REFLEXÃO DOMINICAL III
"NO ACONCHEGO DO DESERTO"
Neste
primeiro domingo da quaresma, Deus nos chama ao deserto com Jesus, para uma
conversa de pé de ouvido, a liturgia se reveste de roxo, que é a cor da paixão,
não é tristeza, luto e desconsolo, como muitos pensam, é como se Deus, o amado
de nossa vida, quisesse que ao longo de quarenta dias, prestássemos mais atenção
nele, no seu jeito diferente de nos amar, roxo seria isso: um olhar para
dentro, enquanto se olha para o céu, podendo evocar o poeta “De tudo ao meu
amor serei atento...”, quaresma é tempo de deixar-se remodelar, permitindo que
Deus refaça a nossa vida.
Quando
presido o Sacramento do matrimonio percebo que os casais têm dificuldade de se
olhar nos olhos, na hora do consentimento, e não é só com quem está casando que
isso acontece, um amigo confidenciou-me que sentiu um certo “desconforto” ao
olhar nos olhos da esposa, na renovação do matrimonio, em uma missa de encontro
de casais. Olhar nos olhos nos causa medo, porque é enigmático e misterioso,
não se tem medo de olhar o corpo, que se torna facilmente objeto de desejo, em
uma sociedade tão erotizada, mas quando se olha nos olhos, estamos diante da
alma do outro, há comunhão de corpo mas não há comunhão de alma. A relação
entre namorados, noivos, e até entre marido e mulher, fica na maioria das vezes
banalizada, alguns conseguem emigrar do erótico para o Eros, e há outros, que
na graça de Deus, confiada pelo Sacramento do matrimonio, conseguem chegar no
Ágape, que é o amor em toda sua plenitude, o Eros é o meio, e não o fim, é um
caminho que tem de ser percorrido do começo ao fim da vida conjugal e que só será
obstruído pela morte.
Nossa
relação com Deus ás vezes também é assim, um tanto quanto banal, pois temos
medo de contemplar o seu mistério. Na capela do Santíssimo, lugar sagrado em
nossas comunidades, onde Aquele que é o Amor Absoluto se esconde em um pedaço
de pão, sentimo-nos embaraçados e procuramos sempre dizer algo, fazer um
pedido, recitar uma fórmula de louvor e adoração, daí somos capazes de ficar
horas ali falando , porque este “Falar” nos dá a ilusão de que penetramos no
mistério de Deus e podemos dominá-lo. Invertemos o jogo e queremos seduzir a
Deus, diferente do profeta, relutamos em ser por ele seduzidos e dominados.
Deserto
é lugar teológico do “namoro”, onde movidos pelo mesmo Espírito que conduziu
Jesus, vamos ter nosso encontro pessoal com Deus, o esposo apaixonado que quer
olhar nos nossos olhos, sussurrar em nossos ouvidos e nos envolver com a sua
ternura, para sentirmos de novo o encanto do primeiro amor, como na visão do
profeta Oséias “Eis que eu mesmo a seduzirei e a conduzi-la-ei ao deserto e
falar-lhe-ei ao coração”. Deserto é lugar de fazer a experiência da esposa
jovem, que manifesta a sua alegria ao colocar toda sua confiança no amado, e
descobrir, como no Cântico dos cânticos, que somente Deus é a sua Segurança –
“Quem é esta que sobe do deserto apoiada em seu Amado?”
É o Povo da antiga aliança, é o povo da nova aliança, é a Santa Igreja, somos
eu e você, a razão do amor divino, que nos trouxe, com a encarnação de Jesus, a
possibilidade real de experimentarmos em nossa vida a salvação. Deserto é,
portanto lugar do encontro onde o amor se revela, é a mesma experiência do povo
do Êxodo, que se repete em Jesus Cristo, porém, ao contrário do povo da antiga
aliança, não mais se deixará enganar pela tentação, propostas sedutoras dos amantes,
para fazê-lo perder o paraíso de delícias, onde o homem convivia com os animais
selvagens, servido pelos anjos de Deus, evocando a proteção Divina do Eterno
Amado sob o objeto do seu amor.
Revistamo-nos
do roxo da paixão e não da tristeza, quaresma é dar um tempo para aquelas
coisas que em nossa vida são secundárias, para nos ocuparmos com um Deus
apaixonado, que suspira quando vamos ao seu encontro enquanto Igreja, na
dimensão celebrativa. Quaresma é quarenta dias de amor, como um casal que retoma
a lua de mel, após longa caminhada na vida conjugal, foi no deserto que Deus
celebrou a aliança com seu povo, estabelecendo com ele uma relação única, “Eu
serei o seu Deus e vós sereis o meu povo”, evocando o cerne da união conjugal –
e os dois serão uma só carne.
É
esse amor que salvará o mundo, verdade ignorada pelos que prenderam João
Batista tentando sufocar um Amor que não se deixa aprisionar, e em Jesus
irrompe ainda mais forte, no meio da humanidade, para levar o homem de volta ao
paraíso! Nada irá deter a força desse amor, nem a miséria dos homens ou os
pecados da igreja, o AMOR triunfará definitivamente! Pois o tempo se completou,
o Reino está próximo. Converter e crer no evangelho, é uma forma contínua de
corresponder a esse amor misterioso de Deus que em Jesus busca a todos os
homens, sem distinção ou acepção de qualquer pessoa. Converter-se é dar um
solene “basta” aos falsos amores de “amantes” mentirosos, que nos enganam,
oferecendo-nos um falso paraíso, arrastando-nos à tristeza da morte do pecado,
deixando-nos longe...bem longe Daquele que é o nosso único e verdadeiro
Amor...(1º Domingo da quaresma)
José
da Cruz é Diácono da
Paróquia Nossa Senhora Consolata – Votorantim – SP
E-mail jotacruz3051@gmail.com
https://npdbrasil.com/religiao/rel_hom_gotas0103.htm
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