quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

X -VOCAÇAO À LIBERDADE I Por Pe. José Comblin

 

X -VOCAÇAO À LIBERDADE I

Por Pe. José Comblin

 

O presente artigo reproduz a conclusão do livro de J. Comblin “Vocação para a liberdade”, publicado pela Paulus Editora.**

Neste Blog SB SABENDO BEM vou postar dvdindo o artig em duas partes.

 

A vocação humana para a liberdade está radicalmente condicionada pela história. Por isso ela permanece sempre limitada. Ainda que possa crescer e realizar efeitos cada vez mais profundos, o ser humano nunca alcançará a plenitude da liberdade. Dada a pertença ao mundo criado, toda liberdade será necessariamente limitada, parcial, sujeita a retrocessos, precária, frágil — sempre será realidade a ser conquistada. Porém, essa é a condição humana e a condição de criatura. Ideologias podem imaginar um final da humanidade, porém sem nenhum efeito real. A vocação para a liberdade está sujeita à história.

No entanto, ela não é o produto da história. O sonho que acompanhou a trajetória do ser humano foi o de fundar uma liberdade para sempre. O imperador Augusto pensava dessa maneira ao ter dado ao mundo impérios. A mesma ilusão renovou-se na modernidade: a liberdade completa pelo advento da ciência, da tecnologia, do progresso da produção material, isto é, pela economia. A liberdade também não é o resultado de processos dialéticos. A liberdade procede de Deus: é vocação. Nasce e surge dentro da consciência humana. Não nasce pelo desenvolvimento espontâneo da consciência. Sendo vocação, a liberdade vem da parte de fora. Ela é proveniente de um apelo.

Por isso começou no povo de Israel e atingiu o auge na pessoa de Jesus. A liberdade de Jesus não foi produto da história: entrou na história. E, da mesma maneira, a liberdade de todos os seres humanos que o seguiram também não foi produto da história. Todos esses seres humanos foram chamados. Todos nasceram para a liberdade respondendo a um chamado, despertados por esse chamado.

No entanto, o exercício prático dessa liberdade no meio da sociedade humana — até por meio do próprio corpo — depende tanto da fase de evolução dos corpos humanos como da fase de evolução das sociedades humanas. Ainda hoje duas pessoas podem ouvir o mesmo chamado para a liberdade. Porém, se uma mora nos Estados Unidos e outra no centro da África, a aplicação prática e a extensão efetiva do chamado à liberdade serão bem diferentes.

Nos primeiros séculos até a “conversão” de Constantino, o povo cristão viveu a liberdade na emancipação da sociedade totalitária greco-romana. Negar-lhe a adoração ao imperador era afirmar a liberdade pessoal em relação a uma sociedade que pretendia envolver a totalidade do ser humano. Era emancipar-se do domínio da sociedade. Os primeiros cristãos prolongaram a resistência do povo de Israel, que, ao afirmar a transcendência de Deus, se negava a ser dominado por uma sociedade totalitária. Afirmar a transcendência de Javé era também afirmar a transcendência da pessoa humana.

No entanto, a afirmação dos cristãos em face do império romano levava a uma separação radical: um pequeno povo eleito, que vive a liberdade, e a grande massa mergulhada na opressão do sistema que abrange todas as dimensões do ser humano.

No primeiro milênio o predomínio da vida e da espiritualidade monástica compensou as tendências para a paganização do cristianismo sob a conduta de imperadores. O monge tornou-se independente da sociedade totalitária em que a maioria vivia mergulhada. A luta contra as “paixões” tornava a pessoa livre dos temores e dos desejos pelos quais a sociedade dominava os seus membros. O monge tornava-se livre negativamente. Faltava o outro aspecto: liberdade para agir. Ao fugir da sociedade, tornava-se incapaz de agir nela e sobre ela. Depois de se libertar do mundo, era preciso voltar a ele para o libertar — era o monge que não podia fazer. Era o limite da vida monástica na forma vivida no primeiro milênio e ainda predominante no Oriente.

No Ocidente abriu-se uma brecha que permitiu novas perspectivas. Foi a luta entre o “sacerdócio” e o “império”; no concreto, a rivalidade entre o Papa e o imperador (com os seus sucessores, os reis e os Estados Modernos). Essa divisão quebrou a tremenda unidade da sociedade holística, totalitária, das civilizações que predominaram durante milênios (desde os faraós do Egito, os imperadores da China, do Japão e da Índia, até os imperadores romanos).

Nem o imperador conseguiu extinguir a autoridade do Papa, nem o Papa suplantar a autoridade do imperador e dos reis. Nenhum dos dois — nem o Papa nem o imperador — conseguiu a autoridade completa dos impérios anteriores. Nenhum conseguiu constituir uma sociedade totalmente organizada. Na desordem esta a possibilidade de liberdade. A liberdade nasce do caos! Nenhum dos projetos daquele segundo milênio se realizou: nem o da cristandade, nem o do Império, nem o dos reis, nem o dos Estados Modernos. Nunca se conseguiu a unidade e a ordem. Durante mil anos as pessoas mais cultas lamentaram essa falta de unidade. No entanto, essa mesma falta de unidade foi a grande chance histórica da liberdade. Somente há liberdade quando nenhum poder alcança realizar a unidade sonhada.

Dessa forma, a ascensão do poder imperial do Papa cumpriu um papel histórico: destruiu as pretensões holísticas das sociedades antigas de tipo imperial. O Papa foi sempre o apoio de todas as resistências contra a dominação dos reis ou dos Estados Modernos.

Em compensação, o poder imperial do Papa deformou a Igreja porque introduziu nela a própria estrutura imperial, sobretudo quando os Estados Modernos deixaram de representar um polo de oposição às pretensões imperiais do Papa.

Na realidade, o esquema imperial do papado já cumpriu a sua função histórica, e é muito significativo que João Paulo II tenha tomado, na encíclica Ut Unum Sint, a iniciativa de propor a reforma da maneira pela qual se exerce hoje o “ministério petrino”. Essa iniciativa do Papa João Paulo II será, provavelmente, celebrada mais tarde como um dos momentos mais significativos do seu pontificado: foi o Papa que primeiro lançou o projeto de reforma do funcionamento do papado (Ut Unum Sint 95-96).

Os modernos entenderam a libertação como emancipação das sociedades tradicionais de tipo holístico, emancipação do indivíduo doravante autor da sua própria vida graças à produção autônoma de bens materiais e à participação no poder político. O indivíduo seria, doravante, o autor das leis e o produtor dos bens necessários para a vida: deixaria de depender da sociedade, seja ela família, clã, tribo ou império. Pela autonomia econômica e política, pela autonomia do pensamento, fonte de todas as demais autonomias, o indivíduo alcançaria a verdadeira liberdade.

Assim foi o sonho e, até certo ponto, o projeto da modernidade.

De fato, em grande parte, o domínio da sociedade sobre o indivíduo afrouxou. Cada um ficou muito mais independente do que jamais se imaginou no passado. A imagem concreta dessa liberdade é a formidável migração humana que leva os camponeses, 90% da população mundial há 100 anos, para as cidades, onde já se aglomera mais da metade da população mundial e 80% da população do Brasil. Bilhões de homens e mulheres em busca da liberdade de acordo com a modernidade: do campo tradicional para a cidade moderna.

No entanto, a liberdade moderna manifestou os seus limites. Primeiro os modernos acharam que a causa das dominações e da opressão era a escassez de bens materiais. Achavam que a abundância levaria à liberdade. Criou-se a abundância. Porém, essa abundância serviu para aumentar cada vez mais os desejos de uma minoria de privilegiados. Estes monopolizam a máquina de produção e deixam a maioria frustrada. A dominação não vem da escassez, e sim da má distribuição: os mais fortes tornam-se prisioneiros de desejos cada vez mais exacerbados. Não sabem que oprimem e criam pobreza porque somente pensam em satisfazer os seus novos desejos. A produção não cria liberdade.

Quanto à liberdade política, desde o início percebeu-se que estava subordinada às exigências da economia. Em nome dessas exigências, a participação real dos cidadãos fica cada vez mais reduzida. Os economistas estabelecem as regras do jogo político. O que sobra para um verdadeiro exercício de democracia é muito limitado. A economia criou nova sociedade holística e totalitária. Consegue manter a submissão dos cidadãos graças à manipulação da cultura. Quem dispõe dos meios de comunicação — as potências econômicas — cria uma cultura que leva cada um dos cidadãos a se identificar com a sociedade estabelecida. Sob as formas da democracia, criou-se um modelo uniforme de ser humano — o Homo praiensis — que todos aceitam, até com entusiasmo. Sugere-se uma consciência de liberdade, porém trata-se da liberdade de aderir ao modelo uniforme imposto pela publicidade e pelo trabalho cultural da mídia. A sociedade cria um jogo de desejos e de satisfações suficientemente adaptado para evitar qualquer perturbação séria da ordem estabelecida.

Veio a reação à qual alguns deram o nome de pós-modernidade. Na realidade a pós-modernidade não suprime nem suplanta a modernidade. Por sinal, já havia expressões da pós-modernidade no século XIX. A pós-modernidade acompanha o desenvolvimento da sociedade moderna, porém em forma de protesto e antagonismo. A pós-modernidade é a afirmação do indivíduo contra as novas formas de dominação e conformismo que foram criadas pela própria modernidade. Porém, a pós-modernidade levanta novos desafios para uma verdadeira liberdade.

A reivindicação do indivíduo é legítima e a liberdade cristã é a liberdade do indivíduo na sua vida pessoal. Não se trata de uma liberdade vivida simplesmente na coletividade, liberdade nacional, liberdade histórica, liberdade do povo, que tantas vezes serviu para ocultar a dominação da nação ou da economia sobre os indivíduos.

Porém, a pós-modernidade evolui muitas vezes no sentido do famoso grito de Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros!”. A liberdade vivida pelas novas classes dirigentes do mundo ocidental é a liberdade de isolamento: a liberdade contra os outros, que enxerga nos outros prováveis obstáculos. Os pós-modernos isolam-se da massa dos excluídos e vivem em paraísos cuidadosamente protegidos por todos os sistemas que a tecnologia atual permite. Daí a tendência para cair no narcisismo confundido com a liberdade.

O maior desafio da liberdade na atualidade já não viria mais do totalitarismo, como aconteceu durante muitos séculos, e sim do individualismo radical que a cultura ocidental está espalhando pelo mundo inteiro.

Diante da invasão do individualismo ocidental pós-moderno, vários cultos tradicionais reagem: reage o mundo muçulmano pelo fundamentalismo, reage o mundo chinês pelo apego ao autoritarismo político, reagem os fundamentalismos hinduístas — e mesmo os povos ameríndios e as minorias negras das Américas, mais do que as religiões tradicionais na África.

Aparece, dessa forma, uma polarização totalitarismo-individualismo que exclui qualquer ad­vento de uma verdadeira liberdade. A verdadeira liberdade realiza-se no serviço voluntário ao outro. Longe de fugir do outro, sobretudo do necessitado, a liberdade consiste em aceitar o desafio, ir ao encontro da diferença e criar uma resposta a uma situação nova. O outro é o desafio que provoca a liberdade. Essa concepção opõe-se tanto ao totalitarismo quanto ao individualismo. Opõe-se ao totalitarismo, que somente aceita o semelhante e rejeita tudo o que é diferente. Opõe-se ao individualismo, que vê no outro a ameaça, e não a provocação da liberdade.

A ideia de serviço é alheia aos nossos contemporâneos, porque a cultura oficial postula que todos os indivíduos são iguais, todos são autossuficientes e, por conseguinte, podem e devem resolver todos os seus problemas sem ajuda de ninguém. Essa é a doutrina dominante no mundo ocidental. Se existem pobres, trata-se do último resíduo da sociedade anterior, ou simplesmente pobres são os que escolheram esta condição por preguiça ou incapacidade: são os não empregáveis, os irrecuperáveis que não adianta ajudar, pois seria perder tempo e dinheiro.

A palavra serviço ainda se usa como concessão às massas populares que ainda carregam a herança do vocabulário cristão. Porém, de modo geral, a palavra fica vazia: não lhe corresponde nenhum serviço sério.

O desafio da liberdade no século XXI será o novo tipo de relacionamento humano. Homens e mulheres serão convidados a se libertar do seu individualismo, que é, afinal, medo de viver plenamente, medo dos seres humanos, medo dos verdadeiros desafios humanos. Porém, não se trata de voltar a formas antigas de sociedade holística, saída condenada de antemão, embora várias civilizações agredidas pela nova cultura pós-moderna não achem outra. A fé cristã pode aceitar a provocação dos outros em vista de uma nova convivência.

A quem se dirige o apelo para a liberdade? Não digamos simplesmente: a todos os seres humanos — como se todos fossem iguais e pudessem igualmente receber um convite de libertação.

À medida que a Igreja se identifica com uma cultura, o que aconteceu de modo tão intenso nos dois milênios da sua história, adota a figura de ideologia da sociedade e se dirige igualmente a todos — pois tende a identificar, uniformizar todos os membros da sociedade numa ideologia comum.

À medida que a Igreja volta a escutar o evangelho e a Bíblia no conjunto, deve reconhecer que a Bíblia toda e os evangelhos inteiros oferecem a visão de uma humanidade feita de polos opostos: oprimidos e opressores, ricos e pobres, poderosos e sem-poder — ou de modo mais radical: senhores e escravos. O evangelho encontra senhores ou escravos. Nunca encontra “homens” ou “mulheres”, porque estes são abstrações. Não existe o homem abstrato realizando a essência humana abstrata. Qualquer indivíduo humano sempre é ou senhor ou escravo. Essa é a visão bíblica

** Texto proveniente da conclusão do livro Vocação para a liberdade, Paulus, São Paulo, 3ª ed., 2001.

Pe. José Comblin

https://www.vidapastoral.com.br/artigos/antropologia-teologica/vocacao-a-liberdade/

(GONTINUA NO PRÓXIMO DOMINGO....}

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