sábado, 27 de julho de 2024

VII- REFLEXÃO DOMINICAL II INVESTIR NO REINO DE DEUS Por Pe. Johan Konings, SJ

 

 

VII- REFLEXÃO DOMINICAL II

INVESTIR NO REINO DE DEUS

Por Pe. Johan Konings, SJ

I.              INTRODUÇÃO GERAL

 

A liturgia de hoje tem acento duplo: sapiencial e escatológico. A segunda parte do evangelho é claramente escatológica (parábola da rede), e com isso sintonizam as orações. Mas o tema principal é o do “investimento” da pessoa naquilo que é seu valor supremo. Este tema, mais sapiencial, retém nossa atenção. Aparece na primeira parte do evangelho (o tesouro, a pérola) e na primeira leitura (o rei Salomão não pediu a Deus riqueza, e sim sabedoria, isto é, o dom de distinguir entre o bem e o mal).

II.            COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

 

1.    I leitura (1Rs 3,5.7-12)

 

O tema principal da liturgia de hoje é ilustrado pela primeira leitura: o rei Salomão não pede a Deus riqueza, e sim sabedoria, isto é, o dom de julgar e decidir acertadamente, “distinguindo entre o bem e o mal” ( v. 9). Esta leitura nos convida a ler o episódio seguinte do livro dos Reis, a aplicação prática dessa sabedoria (1Rs 3,16-28: o “julgamento salomônico”). O próprio fato de não pedir outra coisa já mostra a sabedoria. Ainda assim, além da sabedoria, Deus lhe deu, como que “de brinde”, algumas coisas menos importantes (riqueza, fama, longa vida; cf. 1Rs 3,13-14). 2. Evangelho (Mt 13,44-52) O evangelho contém as últimas parábolas e a conclusão do “sermão das parábolas” de Mt 13: as parábolas do tesouro e da pérola, que ensinam o pleno investimento no Reino (v. 44-46), e a parábola da rede, que ilustra a situação “mista” da Igreja (mistura de fiéis convencidos e de batizados mornos) até o tempo final (v. 47-50). Nos últimos versículos coloca-se a pergunta “compreendeis?” (v. 51), dirigida aos discípulos do tempo de Jesus e aos de hoje também. Esse “compreender” consiste em receber em si todas as palavras do Senhor, tiradas do tesouro que contém “coisas novas e velhas” (v. 52). As “coisas novas” são o novo ensinamento de Cristo; as “velhas”, a releitura cristã das antigas Escrituras e tradições judaicas. Essa releitura está sendo feita desde os primeiros tempos da Igreja (a igreja judeu-cristã do evangelista Mateus) até hoje (por exemplo, na primeira leitura na liturgia dominical, no uso dos salmos etc.). Por esta razão, o mestre cristão é chamado de “escriba instruído no Reino dos Céus” (v. 52). Olhemos primeiro as parábolas da pérola e do tesouro. O negociante que aparece na parábola da pérola é um homem de bem, perspicaz (como Salomão, na 1ª leitura). Ele arrisca tudo o que tem num investimento que lhe parece valer a pena (Mt 13,44). Para que o ouvinte compreenda melhor, esta parábola vem acompanhada de outra, que até parece elogiar a “especulação imobiliária”: um homem vende tudo para comprar um campo no qual está escondido um tesouro (v. 45-46). A lição destes textos é: investir tudo naquilo que é o mais importante. Isso parece sabedoria humana, mas aplica-se muito bem à realidade divina, ao Reino de Deus. Mas em que consiste, concretamente, o tesouro desta parábola? Para discernir isso, precisamos da sabedoria que Salomão pediu (cf. 1Rs 3,9) e que lhe propiciou pronunciar juízos sábios (cf. 1Rs 3,16-28). Ora, sabendo que Deus tem predileção pelos que mais precisam, os pobres e desprotegidos, podemos pensar que neles está o melhor investimento. É isso que fez o diácono e mártir Lourenço quando o imperador lhe pediu que mostrasse os tesouros da Igreja: mostrou-lhe os pobres de Roma. Essas parábolas sugerem duas atitudes básicas. Há um momento negativo, o desprender-se das posses que não vale a pena segurar. Pensando bem, Salomão relegou a riqueza material para o segundo plano (pelo menos, em sua oração). Mas fez isso em função do momento positivo, que é o investir naquilo que é realmente o mais importante, aquilo em que Deus mesmo investe: justiça e bondade, iluminadas pela sabedoria. A atitude negativa (o desprendimento) e a positiva (o investimento) são “dialéticas”: uma não funciona sem a outra. Não somos capazes de nos desprender daquilo que é secundário se não temos claro o principal. Por falta do que é principal – a saber, o investimento do amor –, o esforço do desprendimento pode virar masoquismo, prazer em diminuir-se a si mesmo. Por outro lado, nunca conseguiremos investir o nosso coração para adquirir a pérola do Reino de Deus se não soubermos nos desprender das joias falsas que enfeitam nossa vida. Por isso, há tanto idealismo que não consegue ir além de um suspiro piedoso... A leitura mais longa do evangelho apresenta ainda a parábola escatológica da rede, que encerra a coleção reunida no “sermão das parábolas” de Mateus (Mt 13,47-50). Esta parábola, muito semelhante à do joio e do trigo, lida no domingo passado, lembra que no tempo atual bons e ruins ficam misturados, mas no fim será feita a triagem. Na leitura evangélica abreviada, esta parábola fica fora, e o pregador que assim preferir pode deixar esse assunto para o fim do ano litúrgico (32º-34º domingos do tempo comum). Contudo, esse pensamento escatológico dá um peso especial ao tema sapiencial do investimento, acima abordado. Ensina-nos que se trata de um investimento para sempre. Responde, assim, à pergunta dos antigos mestres espirituais: “Que é isso em vista da eternidade?” E serve também como antídoto contra o desânimo que pode tomar conta de nós ao constatarmos, ao nosso redor, tanta coisa que não presta. No fim será feita a triagem.

2.    II leitura (Rm 8,28-30)

 

Na segunda leitura, encontramos um dos textos maiores da carta aos Romanos: o planejamento de Deus e sua execução. Deus, como bom empreiteiro, faz todo o necessário para o bem daqueles que o amam, levando a termo a execução de seu desenho (“desígnio”) (v. 28). O texto é construído em redor da corrente conhecer-destinar-chamar-justificar-glorificar: as fases do acabamento, por Deus, do ser humano; uma obra de arquiteto. Deus de antemão conheceu os que queria edificar, como um arquiteto tem o edifício na mente; ele os projetou (“predestinou”; o termo grego proorizein significa “planejar, projetar”) conforme o protótipo que é Jesus mesmo, seu Filho querido, ao qual ele gostaria que todos se assemelhassem. E aos que assim planejou, também os escolheu (“chamou”); os “justificou” (qual empreiteiro que verifica sua obra durante a execução, decidindo se serve ou não) e, arrematando a obra, os “glorificou” (como em certas regiões os construtores celebram o arremate coroando de flores a cumeeira da casa nova). O protótipo é Jesus Cristo mesmo: o primogênito dos mortos. O Espírito já nos tornou filhos (Rm 8,16). Agora é só levar a termo a obra de arte já iniciada (v. 30). E o distintivo do cristão é que ele tem consciência de ser essa obra (“sabemos”, v. 28). Esse texto nos faz entender o que os teólogos chamaram de “predestinação”: não significa que Deus criou uns para serem salvos e os outros (a “massa condenada”) para serem perdidos. Significa que, como bom empreiteiro, Deus faz tudo o que for preciso para completar perfeitamente a salvação naqueles que a ela se dispõem; e como conhece o coração de todos, ele também conhece os que se abrem à salvação e os que não se deixam atingir. O pregador que optar por acentuar a linha escatológica na liturgia de hoje (cf. Mt 13,47-52) encontrará nesta leitura um tema digno de reflexão.

III.           PISTAS PARA REFLEXÃO: escolher é renunciar

 

Renunciar não está na moda, é contrário à economia de mercado, ao consumo irrestrito... O evangelho, porém, mostra a atualidade eterna da renúncia. E para entender isso melhor, a liturgia nos lembra primeiro o exemplo de Salomão. Quando Deus o convidou para pedir o que quisesse, ele não escolheu poder e riqueza, mas sim sabedoria, para julgar com justiça (1ª leitura). Jesus ensina o povo a escolher o que vale mais: o Reino de Deus. Para participar do Reino, vale pôr tudo em jogo, como faz um negociante para comprar um campo que esconde um tesouro ou para adquirir uma pérola cujo valor resiste a qualquer crise. O que se contrapõe, nestas leituras, são, por um lado, as riquezas imediatas (materiais), por outro, o dom que Deus nos dá (para Salomão, a sabedoria no julgar; para nós, o Reino). Na hora de escolher, deve prevalecer o dom de Deus, e o resto tem de ser sacrificado se for preciso. Qual seria o dom de Deus hoje? Aquilo que queremos ter em nosso poder, aquilo que com tanta insistência agarramos e procuramos segurar? Nossas posses, privilégios de classe, status etc.? Ou, antes, participar da comunhão fraterna, superar o crescente abismo entre ricos e pobres e transformar as estruturas de nossa sociedade, para que todos possam tomar parte na construção do mundo e da história que Deus nos confia? “Os pobres, nosso tesouro”, como apontou o diácono Lourenço ao imperador que desejava os tesouros da Igreja. Queremos investir tudo, os nossos bens materiais, culturais etc., para edificar uma sociedade que encarne melhor a justiça de Deus? Às vezes, a gente preferiria não fazer escolha nenhuma e ficar com tudo: a riqueza, o poder e, além disso, Deus. Como os que durante a semana exploram seus funcionários, seus clientes e a sociedade toda, mas no domingo querem bela missa para Deus... Isso não vale. Quem não escolhe não se realiza. Para se realizar, é preciso decidir, e “de-cidir” é fazer uma cisão, cortar. Optar e renunciar é que nos torna gente. O grande escultor Michelangelo disse que realizava suas obras de arte cortando fora o que havia demais. Podemos meditar neste sentido sobre a segunda leitura de hoje: Deus, artesão perfeito, quer fazer de nós uma obra de arte: conhece o material, projeta, escolhe, endireita... até coroar sua obra que somos nós, feitos imagem de seu Filho. O cristão deve, de maneira absoluta, renunciar ao pecado; é essa uma das promessas de nosso batismo. Mas, se for preciso para servir melhor o Reino de Deus, ele deve renunciar também a muitas coisas que não são más em si (riqueza, prestígio etc.). Pois o Reino vale mais do que tudo.

Pe. Johan Konings, sj

 

Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente, é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), Evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”.

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