XIV-
A IGREJA CORPO DE CRISTO: SÍNTESE DA ECLESIOLOGIA DE SANTO AGOSTINHOCRISTO:CLEOLOGIA
O pensamento eclesiológico de Santo
Agostinho (354-430)
merece um estudo amplo e profundo. Isso, porque, ao longo de sua vida como
pastor e teólogo da Igreja, esse grande gênio da patrologia latina enfrentou,
sobretudo, três grandes controvérsias: o maniqueísmo, o donatismo e o
pelagianismo -, “o segundo componente [o donatismo], é cronologicamente
anterior e posterior à sua biografia. Quando ele nasceu, em 354, muitos fatos
já tinham marcado a discussão entre a Igreja católica e o partido donatista
(...). A ação antidonatista de nosso autor [Agostinho] durou quase cinquenta anos”
(p. 48). Frente a isso, Charles
Lamartine no livro: A Igreja corpo de Cristo: síntese da eclesiologia de Santo
Agostinho (Paulus, 2021, 144p.), estudo de natureza
fundamentalmente eclesiológica, ocupa-se com o movimento donatista, buscando
esclarecer como Agostinho “elaborou sua defesa católica frente às teses
teológicas dos cismáticos, abordando enfaticamente este argumento: onde está a
verdadeira Igreja de Jesus Cristo?” (p. 14). O tema da Igreja na reflexão
agostiniana leva-nos a identificar uma estreita “união deste com seu pensamento
cristológico” (p. 99), ou seja, “o mistério de Cristo e o da Igreja são
inseparáveis na doutrina teológica do Doutor de Hipona” (p. 99).
“Em uma simbiose de dados históricos e
teológicos bem concatenados, o autor [Lamartine]
analisa a defesa agostiniana contra o ‘partido’ de Donato, a partir do
conceito da Igreja corpo
de Cristo,
fortemente utilizado por Agostinho ao defender a
Igreja católica do cisma
donatista que marcou profundamente a Igreja africana” (p.
11). Lamartine esclarece
que o donatismo, considerado como uma questão caracteristicamente
eclesiológica, foi um grande movimento cismático que floresceu no século IV e
tomou amplas proporções sobre parte da Igreja na África. Suas ideologias e
práticas ferem em profundo a tradição católica, gerando na vida eclesial
africana um grande desgaste e, consequentemente, a ruptura da paz religiosa no
catolicismo ali vivente. No confronto com os cismáticos, o adversário mais
significativo foi, sem dúvida, Agostinho
de Hipona, que buscou com metodologia própria, combater as
teses da corrente adversária. A campanha contra a seita ocupou grande parte da
atividade pastoral e literária do hiponense, levando-o a dar uma importante
contribuição no campo teológico da Igreja católica, sobretudo a eclesiologia e
a teologia dos sacramentos (p. 13-15). Tenha-se, em consideração, que a “ação
agostiniana frente ao cisma não se resume a escritos fixos, de caráter
puramente intelectual, mas constituem-se, também, como fruto do seu árduo
exercício pastoral. Certamente, o Bispo
de Hipona não teria dedicado tamanha atenção e grande
parte da sua atividade literária ao donatismo se este não tivesse sido tão
difícil de ser superado” (p. 126).
Dado o exposto, o texto está articulado
em três partes:
No primeiro capítulo O donatismo na história (p.
17-46), busca-se apresentar, de modo mais aprofundado, em uma perspectiva
histórica, como surgiu e se expandiu o donatismo (p. 17-29), “o surgimento do
complexo cisma donatista remonta a múltiplas causas, passando tanto pelo
contexto geopolítico de uma história, como também social, econômico e cultural,
no qual se põe em relevo, sem dúvida, a forte dominação do Império Romano. Quando
se fala de donatismo, não podemos entende-lo como um movimento que aponta
somente para uma disputa de caráter doutrinal-teológico, mas devemos levá-lo em
conta, também, como sendo uma reação permeada de sentimentos de protesto e
rebeldia, da parte de uma porção do povo, provocada no norte da África (de língua
latina), região submetida a um duro desfrutamento da parte do império” (p. 17).
São “precisamente os lapsis e traditores que os
donatistas não aceitavam em sua Igreja, considerando que a verdadeira ‘Igreja é
a ecclesia
martyrum’,
uma ‘igreja de mártires’” (p. 8).
Em seguida, apresentam-se suas principais
teses teológicas: a) a verdadeira Igreja é a ecclesia martyrum -,
para o partido do Donato,
a verdadeira Igreja era unicamente a africana, que não se reconciliou com
os traditores,
indignos de uma vida eclesial, mas que, ao contrário, viveu sobre a memória dos
que morreram como testemunhas da fé diante dos perseguidores (p. 31-35), b) a
Igreja donatista é formada unicamente por santos -, associado à concepção
de Ecclesia
martyrum, o
donatismo se proclamava a comunidade dos homens perfeitos, a Igreja dos santos,
limitada geograficamente à África,
que diferentemente do resto do mundo, foi a única que não fez comunhão
como Ceciliano,
preservando-se, assim, de ser apóstata (p. 35-36), c) a Igreja é o
verdadeiro sujeito da ação sacramental -, os donatistas faziam depender da
vontade da Igreja os sacramentos. Ela segundo tal visão, era o sujeito imediato
da ação sacramental, e nesse caminho somente a Ecclesia puritas (Igreja dos
puros) podia administrar sensível e verdadeiramente esses ministérios. A
autenticidade da fé acaba sendo ligada à validade Ecclesiae e, em
particular, à santidade dos ministros, nesse contexto, dependia muito mais da
sua união com a Igreja do que de uma moralidade pessoal. O cismáticos, na
defesa da sua comunidade dos puros, não abordavam geralmente discursos sobre o
pecado e uma dimensão ética, mas muito mais em uma perspectiva eclesiológica,
relacionando, sobretudo, à unidade dentro da seita (p. 37-39).
Na última parte são apresentados alguns dos
seus principais personagens: Donato
de Casae Nigrae (p. 40-41), Parmeniano (p.
41-43), Ticônio (p.
43-45), Petiliano (p.
45-46). Vislumbram-se, sobretudo, os líderes mais famosos e aqueles que se
destacaram por sua expressão teológica, olhando particularmente para os que
chegaram até nós, graças ao testemunho de Agostinho.
No segundo capítulo Agostinho e a questão donatista (p.
47-97), em uma perspectiva biográfica e polêmica, busca-se analisar como se deu
a atuação de Agostinho diante
do problema donatista (p. 47-51). Para isso, o Lamartine deu uma
maior atenção ao método teológico do hiponense no enfrentamento da questão (p.
52-54). Se método “foi, antes de tudo, o da autoridade: ele encontrava na
potestade da fé o suporte e o impulso do seu pensamento, servindo esse
sentimento até mesmo como estímulo para sua base filosófica. A legitimidade da
fé deveu-se ao fato de esta derivar da autoridade divina do próprio Cristo, sua
fonte única, firme, suma e verdadeira. Estando ela, portanto, no centro de sua
teologia, Agostinho buscou afirmar seu valor gnosiológico e sua compreensão
intelectual (intellectus
fidei), evitando interpretá-la como um simples ato de crer” (p.
52). Em seguida, Lamartine expõe
a utilização dos recursos da Escritura
e da Tradição eclesial, o faz, por causa da centralidade que
ocupavam no pensamento agostiniano, especialmente na ilustração das soluções
diante das controvérsias teológicas, pondo em relevo a eclesiologia dos padres
africanos que o antecederam: Tertuliano (p. 69-72), Cipriano (p. 73-78), Optato de Milevi (p.
78-80).
Além disso, procura-se mostrar os principais
elementos da sua eclesiologia, destacando especialmente sua contribuição para a
reflexão das propriedades essenciais da Igreja, que é uma, santa, católica e
apostólica. “O grande desafio da eclesiologia antidonatista de Agostinho é evidenciar
que a católica é a verdadeira Igreja de Cristo e que somente nela se vive uma
autêntica comunhão de fé e de amor. Na busca de demonstrar tal fato, o Bispo de Hipona adentra
o estudo das propriedades ou notas fundamentais da Igreja, que correspondem,
respectivamente, à sua unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade” (p.
81). Assim, “o elemento da unidade é fundamental para a compreensão e a defesa
da integridade católica frente ao cisma. Partindo das Sagradas Escrituras,
em seus escritos antidonatistas, o hiponense desenvolve uma relação peculiar
entre Cristo e a Igreja, amadurecendo, com base na imagem bíblica da Igreja
como corpo de Cristo,
sua doutrina do Christus
totus. Nessa formulação, Agostinho expressa, de forma
profunda, a unidade existente entre o mistério de Cristo e da Igreja, levando a
irradiar uma nova luz sobre sua eclesiologia de comunhão” (p. 96-97).
No terceiro capítulo A Igreja como corpo de Cristo (p.
99-124), Lamartine procura falar como Agostinho aprofundou sua
compreensão do mistério da Igreja diante da controvérsia donatista. Para isso,
este capítulo explora sua natureza como comunhão e ilustra através da imagem da
Igreja como corpo de Cristo e
do Espírito Santo como
alma deste. Lamartine destaca
que “Agostinho começa
seus ensinamentos sobre a Igreja considerando, em primeiro lugar, a pessoa
de Cristo.
O tema eclesiológico é continuação da reflexão sobre o mistério de Jesus encarnando
e redentor, em que a missão da Igreja é dar continuidade à obra de quem a
instituiu, comunicando ao mundo a ação redentora do nosso Salvador e
operando, pela graça dele, a salvação das almas” (p. 100). Sendo assim, na
teologia agostiniana do corpo de Cristo nos “deparamos propriamente com uma
eclesiologia cristocêntrica, um caráter teológico do hiponense que ajuda a
refletir sua defesa católica frente ao cisma donatista. Com a imagem do corpo,
nosso autor [Agostinho]
permite uma compreensão ainda maior das propriedades essenciais da Igreja,
sobretudo as da universalidade e unidade. Mas o Doutor de Hipona acrescenta
mais uma a esse entendimento, dado à sua doutrina eclesiológica, além de um
caráter fortemente cristológico, uma dimensão amplamente pneumatológica, inserindo
em seus princípios doutrinais o Espírito
Santo como alma do corpo de Cristo. Um fundamento
que ajudará o hiponense a consolidar sua teologia de comunhão, na reflexão do
mistério da unidade na diversidade eclesial” (p. 114).
Concordamos com o autor quando ao concluir
esta pesquisa (p. 125-128), diz que “estudar uma personalidade como Agostinho é, para
qualquer pesquisador, uma grande responsabilidade e, de certo modo, um trabalho
não muito fácil, dada a quantidade dos seus escritos e vastidão dos seus
argumentos. Contudo, (...) nos deparamos com a grandeza do construto
intelectual e pastoral deste homem que fez da causa de Cristo e sua
Igreja a sua causa” (p. 128). Temos em mãos um livro muito oportuno. “Agostiniamente orientado”
(p. 10), o leitor “tem a honra de ser convidado a pensar a Igreja como corpo
de Cristo sob
a luz de Santo
Agostinho,
mas não sem antes o esclarecimento das raízes históricas do movimento
donatista” (p. 7), “demonstrando a atualidade de sua doutrina, que ainda hoje é
referencial na abordagem da temática na teologia” (p. 12).
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