HOMILIA III
PISTAS
PARA HOMILIA - QUARTA-FEIRA DE CINZAS
Liturgia da Palavra: Joel 2, 12-18; Sl 50; 2Cor 5,20-6,2; Mt 6,
1-6.16-18
Tema-Mensagem: Quaresma: Tempo para, através da
penitência e da conversão, preparar-nos com Jesus Cristo para a celebração do
mistério de sua Paixão e morte na cruz.
Introdução
Desde o século IV, os cristãos adotaram o costume
de preparar a festa anual da Páscoa com uma Quaresma (Quadragesima),
isto é, com quarenta dias de penitência. Assim, com esta Quarta-feira de
Cinzas, iniciamos hoje, de novo e mais uma vez, nossa caminhada, junto com a
caminhada de Jesus, isto é, para dentro do mistério de sua Paixão-Morte e
Ressurreição.
1. Voltai para o Senhor vosso Deus (Joel 2, 12-18)
A Liturgia abre as celebrações deste tempo com a
exortação do próprio Senhor: Voltai para mim com todo o coração, com jejuns,
lágrimas e gemidos (Jl 2,12). Assim, a Quaresma, deve ser assumida
como uma aventura, uma viagem de quem volta para o seu Senhor, encetada em nome
Dele mesmo, jamais em nosso próprio nome. Uma viagem ou tempo que guarda e
reúne, na mesma ocasião, tristeza e alegria.
1.1. Tristeza segundo Deus e tristeza segundo a
carne
Tristeza, lágrimas, gemidos, choros e jejuns por
causa de nosso rompimento com Deus, nosso Pai e Criador, por causa de nossas
ofensas a Ele infligidas às suas criaturas, nossas irmãs. Alegria, porque Ele
nunca rompe conosco e porque está sempre no início desta convocação; é Ele quem
está sempre, ansiosa e amorosamente, se voltando para nós para nos acolher,
perdoar e abençoar; é Ele quem pelo profeta exclama, grita e implora: “Tocai
trombeta em Sião, prescrevei o jejum sagrado, convocai a assembleia, congregai
o povo, realizai cerimônias de culto, reuni anciãos, ajuntai crianças e
lactentes...” (Jl 2,15).
Por isso, nossa Quaresma - graça divina e tarefa
humana - se move entre sombra e luz, e guarda sempre um misto de perda e
recuperação, culpa e expiação, morte e renascimento. Assim, quanto mais
profunda e serena for esta tristeza, tanto mais alta, vivaz e jovial será a
alegria do louvor, da gratidão na Páscoa. Nesta caminhada, portanto, não se
trata apenas de “encenar” o mistério crístico, anunciado já pelo profeta, mas,
acima de tudo, de celebrá-lo, isto é, de afinar-se com ele na mistura de sua
tristeza e alegria, de contrição e gratidão, pois o Senhor encheu-se de zelo
por sua terra e perdoou ao seu povo (Jl 2,18).
Há, portanto, uma tristeza que é “segundo Deus”,
diferente da tristeza que é segundo este mundo (Cfr. 2 Cor 7, 9-11). A
tristeza segundo este mundo é danosa porque leva o homem a voltar-se sobre si
mesmo, isolando-o de Deus e dos outros, conduzindo-o à ruína da vida, ao
desespero, à morte. A tristeza segundo Deus, no entanto, conduz ao
arrependimento, ao encontro e, assim, à salvação. Por isso, a tristeza do
pecado e de seu arrependimento, para nós, sempre vem acompanhada de alegria por
causa do fruto de salvação, isto é, de saúde e vigor da vida que o Senhor
desperta e gera nos seus eleitos. Lembremo-nos de São Francisco chorando pelas
florestas, logo após ter experimentado a misericórdia de Deus no inaudito
encontro com o Crucificado de São Damião. Interpelado, então, sobre o motivo de
seu choro, dizia: Choro a Paixão do meu Senhor e por causa dela não devo
envergonhar-me de andar pelo mundo inteiro chorando em alta voz (LTC 14).
Santa Catarina de Siena, em seu livro “Diálogo da
divina providência”, chegou até mesmo a escrever uma “doutrina das lágrimas”!
Há as lágrimas dos homens iníquos do mundo: são lágrimas de danação. Estas não
têm lugar na vida do cristão. Aqui vale a observação de Agostinho, nas suas
Confissões: os outros bens desta vida, tanto menos se deveriam chorar,
quanto mais os choramos; e tanto mais se deveriam chorar, quanto menos os
choramos (X, 1)... Mas, há, também, as lágrimas que já pertencem à vida de
encontro com o Senhor Jesus Cristo; lágrimas por vezes imperfeitas porque
nascem do temor da pena, e não do amor propriamente dito. Depois, há as
lágrimas de um amor ainda imperfeito. Melhores, porém, são as lágrimas de um
amor perfeito e, por isso, excelentes: as lágrimas de quem está unido ao Senhor
na sua dor. Estas são doces e de grande suavidade.
1.2. Rasgar o coração e não as vestes
Por tudo isso, o profeta Joel convida a esta
penitência radical e salutar: Rasgai o vosso coração e não os vossos
vestidos (Jl 2,13).Uma veste inteira, sem rasgos, é melhor do que
uma veste rasgada. Todo o mundo sabe. Mas o que todo o mundo não sabe é que um
coração rasgado é melhor do que um coração inteiro. O rasgo do coração é começo
de uma conversão verdadeira porque o homem vê que é Deus mesmo quem vem à sua
procura, como na história de Adão, depois de sua queda, quando havia fugido e
se escondido na escuridão de sua própria vontade. Daí a primeira pergunta, a
interpelação básica, sempre nova e atual de Deus ao homem: “Onde estás”?
E a confissão do homem: “Eu fugi, eu me escondi de ti”. Fugimos, nos escondemos
de Deus quando só sabemos ou só queremos usufruir, explorar e degradar seus
bens, sua criação, em vez de ver neles a presença cuidadora de um Pai
misericordioso e paciente.
Mas, esta fuga é em vão, pois jamais poderemos
deixar de estar em sua face, uma vez que Deus, em tudo e em todos, é como um
espelho que está sempre em nossa frente. Ele é a alma de nossa alma. É preciso,
pois deixar que nosso coração se rasgue: que a proteção, que colocamos sobre
nosso coração para não nos expormos a Ele, se rompa; que, como um doente diante
do médico, fiquemos inteiramente nus diante Dele, inteiramente expostos na nossa
própria culpa; que nos entreguemos ao seu cuidado amoroso, que quer tratar de
nossas feridas até chegarmos à plenitude da salvação, isto é, da saúde
originária da vida. Assim, da fuga passaremos ao encontro, do encontro à
intimidade e familiaridade que transforma e da transformação à conversão, e da
conversão à identificação com o próprio Senhor, o sumo bem, o bem inteiro, o
único bem, o “Meu Deus e Tudo” (São Francisco)
1.3. Conversão universal
Nascida da gratuidade e da alegria do encontro, a
conversão é uma guinada, uma virada de todo o coração, com repercussões
transformantes e transformadoras de toda a nossa pessoa: de nossos pensamentos,
palavras e ações; de nosso relacionamento com Deus, com os outros homens e com
as criaturas. A conversão é a resposta, isto é, a correspondência, pessoal e
existencial, dada com todo o nosso ser e viver e pensar, ao apelo que Deus nos
dirige, assim testemunhado pelo profeta: Voltai a mim com todo o vosso
coração. Diante de tão extremoso apelo não há quem não deva confiar na
bondade e na misericórdia Dele. Assim, todos - anciãos, homens e mulheres
adultos, jovens esposos, crianças - ao se voltarem para Ele, ao se reunirem em
assembleia para celebrar a reconciliação com Ele são encobertos pela sua
misericórdia. Com esta reconciliação interior e exterior, individual e social,
fica posto o princípio de um novo Povo de Deus, de uma nova humanidade e de uma
nova criação.
2. Tempo de arrependimento (50/51).
Toda conversão, porém, vem acompanhada, ou melhor,
nasce do arrependimento como o testemunha muito bem Davi no seu salmo
penitencial, cantado e meditado hoje (50/51). O pecado de Davi era duplo e
gravíssimo. Além do adultério com Bat-Sheba (Cfr. 2 Sm 12), havia se tornado,
também, cúmplice, como mandante, no assassinato de seu marido, Uriá.
Prosternado diante da face do Senhor, confessa sua culpa, reconhece seu pecado,
implora perdão, misericórdia e purificação: Tira o meu pecado com o hissopo
e estarei puro; lava-me, e serei mais branco do que a neve (Sl 50,9).
Davi, porém, somos todos nós. Por isso, a Igreja,
em cada oração e celebração eucarística, começa sempre com um “miserere”,
um ato penitencial, incluindo, muitas vezes, também o gesto de bater no peito e
o rito da aspersão. Só assim, depois de recebermos um coração novo e um
espírito decidido (Sl 50,12), é que poderemos ouvir a palavra e comer do
pão do Corpo do Senhor.
A tristeza do arrependimento aspira, então, pela
alegria do perdão: Faze com que eu ouça a alegria, e que dancem os ossos que
trituraste” ... restitui-me a alegria de ser salvo, e que me sustente o
espírito generoso! (Sl 50,10). Generoso é o espírito de Deus, o “espírito
de santidade”, que passa por cima de nossa culpa, que não nos rejeita, antes,
nos acolhe e nos dá a graça e a alegria de começar sempre de novo. Com a
alegria vem, então o louvor do verdadeiro sacrifício nascido de um coração
contrito: O sacrifício que Deus quer é um espírito contrito; um coração
despedaçado e triturado, ó Deus, não rejeitarás (Sl 50,19).
3. Tempo de reconciliação (2Cor 5,20-6,2)
A alegria da reconciliação, nascida da graça do
encontro, no caminho de Damasco, levou o pecador e fariseu Saulo ao
arrependimento. Imediatamente acolhido por Jesus é também transformado em seu
apóstolo, anunciador da Boa Nova junto aos gentios. Fiel a este envio e
encargo, Paulo dirige aos cristãos de Corinto, e a nós, hoje, este insistente
pedido: Em nome de Cristo, nós vos suplicamos, deixai-vos reconciliar com
Deus (2Cor 5,20). A súplica é calorosa porque a reconciliação que Deus nos
oferece gratuitamente, sem nenhum merecimento nosso, segue um caminho nunca
visto, quase inacreditável: Aquele que não conheceu pecado, foi feito pecado
por nós, para que nós nos tornássemos, nele, justiça de Deus (2Cor 5,21. O
Grande Rei, o Pai, teve que entregar ao sacrifício da morte de cruz o seu Filho
amado, o herdeiro de todas as coisas (Hb 1, 2), para poder oferecer a
anistia a todos os homens de todos os povos da terra e, assim, recomeçar uma
nova história no relacionamento com os homens, ou melhor, começar um novo céu e
uma nova terra. Jesus Cristo sofreu, pois, a rejeição e o abandono da cruz,
sofreu a ira e a recusa divina em relação ao pecado, por amor do amor do Pai
pelos homens. Deus fez o Cristo pecado por nós. Assim, Cristo foi aniquilado na
cruz, reduzido ao nada para que a nossa culpa fosse tomada por ele, como sendo
não nossa, mas dele. Só assim pudemos ser desculpados, justificados, “tornados
justiça de Deus, Nele”.
É preciso, pois que não deixemos em vão, sem
frutos, esta graça. Daí a exortação de Paulo: É agora o tempo favorável, é
agora o dia da salvação! (2Cor 6,2) Sejamos, pois como Santo Expedito.
Conta-se que, enquanto hesitava na conversão, um corvo sempre de novo lhe
aparecia e lhe gritava “Cras! Cras!” (Amanhã! Amanhã!). Até que um dia
Expedito resolveu acabar com a demora na sua conversão. Pisou o corvo e
decididamente disse: “Hodie! Hodie!” (Hoje! Hoje!). Ele se tornou,
então, “expedito”, isto é, ágil, rápido, no seu caminho no seguimento de
Cristo.
4. Atentos à hipocrisia (Mt 6,1-6.16-18)
O evangelho de hoje nos conduz para o coração de
toda a Quaresma, de todo o sentido de nossa vida, de toda a aventura humana: a
penitência evangélica, isto é, a alegria de, a exemplo de Cristo, poder lutar a
fim de chegar à fonte de nossa existência. Há, porém, um inimigo a ser
combatido nesta batalha: a hipocrisia.
Originariamente, “hypokrites”, em grego,
significa intérprete, ator, declamador. Em sentido pejorativo, porém, passou a
significar simulador, fingido, mascarado. O hipócrita é, no fundo, um
narcisista, ocupado e preocupado unicamente com sua imagem e aparência: querer
mostrar o que não tem e não é. Agostinho anota: todo aquele que quer aparentar
o que não é chama-se hipócrita. Sua glória é vã: pois o brilho de sua aparência
não se funda na consistência do ser. Daí a exortação de Jesus: Ficai atentos
para não praticar a vossa justiça diante dos homens, só para serem vistos por
eles(Mt 6,1).
Contra este nosso inimigo número um, Jesus não
apenas propõe três grandes exercícios, mas também dá o espírito com o qual
devem ser praticados: o espírito da gratuidade de um filho que, a exemplo do
homem assaltado e jogado à beira da estrada, da parábola do bom samaritano,
sabe, se vê e se experimenta radicalmente amado e cuidado pelo Pai. Pois, ser
cuidado pelo Pai é a única realidade ou verdade de nós mesmos e de cada
criatura.
Por isso, no seguimento do Cristo crucificado,
principalmente para este tempo da Quaresma, a Igreja, inspirada no Evangelho,
nos propõe três grandes exercícios:
a esmola, a beneficência, nascida da genuína
caridade cristã deve tornar-se um gesto “natural”, esquecida de si mesma; um
amor que se volta diretamente para o outro e para a sua necessidade. Aos
poucos, se torna como olho que, esquecido de si, olha, serve sem saber que está
servindo. É como a mão esquerda que não sabe o que faz a direita (Mt
6,1). É como o bom samaritano que vê e com toda a compaixão cuida do abandonado
e ferido e depois se retira sem que ninguém saiba quem foi.
a oração, ensinada por Jesus, tende a
tornar-se a simples e singela entrega confiante do filho nas mãos cuidadosas do
Pai que, para ele, o filho, é seu tudo, sua única recompensa, o Reino dos Céus.
Assim, a oração evangélica afasta de nós o desejo de uma “vivência mística”,
cheia sentimentalismos doentios, de uma ascética ou de um moralismo todo
centrado no prazer de si mesmo e de suas conquistas, ou na tristeza de seus
pecados.
o jejum evangélico, finalmente, em
vez de uma disciplina centrada no próprio penitente, passa a ser o morrer
cotidiano para si mesmo, para viver para Cristo e seus irmãos, na gratuidade do
amor. É a alegria da doação porque na raiz da renúncia evangélica está o
anúncio da graça do encontro com a origem de todo o bem; está a experiência
mística ou misteriosa de que nós, de nossa parte, não somos nada a não ser
vícios e pecados (São Francisco, RNB 17,7). Por isso, o discípulo de Cristo
não pode desejar ou ter outra glória senão a glória de Cristo, isso é, sua
luta, sua batalha, suas feridas, sua aventura, sua Cruz, como ensina São
Francisco: Nisto podemos nos gloriar: em nossas fraquezas e em carregar
todos os dias a santa Cruz de nosso Senhor Jesus Cristo (Admoestações – V).
Conclusão
Penitência evangélica, portanto, tem sentido de
luta, de aventura, semelhante aos quarenta anos vividos pelo povo de Israel
quando fez a sua travessia no deserto a caminho da Terra prometida; mas,
semelhante, também e acima de tudo, à grande aventura, viagem ou luta de Jesus
que atravessou o deserto da história dos homens fecundando-o com a Paixão de um
Filho de Deus que quis viver em tudo como filho do Homem; semelhante aos seus
quarenta dias de jejum passados no deserto até ser tentado pelo Adversário e vencê-lo
por sua obediência amorosa ao Pai.
São Francisco depois de ter descoberto este
admirável sentido da penitência evangélica, abraçou-a como o sentido maior de
sua vida e de todos os seus seguidores. Por isso, quando interrogados acerca de
sua identidade, respondiam: “Somos os penitentes de Assis”. Por isso,
também, é que Francisco tinha uma grande devoção à penitência quaresmal a ponto
de praticá-la cinco vezes ao ano. Ele se impunha esta prática para jamais
esquecer que para ser seguidor de Jesus Cristo é preciso imbuir-se de seu
espírito de luta, de combate contra o Maligno que quer nos afastar e separar do
amor do Pai. Daí, sua devoção ao arcanjo são Miguel, o lutador de Deus. Por
isso, também gostava de intitular-se como “cavaleiro de Cristo” e de “exército
de cavaleiros de Deus” sua Ordem, seus frades.
Hoje, para fazer esta experiência de penitência não
precisamos ir ao deserto, pois o fenômeno da desertificação da natureza e do
homem crassa em toda a parte. Não apenas as fontes da natureza estão secando e
se poluindo, mas também, e principalmente, as fontes do sentido da vida. A
“de-solação” assola o íntimo dos homens. No meio de tanta “comunicação”,
corações vazios, desolados, grassam por toda a parte. Por isso, hoje, importa
que ordenemos sempre mais e melhor toda a nossa vida, nosso coração, nossos
sentimentos e atitudes com este espírito da penitência evangélica, quaresmal.
Para isso, porém, é preciso que a Quaresma não seja apenas um tempo, mas o
tempo de todos os tempos; uma penitência imbuída da jovialidade evangélica
capaz de fazer crescer a cordialidade da “nossa mãe a irmã terra que nos
sustenta e governa e produz frutos diversos e coloridas flores e ervas” (SSol);
ela que, depois de acolher todas as nossas agressões e maldades, no-las devolve
puras, inocentes e benfazejas. Eis o que significa “cultivar e guardar a
criação”.
Fraternalmente,
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini
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