VIII- REFLEXÃO DOMINICAL II
16 de fevereiro – 6º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Por Gisele Canário*
Os sinais do
ministério de Jesus
I.
INTRODUÇÃO GERAL
O 6º domingo do Tempo
Comum nos traz uma reflexão que une a confiança em Deus diante das
adversidades, a centralidade da ressurreição de Jesus e as bem-aventuranças
anunciadas e vividas por ele, que abalam as estruturas sociais e econômicas da
época e de hoje. A profecia de Jeremias, atuando num período de crise no Reino
de Judá, adverte contra a confiança excessiva na força humana e destaca a
importância da fidelidade ao projeto do Deus da vida, usando a metáfora da
árvore plantada junto às águas para ilustrar a prosperidade dos que o seguem.
As leituras deste domingo reafirmam a força do projeto de Jesus, oferecendo uma
esperança que sustenta a vida daqueles que decidem seguir suas práticas e
ensinamentos. Nesse sentido, os “ais” do Evangelho invertem os valores do mundo
in- tolerante e sem vida para sublinhar a dimensão radical do Reino de Deus.
Somos convidados a cultivar uma fé robusta, ancorada na decisão de seguir a
proposta de Jesus e na esperança da ressurreição, que é sempre plenificada por
um mundo novo, cheio de amor e justiça, já nesta existência. Portanto, viver a
misericórdia e a justiça divina deve ser uma prática cumprida aqui e agora,
neste mundo carente de com- paixão em todas as suas dimensões.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Jr 17,5-8)
O profeta Jeremias atuou
no século VI a.C., durante um período de intensa cri- se no Reino de Judá,
causada por ameaças de invasão e desintegração política. Nesse contexto, a
mensagem profética de Jeremias torna-se urgente e necessária, advertindo que a
autossuficiência leva à desolação e ao fracasso. Ele usa a metáfora do cardo no
deserto para descrever aqueles que confiam apenas em si mesmos: são como
plantas que não percebem a chegada da floração, vivendo em regiões áridas e
desabitadas, sem prosperidade nem crescimento.
Em contrapartida, o
profeta dá ênfase à árvore plantada junto às águas, que representa aqueles que
confiam em Deus. Essa árvore possui raízes profundas, que se estendem em busca
de umidade, e jamais teme a chegada do calor, mantendo suas folhas verdes e
sempre dando frutos, mesmo em tempos de estiagem. No Oriente Médio antigo, onde
a água é escassa, essa imagem da árvore plantada junto às águas simboliza a
sobrevivência, a prosperidade e a vitalidade. Jeremias quer dizer, com essa
metáfora, que a segurança e a estabilidade fazem parte do projeto do Deus da
vida e são garantidas àqueles que nele confiam e seguem essa proposta.
Sem dúvida, a mensagem
de Jeremias possui uma ressonância importante no contexto litúrgico deste domingo,
convidando os seguidores do projeto de Jesus a refletir sobre a centralidade da
fé em Deus na própria vida. No mundo atual, que muitas vezes valoriza a
autossuficiência e o materialismo, a leitura nos desafia a reconsiderar onde
depositamos nossa confiança. A promessa de prosperidade e estabilidade para
aqueles que confiam em Deus é convite a uma fé séria e profunda, que transcende
as circunstâncias temporais e se enraíza na esperança eterna, sempre
considerando a vida e o cuidado com ela no mundo presente.
2. II leitura (1Cor 15,12.16-20)
A leitura nos apresenta
uma reflexão teo- lógica importante sobre a ressurreição de Jesus. Paulo
escreve à comunidade de Co- rinto, uma cidade cosmopolita e influenciada por
diversas correntes filosóficas e religiosas. Nesse ambiente, ele é confrontado
com cer- to ceticismo em relação à ressurreição dos mortos. Existem membros na
comunidade que não acreditam na ressurreição e ques- tionam sua possibilidade
por influência da cultura grega, que valorizava a imortalidade da alma, mas não
a ressurreição do corpo.
Paulo deixa claro que a
ressurreição de Cristo é o pilar sobre o qual se sustenta toda a fé cristã. Ele
argumenta que, se Cristo não ressuscitou, então a pregação cristã é vazia, a fé
dos crentes é inútil e os cristãos ainda estariam em seus pecados. Essa
afirmação revela a centralidade da ressurreição como um evento histórico para
os cristãos e como a base da redenção e da vida nova em Cristo.
Paulo se utiliza de uma
imagem agrícola familiar ao seu público, na qual as primícias representam a
primeira colheita que garante e antecipa outra mais abundante. Assim, a
ressurreição de Cristo é a garantia da futura ressurreição de todos os que
creem nele e seguem seu projeto. Essa esperança não pode ser entendida apenas
como uma expectativa futura, mas deve transformar a vida presente dos cristãos,
infundindo significado e propósito na sua existência.
É preciso entender que
Paulo escrevia à luz da sua compreensão da época em que vivia. Ele aborda a
cultura helenística, que tinha uma visão dualista do corpo e da alma. Para os
gregos, o corpo era considerado uma prisão para a alma, e a ideia da
ressurreição do corpo era absurda. Contrariamente a essa posição, o apóstolo
insiste na ressurreição do corpo, sublinhando a redenção completa da pessoa
humana, corpo e alma, em Cristo.
É interessante notar que essa compreensão de Paulo acerca da
ressurreição de Cristo desafia as estruturas sociais e políticas do mundo
romano, que venerava o imperador como um deus e promovia a pax romana como
a salvação suprema. Nesse sentido, a ressurreição de Jesus subverte essa visão,
proclamando um Reino que vai além do poder meramente terrestre e oferece
verdadeira esperança de vida eterna.
A certeza da
ressurreição anunciada por Paulo transforma a perspectiva sobre a morte e
também sobre a vida presente, incentivando uma existência marcada pela justiça,
pelo amor e pela fidelidade ao projeto do Deus da vida.
3. Evangelho (Lc 6,17.20-26)
O Evangelho de Lucas,
redigido entre 80 e 90 d.C., surge num período de grande tensão entre os
primeiros cristãos e as autoridades judaicas e romanas. Lucas, médico conforme
a função da época e companheiro de Paulo, escreve para um público
predominantemente gentio, sublinhando a universalidade da mensagem de Jesus e
destacando que ela é destinada a todos, independentemente de sua origem étnica,
social ou econômica.
Nesse contexto, a sociedade era profundamente dividida por
barreiras sociais e econômicas. A mensagem de Jesus, conforme registrada pelo
evangelista, desafia as normas sociais da época. Ao proclamar as
bem-aventuranças dos pobres, famintos, chorosos e perseguidos, Jesus inverte os
valores do mundo. Em uma sociedade que exalta a riqueza, o poder e o status, a mensagem
que ele anuncia destaca a importância da humildade, da solidariedade e da
confiança em Deus.
Jesus não possuía poder
político ou religioso para transformar imediatamente a situação injusta de seu
povo. Ele contava apenas com a força de suas palavras. Os evangelistas
registram os clamores subversivos que Jesus proclamou nas aldeias da Galileia
em diversas situações. Suas bem-aventuranças permanecem gravadas na memória de
seus seguidores. Jesus encontra-se com pessoas empobrecidas, que não conseguem
defender suas terras dos poderosos, e declara: “Felizes os que não têm nada,
porque vosso Rei é Deus”. Ao ver a fome das mulheres e crianças desnutridas,
ele proclama: “Felizes os que agora têm fome, porque serão saciados”. Ao
testemunhar os camponeses chorando de raiva e impotência quando os cobradores
de impostos levam o melhor de suas colheitas, consola-os: “Felizes os que agora
choram, porque rirão”.
Poderia parecer zombaria
ou cinismo se Jesus estivesse falando de um palácio ou de uma vila de
Jerusalém, mas ele está com eles, sem dinheiro, descalço e sem uma túnica de
reposição. É um indigente entre eles, falando-lhes com fé e total convicção.
Jesus é realista. Ele
sabe que suas palavras não significam o fim imediato da fome e da miséria dos
pobres. No entanto, o mundo precisa reconhecer que eles são os filhos
prediletos de Deus, e isso confere à sua dignidade uma seriedade absoluta. A
vida deles é sagrada.
O que Jesus quer deixar
claro em um mundo injusto é que aqueles que não interessam a ninguém são os
mais queridos por Deus; os marginalizados ocupam um lugar privilegiado em seu
coração; aqueles sem defensores têm Deus como Pai.
Nós, que vivemos
confortavelmente na sociedade da abundância, não temos o direito de pregar as
bem-aventuranças de Jesus a ninguém. Cumpre-nos ouvi-las e começar a enxergar –
da mesma forma que Deus os vê – os pobres, os famintos e os que choram. Só
então poderá surgir nossa verdadeira conversão.
Por fim, a mensagem de
Jesus, conforme narrada por Lucas, é um chamado para a comunidade cristã de
ontem e de hoje refletir sobre suas atitudes e valores. Em um mundo que
frequentemente exalta o materialismo e a autossuficiência, as bem-aventuranças
nos lembram da importância de uma fé enraizada na dependência do Deus da vida e
na prática do amor ao próximo.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
– Confiança
no Deus da vida. Da mesma forma que Jeremias exorta o povo a
confiar no Senhor, em vez de apenas nas capacidades humanas, somos chamados a
examinar onde temos depositado nossa confiança e segurança na vida. Em um mundo
marcado por diversos tipos de intolerância, seguir o projeto do Deus da vida
nos impulsiona a estar do lado comprometido com a vida e a justiça.
– Ressurreição
e compromisso. A ressurreição de Cristo é o fundamento da
nossa fé. Como essa verdade impacta nossa vida diária e nossa visão de futuro?
A ressurreição re- presenta vida nova, é a prática do amor em prol do bem
comum. Ressurreição é atitude e compromisso diário com o Deus da vida.
– Bem-aventuranças. As
bem-aventuranças de Jesus questionam nossas ideias sobre felicidade e sucesso.
Como podemos aplicar esses ensinamentos em nosso contexto atual? O Evangelho
ressoa de maneiras diferentes para diferentes pessoas. Para os pobres, é uma
mensagem de esperança que os convida a encontrar consolo; para os ricos, é um
chamado à transformação e à mudança de coração. Como podemos entender e
vivenciar essa mensagem em nossas comunidades cristãs?
– Convite
ao compromisso. A mensagem das leituras deste domingo ecoa ao
longo dos séculos, desafiando-nos a examinar onde depositamos nossa confiança e
segurança na vida. Ela quer suscitar em nós uma fé que transcenda as
circunstâncias temporais, enraizando-se na esperança eterna e na pessoal e
social. Que possamos responder ao chamado de Jesus com generosidade e coragem,
comprometendo-nos com a construção de um mundo mais justo, solidário e
compassivo, onde todos possam experimentar a plenitude da vida que Cristo nos
prometeu.
Gisele Canário*
*é mestra em Teologia, com ênfase em Exegese Bíblica (Antigo
Testamento), pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Possui graduação em Teologia pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores. É
licenciada em Geografia pela Universidade Cruzeiro do Sul e assessora no Centro
Bíblico Verbo, onde atua, desde 2011, com a confecção de material para estudos
bíblicos, gravação de vídeos, formação em comunidades eclesiais e cursos
bíblicos on-line.
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/16-de-fevereiro-6o-domingo-do-tempo-comum-2/
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