaziamento de fiéis, não
tem forças para renovar-se internamente.
Por outro lado, este contexto deixa espaço pastoral
aberto para a “Igreja da Libertação”, como os casos exemplares do
projeto “Encantar a Política”, do 15º Encontro Intereclesial de CEBs, da Campanha da Fraternidade 2023, a Comissão de Justiça e Paz, o Centro
de Fé e Política D. Helder Câmara e a firme defesa do Povo Yanomami. Ou seja, na ausência de pastoral de conjunto da CNBB, cada
grupo com certa organização abre um espaço para atuar com certa autonomia. Esta
é a correlação de forças que molda a atualidade eclesiástica do Brasil.
O momento
atual é de consolidar posições na Igreja: manter os espaços pastorais
conquistados e impedir o avanço do clericalismo – Pedro A. Ribeiro de Oliveira
Se esta análise está correta, o momento atual é de
consolidar posições na Igreja: manter os espaços pastorais
conquistados e impedir o avanço do clericalismo. Só avançar para novos terrenos
em oportunidades muito favoráveis, evitando empreendimentos que possam trazer
desgastes.
A principal sinalização de rumo da Igreja
católico-romana dependerá da continuidade do projeto de Francisco.
Tudo indica que seu pontificado está chegando ao final, devido a sua idade, mas
não há como prever qual será a linha de seu sucessor: uma Igreja sinodal –
favorável à Igreja da Libertação – ou o retorno da restauração
identitária que reforça a estrutura clerical? Cresce a oposição
a Francisco e os restauracionistas já preparam sua sucessão,
mas esta é uma incógnita.
Nesta conjuntura, é muito importante a eleição
da CNBB em abril deste ano. A ala restauracionista tem
ganhado força e poderá incentivar o clericalismo em aliança com as
forças sociais de direita; por outro lado, existe a possibilidade de a
CNBB retomar a linha libertadora da qual veio se desviando nos últimos
mandatos. Seguindo a recomendação de usar o pessimismo da razão, devemos
trabalhar com a probabilidade de vitória do restauracionismo.
Como situar os cristãos alinhados com o projeto
de Libertação nesse futuro cenário em que perderemos os espaços ainda
abertos para nossa atuação? A única saída que percebo hoje é (1) reforçar
desde agora a autonomia de cada grupo, movimento ou pastoral: sem
romper com a instituição eclesiástica, abrir espaços próprios para funcionar e
promover seus eventos, assumindo a forma de movimentos laicais, e (2) articular-se
mais e melhor com outras entidades cristãs que partilham o mesmo
projeto do Reino e com elas criar espaços ecumênicos onde se apoiem mutuamente.
Em síntese: constituir as bases de futuras comunidades ecumênicas preparadas
para atravessar o deserto religioso que se vislumbra pela frente.
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