I-
Campanha da
Fraternidade 2023: Cuidar de quem tem fome.
Por Patriky Samuel Batista*
Sensibilizar a sociedade e a Igreja para enfrentar
o flagelo da fome. Pela terceira vez, a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB) aborda um triste cenário que afeta a vida de milhões de
brasileiros e brasileiras. É tempo de cuidar de quem tem fome e refletir sobre
os paradoxos e contrastes de um país chamado de celeiro do mundo, enquanto nele
crescem os números do desperdício e se multiplicam os que têm fome e sede
de justiça. A solução para a superação desse triste contexto está no exercício
da fraternidade, da prática do amor que Cristo nos ensinou.
Introdução
Facilmente
recordamos que, no início da pandemia sanitária da covid-19, quando a
normalidade da rotina mundial foi interrompida, surgiu uma tentativa de
narrativa no sentido de apontar razões de esperança, enquanto o número de
vítimas crescia assustadoramente. Já não podíamos viver como antes. Era preciso
um novo normal. Como seria a vida no pós-pandemia? Uma vez que havíamos
percebido que estávamos todos interligados, cabia à humanidade sair melhor
daquela crise.
Hoje,
passados cerca de três anos do início da pandemia, percebemos que as coisas não
caminharam na direção imaginada. De um lado, contemplamos o crescente aumento
de doenças emocionais, a crise migratória, a proliferação da violência e das
guerras; de outro, multiplicam-se polarizações, a ausência de diálogo, a
crescente indiferença e, principalmente, o escândalo da fome, que, com maior
intensidade, volta a figurar como triste realidade em nosso país e no mundo. Em
muitos aspectos, retrocedemos. Esses são alguns dos inúmeros desafios do tempo
presente que clamam a presença dos homens e mulheres de boa vontade. Tal
cenário nos chama a atenção para um importante dado: não existem respostas
fáceis para desafios complexos. Nem sempre os dramas humanos, em si mesmos, são
capazes de nos ajudar a encontrar um novo rumo para a humanidade. Eis a grande
pergunta que emerge dessa realidade: O que aconteceu conosco? O que acontecerá
se não recuperarmos o mandamento do amor dado por Jesus Cristo – amor que se
concretiza em gestos de compaixão, proximidade e cuidado – e, com ele, o
compromisso com os pobres? É preciso conversão, vivida à luz da fé pascal, que
nos ajude a encontrar um novo rumo para a humanidade. E não somente encontrar,
mas também percorrer juntos esse caminho sem perder a sensibilidade e a
compaixão, sobretudo por quem passa fome.
Diante do drama da fome, é urgente recuperar a
paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e de solidariedade à qual
saibamos dedicar tempo, esforços e bens. Eis o caminho apresentado pelo papa
Francisco na Fratelli Tutti (FT 36). Nessa encíclica, o papa
ainda chama a atenção para as consequências de um estilo de vida consumista,
que faz que o princípio do “salve-se quem puder” seja rapidamente traduzido no
lema “todos contra todos”, e isso será pior do que a pandemia (FT 36). “A
obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm
possibilidades de mantê-lo, só poderá provocar violência e destruição
recíproca” (LS 204).
Em 2023,
a CNBB promove a 59ª edição nacional da Campanha da Fraternidade, pondo em
evidência o tema da fome. Fraternidade e fome: “Dai-lhes vós mesmos de comer”
(Mt 14,16). Com o intuito de sensibilizar a sociedade e a Igreja para enfrentar
o flagelo da fome por meio de compromissos que transformem essa situação à luz
do Evangelho de Jesus Cristo, a CF ergue pela terceira vez sua voz, chamando
nossa atenção para a assustadora realidade da carência de alimentação vivida
por uma multidão de irmãos e irmãs, e nos provoca a encontrar respostas
criativas para a superação desse cenário. É tempo de cuidar de quem tem fome.
1.
A fome é real
Os números da fome no Brasil estão em rápida
ascensão, um triste reflexo do contexto de degradação social e de retrocessos
institucionais, acentuados pelas consequências da pandemia, que levaram ao
empobrecimento da sociedade brasileira. Segundo o Inquérito nacional sobre
insegurança alimentar no contexto da pandemia da covid-19 (https://olheparaafome.com.br),
em 2022, no Brasil, 33,1 milhões de pessoas não tinham o que comer
(https://www.oxfam.org.br/especiais/olhe-para-a-fome-2022/). Eram 14 milhões a
mais de brasileiros com fome em pouco mais de um ano; mais da metade (58,7%) da
população brasileira convivendo com a insegurança alimentar em algum grau
(leve, moderado, grave). O Brasil regrediu para um patamar equivalente ao da
década de 1990, com muitos brasileiros incapazes de se alimentar adequadamente.
Isso significa que seis de cada dez pessoas (125 milhões da população
brasileira) não conseguem acesso pleno à alimentação.
Fruto da
indiferença e da desigualdade social, tal como as demais formas de pobreza, a
fome existe também porque muitas pessoas deixaram de olhar para seu semelhante.
Parece que naturalizamos a fome e normatizamos a indiferença. A fome é triste
realidade que atualmente temos diante dos olhos. É impossível não perceber o
grito de muitos irmãos e irmãs que não sabem se hoje, enquanto refletimos sobre
o tema, terão algo para comer. Os noticiários, as pesquisas, os dados e
estatísticas, os inúmeros diagnósticos, a mídia em geral, as redes sociais, os
irmãos e irmãs que pedem auxílio nos semáforos das grandes cidades e o aumento
das pessoas em situação de rua denunciam que algo não vai bem. A fome vai além
dos números e das estatísticas. Ela tem nome, rosto e história. É a
sobrevivência e a dignidade humana que estão em perigo. É a dignidade humana que
está ameaçada.
Constituindo
uma necessidade natural e um poderoso instinto de sobrevivência, a fome possui
uma dimensão social que precisa ser enfrentada. Sem alimento, não há
desenvolvimento. Sem nutrição, os dons e talentos não se desenvolvem. Sem
comida, não há vida. A fome subtrai as energias dispensadas em favor de um
mundo mais justo e solidário. Fere a dignidade humana e desfigura a imagem e
semelhança de Deus.
A fome é
também um escândalo, afirma o papa Francisco, e um crime contra os direitos
humanos:
Produzimos
comida suficiente para todas as pessoas, porém muitas ficam sem o pão de cada
dia. Isso “constitui um verdadeiro escândalo”, um crime que viola direitos
humanos básicos. Portanto, é um dever de todos extirpar essa injustiça mediante
ações concretas e boas práticas, e mediante políticas locais e internacionais
ousadas (FRANCISCO, 2021, tradução nossa).
Para a
humanidade, a fome não é só uma tragédia, mas também uma vergonha, insiste o
papa Francisco. Em grande parte, é provocada por uma distribuição desigual dos
frutos da terra, à qual se aliam a falta de investimentos no setor agrícola, as
consequências das mudanças climáticas e o aumento dos conflitos em várias
regiões do planeta. Como se isso não bastasse, descartam-se toneladas de
alimentos. Diante dessa realidade, não podemos permanecer insensíveis ou
paralisados. Somos todos responsáveis (FRANCISCO, 2020b).
No
horizonte da fé, as palavras de São Basílio nos ajudam a refletir sobre esse
cenário:
O pão que
para ti sobra é o pão do faminto. A roupa que guardas mofando é roupa de quem
está nu. Os sapatos que não usas são os sapatos dos que andam descalços. O
dinheiro que escondes é o dinheiro do pobre. As obras de caridade que não
praticas são outras tantas injustiças que cometes. Quem acumula mais que o
necessário pratica crime (SOBRE CARIDADE…, 1999).
2.
As contradições do “celeiro do mundo”
Durante a era Vargas (1935-1947), surgiu um slogan que
incentivou o avanço das fronteiras agrícolas, processo que se concretizou no
fim dos anos 1960 e início dos anos 1970: “Brasil, celeiro do mundo”. Hoje esse
é um fato em plena consolidação. O Brasil é um dos principais
produtores/exportadores de alimentos do mundo. São, em média, 43 milhões de
hectares destinados à agricultura e à pecuária. Com base nos resultados
alcançados pelo agronegócio nacional já no início dos anos 2000, mais
precisamente entre 2003 e 2004, o relatório mundial de commodities divulgado
pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) já
constatava que o Brasil possuía todas as condições para se tornar o principal
produtor/exportador de produtos agrícolas em doze anos.
Segundo
dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a soma de bens
e serviços gerados no agronegócio chegou, em 2020, a R$ 1,98 trilhão ou
27% do PIB brasileiro. Entre os segmentos, a maior parcela é a do ramo
agrícola, que corresponde a 70% desse valor (R$ 1,38 trilhão), enquanto a
pecuária corresponde a 30% ou R$ 602,3 bilhões
(https://cnabrasil.org.br/cna/panorama-do-agro). O valor bruto da produção
(VBP) agropecuária alcançou R$ 1,10 trilhão em 2020, dos quais R$ 712,4 bilhões
na produção agrícola e R$ 391,3 bilhões no segmento pecuário. Por fim, em maio
de 2022, as exportações brasileiras totais apresentaram elevação de 13,2% em
relação ao mesmo mês de 2021. Contribuíram para o resultado positivo as
exportações de produtos do agronegócio (+13,8%) e dos demais setores (+12,5%).
Nesse mesmo mês, o superávit da balança comercial do agronegócio foi de US$
13,6 bilhões, enquanto o déficit dos demais produtos foi de US$ 8,6 bilhões;
com isso, o saldo da balança comercial total do Brasil foi superavitário em US$
4,9 bilhões (https://cnabrasil.org.br/publicacoes/boletim-do-comercio-exterior-do-agronegocio-3).
O mesmo
não pode ser dito da agricultura familiar no Brasil, a qual é a base da
alimentação da população e carrega em si a responsabilidade de colocar
alimentos na mesa dos brasileiros e proporcionar renda às famílias do campo. É a
agricultura familiar que garante 70% dos alimentos que chegam à mesa dos
brasileiros; apesar disso, ela sofre a ausência de incentivos e enfrenta
dificuldades, como a falta de conectividade, o acesso limitado ao crédito, o
fechamento das escolas no campo, entre outros. Apenas com investimento em
conectividade e inclusão digital, o país poderia dar um salto de até R$ 78
bilhões no valor bruto da produção agrícola. No que diz respeito a políticas
públicas para a agricultura familiar, mesmo nos melhores momentos do país, os
investimentos sempre foram insuficientes
(https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2020/09/4878333-desigualdades-no-campo.html).
A
agricultura familiar possui um valor que vai além das comparações com as outras
modalidades da produção de alimentos. Seu valor é indiscutível! Segundo dados
do IBGE (2017), 77% dos estabelecimentos rurais no Brasil – ou seja, 3,9
milhões de propriedades – são classificados como de agricultura familiar e
correspondem a 23% da área de todos os estabelecimentos rurais do país.
Transformando as informações do Censo de 2017 em valores, conclui-se que R$ 107
bilhões provêm desse sistema de produção, o que equivale a 23% de toda a
produção agropecuária brasileira
(https://www.conab.gov.br/agricultura-familiar/boletim-agricultura-familiar).
É preciso apoiar a agricultura familiar, que pode
cumprir um papel importante para a superação da miséria e da fome. Para isso,
deve-se incentivar a produção de alimentos de formas sustentáveis. Os
pequenos produtores têm acesso a apenas 14% de todo o financiamento disponível
para a agricultura e se concentram em apenas 23% das terras agriculturáveis no
país. A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
(FAO), em um levantamento realizado em 2014, estimou que as propriedades
inferiores a um hectare de terra correspondiam a 72% de todas as propriedades
do mundo e apenas 8% dessas se destinavam à agricultura
(https://www.politize.com.br/agricultura-familiar/).
Como
podemos constatar, ainda vivemos em um país com profundas desigualdades
sociais. De um lado, a cada ano batemos recordes de produção de grãos; de
outro, são milhões em situação de fome e insegurança alimentar. O que então nos
falta? Real compromisso e envolvimento para superar os desafios que favorecem a
miséria e a fome. É preciso lavar os olhos com as lágrimas de quem passa fome
para ver a realidade, muitas vezes camuflada, que oculta inúmeras contradições.
Ver, compadecer e cuidar. Para tanto, é preciso cultivar um coração que se
converta ao Evangelho e seja capaz de olhar com sinceridade as necessidades do
outro, aprender a repartir, para que ninguém viva com fome ou tenha de recorrer
ao lixo para sobreviver com aquilo que foi desperdiçado de nossas mesas. Educar
para não desperdiçar e repartir é compromisso de fraternidade. Como é possível
que alguém passe fome dentro do celeiro do mundo? São contrastes que desafiam
os discípulos missionários de Jesus Cristo. É ele quem nos diz: “Eu vim para
que todos tenham vida em plenitude” (Jo 10,10). É ele quem nos diz, ao ver a
multidão dos que passam fome: “Eles não precisam ir embora. Dai-lhes vós mesmos
de comer” (Mt 14,16).
Além
desses contrastes, vivemos triste realidade: o desperdício de alimentos. Cerca
de 1/3 de toda a produção de alimentos é desperdiçada em todas as etapas, ou
seja, 30% de tudo o que é produzido no planeta é totalmente descartado. E
quando chegam para os consumidores aqueles alimentos que não possuem uma “boa
estética”, são rejeitados, ainda que possuam o mesmo valor nutricional. Isso
sem mencionar a quantidade de alimento pronto para consumo que vai para o lixo
todos os dias em nossas casas e também nos restaurantes. Nesse sentido, o papa
Francisco afirma que
a comida
que se descarta é como se fosse roubada da mesa de quem é pobre, de quantos têm
fome! Convido todos a refletir sobre o problema da perda e do desperdício de
alimentos, para encontrar caminhos e modos que, enfrentando seriamente tal
problemática, sejam veículo de solidariedade e de partilha com os mais
necessitados (FRANCISCO, 2013).
De fato,
é urgente cuidar de quem tem fome e promover a superação das estruturas que a
estabelecem. Como recorda São João Crisóstomo: “Não me digais que é impossível
cuidar dos outros. Se sois cristãos, o impossível é que não cuideis”
(CRISÓSTOMO, 1862, p. 961-962).
3.
Cuidar de quem tem fome
Dar de
comer a quem tem fome é a primeira obra de misericórdia corporal. Faz parte da
identidade cristã. É compromisso com a vida, caminho seguro para a salvação. O
Evangelho segundo Mateus afirma que, quando o Filho do Homem vier em sua
glória, as nações da terra serão reunidas diante dele e ele mesmo separará uns
dos outros (Mt 25,31-46). Nesse dia, receberão o Reino como herança aqueles que
lhe deram de comer quando estava com fome; aqueles que lhe deram de beber
quando estava com sede; que o receberam em casa quando forasteiro; que o
vestiram quando estava nu; aqueles que dele cuidaram quando estava doente e que
o visitaram quando estava preso (Mt 25,36). Mas como isso foi possível? Eis a
pergunta que lhe fizeram: “Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos
de comer?” (Mt 25,37). Aqui há uma identificação muito forte: o Filho do Homem
se identifica com aqueles que passam fome. Cuidar de quem tem fome é cuidar do
próprio Cristo.
Um dos
princípios da caridade cristã afirma que ela é uma virtude pela qual amamos a
Deus sobre todas as coisas, por ele mesmo, e ao próximo como a nós mesmos, por
amor de Deus. Ao mesmo tempo, quanto mais o ser humano faz o bem, mais livre se
torna. Não há verdadeira liberdade senão no serviço do bem e da justiça (CIC
1733).
Os
pobres, quando amados e acompanhados a partir de uma experiência de fé por
parte de quem cuida, são reconhecidos verdadeiramente como irmãos. Eis aqui a
identidade de uma autêntica opção pelos pobres, que brota do Evangelho. Optar
por eles tem consequência na vida de fé de todos os cristãos, chamados a
possuir o mesmo sentir e pensar de Cristo Jesus (Fl 2,5). Por isso, afirma o
papa Francisco, “desejo uma Igreja pobre para os pobres. Eles têm muito a nos
ensinar” (EG 198). Assim, qualquer tentativa de utilizar os pobres a serviço de
interesses pessoais ou políticos está totalmente fora da proposta do Evangelho.
Apenas com base em uma proximidade real e cordial é que podemos acompanhá-los
adequadamente. Isso fará que realmente os pobres, sobretudo aqueles que passam
fome, se sintam, em cada comunidade cristã, como se estivessem em sua própria
casa (EG 199).
Na mensagem para a Quaresma de 2021, o papa
Francisco afirmou que, a partir do “amor social”, é possível avançar para uma
civilização do amor. “Com seu dinamismo universal, a caridade pode construir um
mundo novo, porque não é um sentimento estéril, mas o modo melhor de alcançar
vias eficazes de desenvolvimento para todos” (FRANCISCO, 2020c). Realmente a
caridade é um dom “que dá sentido à nossa vida e graças ao qual consideramos
quem se encontra na privação como membro da nossa própria família, um amigo, um
irmão” (ibid.). Alguém que é convidado a sentar-se à mesa conosco, e não
a ser servido na soleira da casa dos cristãos.
São
inúmeras as iniciativas de cuidado para com os pobres e famintos desempenhadas
pela Igreja no Brasil, tais como associações, grupos juvenis, pastorais,
movimentos e serviços paroquiais, que põem em ação a ordem de Jesus Cristo:
“Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). Nesse sentido, a CF-2023 é uma
ocasião para recuperarmos tais iniciativas e promovê-las a fim de que o anúncio
do Evangelho seja acompanhado por gestos de fraternidade, fomentando a
solidariedade guiada pela fé.
Em 2023,
pela terceira vez, a fome é tratada pela Igreja no Brasil na Campanha da
Fraternidade. A primeira foi em 1975, com o tema “Fraternidade é repartir” e o
lema “Repartir o pão”. Era o ano do Congresso Eucarístico Nacional de Manaus.
Naquela ocasião, o grande objetivo era promover a fraternidade entre os
brasileiros, desde os que conviviam na mesma comunidade local até os distantes,
dos quais eram conhecidas só as carências. Essa fraternidade deriva do amor a
Deus, Pai comum, e do exemplo heroico de Cristo, morto por todos. Trata-se de
fraternidade afetiva e efetiva, que tem inúmeras formas de expressão e deve
levar a atitudes concretas e sinceras. Fraternidade é repartir.
Nos
textos dessa campanha, foram apresentadas algumas propostas de reflexão para
cada um dos domingos do tempo quaresmal, atualmente ainda pertinentes: é
preciso refletir sobre o pão que nutre o corpo; o pão da cultura; o pão da
amizade; o pão da Palavra de Deus e o pão da vida eterna, que devem ser
partilhados hoje.
Também em
1975, São Paulo VI, em sua mensagem para a vivência da CF, afirmou:
Até o fim
dos tempos, os pobres estarão “com” Jesus. Eles são seus parceiros, seus
companheiros, seus irmãos e irmãs. O cristão, precisamente por ser cristão,
deve colocar-se ao lado dos desprovidos. Deve pôr o melhor do seu empenho em
assisti-los nas suas necessidades mais urgentes. Não pode fugir de
comprometer-se para ajudá-los pelos meios ao seu alcance, para a edificação de
um mundo melhor, de um mundo mais justo.
Em 1985,
o tema volta pela segunda vez. Novamente estávamos às portas de um Congresso
Eucarístico Nacional, que teve lugar em Aparecida, com o lema “Pão para quem
tem fome”. O objetivo da campanha era claro: contribuir para motivar a
comunidade cristã a assumir sua responsabilidade ante a situação de fome
existente no Brasil. Em sua mensagem para a CF-1985, São João Paulo II
exortava-nos a viver a campanha com as seguintes palavras:
Vede,
irmãos! Nunca a humanidade dispôs de tantos bens e possibilidades, como hoje.
No entanto, uma imensa parte dos habitantes da terra, irmãos na humanidade, é
atormentada pela fome e miséria. Fome no mundo e fome no Brasil! Sem deixar de
reconhecer a complexidade do problema, pode-se perguntar: terá esta tragédia de
tantos irmãos nossos explicação somente nas calamidades naturais, ou também
obras ou omissões comodistas, egoístas, dos homens contribuem para agravá-las?
Agora, em
2023, logo depois do 18º Congresso Eucarístico Nacional – realizado em Recife,
de 11 a 15 de novembro de 2022, sob o tema “Pão em todas as mesas” –, a Igreja
no Brasil enfrenta pela terceira vez o flagelo da fome, com o lema que é uma
ordem de Jesus aos seus discípulos: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16).
É vocação, graça e missão da Igreja obedecer a Jesus e cumprir sua ordem.
Os bispos
do Brasil desejam, com esta campanha, ajudar-nos a desvelar as causas
estruturais da fome no Brasil, bem como identificar as contradições de uma
economia que mata pela fome. Para isso, é preciso aprofundar o conhecimento e a
compreensão das exigências evangélicas e éticas de superação da miséria e da
fome, acolher o imperativo da Palavra de Deus, que nos conduz ao compromisso e
à corresponsabilidade fraterna, e investir esforços concretos em iniciativas
pessoais, comunitárias e sociais que levem à superação da miséria e da fome no
Brasil. Além disso, faz-se necessário estimular iniciativas no âmbito da
agricultura familiar agroecológica e na produção de alimentos saudáveis;
reconhecer e fomentar iniciativas conjuntas entre as comunidades de fé e outras
instituições da sociedade civil organizada; mobilizar a sociedade para que haja
sólida política de alimentação no Brasil, garantindo que todos tenham vida.
Não podemos nos esquecer de que a superação da
miséria e da fome foi também objeto da reflexão dos bispos brasileiros na sua
40ª Assembleia Geral, em abril de 2002, quando, ao celebrar seu jubileu de
ouro, a CNBB publicou o documento intitulado Alimento, dom de Deus,
direito de todos, lançando com ele um mutirão nacional de superação da
miséria e da fome.
Durante a
pandemia, a Ação Solidária Emergencial da Igreja no Brasil “É Tempo de Cuidar”
promoveu diversas iniciativas de solidariedade local, também contribuindo para
organizar o serviço da caridade em diversas comunidades eclesiais missionárias.
Assim, a Campanha da Fraternidade de 2023 vem para dar continuidade a esse belo
serviço à vida, no desejo de atualizar o sonho das primeiras comunidades:
“Entre eles ninguém passava necessidade” (At 4,34).
4.
“Dai-lhes vós mesmos de comer”
Sugestivo
e provocante é o lema escolhido para a CF-2023. Estamos no contexto do primeiro
milagre dos pães. Ao cair da tarde, os discípulos se aproximam de Jesus e lhe
oferecem um inusitado conselho: “Este lugar é deserto e a hora já está
adiantada. Despede as multidões, para que possam ir aos povoados comprar
comida!” (Mt 14,15). Também nós estamos sujeitos a esta mesma tentação:
despedir quem está com fome. Não tê-los diante dos olhos, para não abrigá-los
em nosso coração. Não há expressão mais direta e impactante do que esta: “Eles
não precisam ir embora” (Mt 14,16a). Ainda hoje parecem ecoar em nossos ouvidos
estas palavras, em face da multidão de famintos que temos diante dos olhos:
“Eles não precisam ir embora”. É missão do discípulo de Jesus dar de comer,
fazendo da própria existência alimento, oferta de vida e cuidado, tal como fez
o Mestre.
Com os
cinco pães e os dois peixes oferecidos, aprendemos que aquilo que, em nossas
mãos, não seria suficiente para uma família se torna milagre nas mãos do
Senhor. Aqui compreendemos que a solução para o problema da miséria e da fome
não está na quantidade de recursos financeiros que possuímos. Caso fosse essa a
solução, o Senhor teria multiplicado algumas moedas que, com certeza, alguém
ali trazia. Aos olhos dos incrédulos, seria ótima solução: multiplica-se o
dinheiro e cada um come o que quiser, onde quiser, fazendo o que quiser com as
sobras.
A solução
está em oferecer a Deus o que temos e somos, promover a fraternidade,
sentar-nos como irmãos e partilhar os dons recebidos do Senhor. É preciso
aprender a oferecer desde nossa pobreza. “Todos comeram e ficaram saciados, e
dos pedaços que sobraram recolheram ainda doze cestos cheios” (Mt 14,20). Como
bem nos recorda Santo Ambrósio, “aquilo que o amor faz, o medo jamais poderá
realizá-lo” (DAVIDSON,
2022, tradução nossa). Que nosso amor a Deus e ao próximo nos faça solidários
na partilha de tudo aquilo que somos e temos.
5.
Fome de Deus, sim; fome de pão, não
Se
ninguém sofresse com os males da fome, será que estaríamos todos saciados? Na
verdade, há uma sede de Deus que habita o coração de cada pessoa. Com o
salmista, rezamos: “Minha alma tem sede de Deus e deseja o Deus vivo. Quando
terei a alegria de ver a face de Deus?” (Sl 42,3). Não há como não lembrar as
palavras do Divino Mestre: “Então o rei lhes responderá: ‘Em verdade vos digo,
todas as vezes que fizestes isso a cada um destes mínimos dos meus irmãos, foi
a mim que o fizestes!’” (Mt 25,40). Um modo de ver a face de Deus é também
reconhecê-la em cada irmão e irmã, especialmente naqueles que passam fome. Olhe
as pessoas do seu lado! São elas a quem deve amar.
O pão que
sustenta o corpo deve ser acompanhado pelo pão que nutre a alma. Por ocasião da
beatificação do Pe. Antônio Chevrier, em 4 de outubro de 1986, São João Paulo
II afirmou aos Padres do Prado que “os pobres têm o direito de que se lhes fale
de Jesus Cristo. Têm direito ao Evangelho e à totalidade do Evangelho”. Conta a
história que, durante a visita apostólica ao Brasil em 1980, São João Paulo II
viu, em meio à multidão, um cartaz com os dizeres: “Santo padre: o povo passa
fome”. Ele não se conteve e de imediato exclamou: “Fome de Deus, sim, fome de
pão, não”. Eis nosso desejo, também expresso naquela oração conhecida de muitos
brasileiros: “Senhor, dai pão a quem tem fome e fome de justiça a quem tem
pão”.
Conclusão
Não é
normal alguém passar fome. Não podemos agir com indiferença, uma vez que nos
alimentamos daquele que é o pão da vida. Já nos alertava São João Crisóstomo:
Tu vais
participar da Eucaristia? Então, não humilhes teu irmão. Não desprezes o
faminto… Quê? Tu fazes memória de Cristo e desprezas o pobre? Tu não ficas
horrorizado? Bebeste o sangue do Senhor e não reconheces teu irmão? Ainda que o
tenhas desconhecido antes, deves reconhecê-lo nesta mesa… Tu, que recebeste o
pão da vida, não faças obra de morte (SOBRE CARIDADE…, 1999).
Dar de
comer a quem tem fome é um imperativo ético para toda a Igreja, resposta aos
ensinamentos de solidariedade e partilha do Senhor Jesus. Assim nos exorta o
papa Bento XVI (2009, n. 27). Além disso, eliminar a fome no mundo tornou-se um
objetivo a alcançar para preservar a paz e a subsistência da terra.
Um
compromisso que não pode ser esquecido nesse processo de superação da fome é o
envolvimento direto na elaboração de políticas públicas, preferencialmente
políticas de Estado. A Emenda Constitucional nº 64 inclui a alimentação entre
os direitos estabelecidos pela Constituição Federal com aplicação imediata, já
que compõe as garantias e direitos fundamentais de cada cidadão, protegendo, assim,
as políticas públicas que asseguram alimentação a milhões de brasileiros
(Constituição Federal, art. 5º, §1º).
Não se pode correr o risco de ouvir do Senhor: “Eu
tive fome e não me destes de comer” (Mt 25,42). É preciso empenho pessoal,
comunitário e eclesial, social e político, para superar a fome em nosso país.
Os padres do Concílio Vaticano II nos recordaram: “Como são tantos os que
sofrem de fome no mundo, o Sagrado Concílio exorta todos, particulares ou
autoridades, a que se recordem daquela frase dos Padres da Igreja: ‘Alimenta o
que morre de fome, porque, se não o alimentaste, mataste-o’” (GS 69). O Texto-base da
CF-2023 nos apresenta diversas iniciativas para pôr em prática as indicações da
campanha deste ano. São ações no âmbito pessoal, comunitário e social.
Inspirado por estas e outras sugestões, somos chamados a voltar nosso olhar
para cada comunidade de fé e aí contribuir para a superação desse cenário à luz
da fé em Cristo Jesus.
Referências
bibliográficas
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DAVIDSON, Ivor J. (ed.). Ambrose De
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FRANCISCO, Papa. Mensaje para la pre-cumbre
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https://www.veritatis.com.br/sobre-caridade-pobreza-e-justica-social/. Acesso
em: 20 out. 2022.
Patriky Samuel Batista*
*é subsecretário adjunto geral da CNBB e
especialista em Teologia Pastoral pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e
Teologia (Faje), em Belo Horizonte-MG. E-mail: patrikysb@yahoo.com.br
https://www.vidapastoral.com.br/ano/campanha-da-fraternidade-2023-cuidar-de-quem-tem-fome/
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